A proximidade que o Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV) mantém com a cidade de Coimbra e com a Praça da República, onde está localizado, não é uma novidade. Ainda assim, tem adquirido uma dimensão e importância cada vez maior na vida do teatro académico. “O TAGV é um catalisador muito importante daquilo que acontece na cidade”, enfatiza o diretor, Sílvio Correia Santos. Perceptível em múltiplas das produções e espetáculos programados para os próximos meses, esta proximidade traduz-se na estreita colaboração do teatro com diferentes artistas e estruturas locais, como o Jazz ao Centro Clube, O Teatrão ou a Cena Lusófona.
Dada a sua natureza, enquanto teatro académico, a relação do TAGV com a academia e a produção de conhecimento também se manifesta na programação de outono. Os ciclos Ressonâncias — storytelling e saúde mental e Afro-Portugal, bem como a peça que vai resultar de uma coprodução com a companhia de teatro Marionet são exemplos dessa relação. “A Marionet é uma estrutura muito particular que tem um trabalho único muito relevante nesta confluência entre o teatro, as artes e a ciência”, explica o diretor do TAGV.
Um dos destaques vai para outra estreia absoluta, Frágua de Amor. Desafiados pelo TAGV, o Bando de Surunyo e A Escola da Noite juntam-se para levar à cena a peça escrita, em 1524, pelo dramaturgo que dá nome ao teatro académico, para celebrar o casamento de D. João III com D. Catarina. Para Sílvio Correia Santos, o espetáculo ilustra o diálogo existente entre a academia e as entidades culturais da cidade e vai ser um “marco” na representação de Gil Vicente.
No ano em que se comemoram os 50 anos da Revolução dos Cravos, o TAGV não se esquece de celebrar Abril, e vai fazê-lo através da exposição 50 anos a Colar Cartazes, visível nas redes sociais e nos ecrãs do teatro. “O TAGV tem um arquivo muito rico de cartazes referente aos seus 63 anos de atividade (…). [Através dele] conseguimos criar algumas narrativas que nos ajudam a contar a história do que aconteceu ao longo destes 50 anos no teatro, mas refletir também sobre o que foi a evolução da nossa democracia”, frisa Sílvio Correia Santos.
Entre 17 e 19 de outubro, Futuros e Assombrações regressam ao TAGV. “É um ciclo de performance cujo resultado no ano passado nos deixou muito entusiasmados para recuperar o conceito e voltar a apresentá-lo este ano”, confessa o diretor. Já o mês de novembro é marcado pelo cinema e pelas artes negras, com o festival Caminhos do Cinema Português e o ciclo Afro-Portugal, em que se pretende refletir sobre a memória colonial portuguesa e o racismo.
Em entrevista ao Gerador, no café do TAGV, Sílvio Correia Santos falou ainda sobre os conceitos por detrás de alguns dos projetos, a tentativa de aproximação aos diferentes públicos e a renovação da imagem do teatro académico.
No documento de apresentação da Meia Temporada escreveu que há uma “auspiciosa religação ao local” com esta programação. Fomentar uma ligação de proximidade com os conimbricenses e a cidade é uma prioridade para o TAGV?
A atividade do teatro está maioritariamente marcada pela nossa inserção na Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses. Não sendo, naturalmente, só isso, mas essa é uma dimensão absolutamente fundamental da nossa atividade, que depende de ciclos de financiamento. O “Teatro na Praça” foi o título dado à candidatura que deu origem ao quadro de financiamento atual, que termina em 2025. Portanto, esta ideia de o TAGV estar na praça é uma ideia que já vem de trás.
Acho que tem muito que ver, de facto, com esta proximidade, com esta inserção no local específico da Praça da República, mas também tem muito que ver com a importância que o TAGV tem na academia e na cidade. É uma dimensão que temos muito particular, e que nos agrada muito, esta ligação afetiva do teatro à cidade. Muita gente cresceu com uma ligação próxima ao TAGV: por vezes, as pessoas têm um primeiro contacto quando vêm fazer as festas de Natal da escola, depois começam a ver cinema aqui ao longo da adolescência e depois tornam-se espectadores regulares. Aquilo que me pareceu interessante foi partir dessa ideia do “Teatro na Praça” para desenvolver a importância do TAGV em Coimbra.
O que me parece é que o TAGV é um catalisador muito importante daquilo que acontece na cidade. É uma cidade com características muito diferentes das que tinha há uns anos e nós temos um papel que me parece muitíssimo importante. Esse papel passa por acolher e mostrar no nosso palco muita coisa, mas também passa por outro tipo de apoio, de promoção das atividades que não têm necessariamente que ver com o palco diretamente, e com a promoção de espetáculos noutros locais.
Essa dinâmica de proximidade tem-me parecido cada vez mais importante e foi por isso que a destaquei na apresentação da Meia Temporada, porque é algo que se tem vindo a tornar cada vez mais evidente e que me parece que vai continuar a crescer até ao encerramento, em finais de julho do próximo ano. Esta ideia de aproximação à cidade, aproximação à praça e aos diversos intervenientes da cidade é algo que tem várias dimensões e que tem que ver com a maneira como vemos o lugar e a importância do TAGV aqui.
Parece existir uma perceção de que a academia mantém um certo distanciamento das comunidades locais. Enquanto teatro académico, o TAGV acaba por colmatar essa distância?
Coimbra tem uma particularidade que nunca podemos ignorar: a sazonalidade do calendário escolar. Há muita gente no ensino superior aqui e o facto de haver calendários escolares que implicam que muitas pessoas estejam num determinado período do ano e não esteja noutro tem uma influência na dinâmica cultural da cidade.
Naquilo que é a relação com os estudantes, o TAGV tem uma dinâmica que me parece muito interessante. Somos o palco privilegiado para os estudantes, nomeadamente através da Associação Académica e da atividade que desenvolvem, para mostrarem muito daquilo que fazem, portanto, essa ligação parece-me bem próxima. Por outro lado, também pensamos nos estudantes não só como produtores de espetáculos, mas também como um público específico, e é uma preocupação que temos: encontrar propostas que os tragam e que fomentem essa ligação. Será, porventura, das tarefas mais complexas que temos: percebemos que há espetáculos e determinadas linhas de programação que são mais apelativas e há outras que são mais de nicho.
Depois, podemos pensar na academia enquanto produtora de conhecimento e a relação entre esta e o TAGV. Aí, gostava muito de destacar aquilo que acho que vai acontecendo. O TAGV tem um projeto que é o LIPA, o Laboratório de Investigação e Práticas Artísticas, e que, na prática, faz a ponte entre a investigação em artes que existe na universidade e a necessidade de existência de um espaço performativo. Gosto muito de pensar no LIPA como uma ferramenta muito concreta para fazer essa ligação e aproximar esses dois contextos. Além de que, para lá de ser uma ferramenta específica para fazer essa aproximação, é também um fator altamente diferenciador daquilo que é o Teatro Académico Gil Vicente no país, porque faz precisamente essa ponte com a investigação, quer no âmbito de mestrados e doutoramentos, quer no âmbito da investigação em artes que é feita na universidade. Acho que é algo que devemos assumir, e que tem sido assumido, e que nos próximos tempos se tornará mais evidente na nossa atividade.
Esta programação representa também um reforço da ligação do TAGV a parceiros e redes internacionais?
Neste período que vai até fevereiro de 2025, não creio que seja correto falar de reforço, mas apenas de continuidade daquilo que têm sido as nossas ligações a projetos e a espetáculos internacionais. Temos alguns parceiros e nesta Meia Temporada o destaque nesse âmbito ia claramente para a École des Maîtres, que é uma iniciativa que já passou por aqui, e que é um projeto muito relevante que temos já há vários anos, em Coimbra, e que voltaremos a ter em 2025.
A École des Maîtres é um espaço de formação teatral avançada que ocorre em vários países e que tem em Portugal dois parceiros: o Teatro Nacional Dona Maria II e o Teatro Académico Gil Vicente. Este ano, devido às obras no Teatro Nacional de Dona Maria II, fomos o único parceiro a acolher uma apresentação. É um espaço muito interessante e muito relevante do ponto de vista da formação, e saber que vamos continuar a ter no próximo ano é algo que me deixa muito satisfeito.
Em estreia absoluta, o TAGV apresenta a Frágua de Amor: desafiaram o Bando de Surunyo e A Escola da Noite para levarem à cena esta peça. Como tem sido a colaboração entre estes projetos?
É um espetáculo que — e podia fazer aqui uma referência à pergunta anterior que colocou — mostra bem a ligação do teatro à academia. Na prática, estamos a fazer esta parceria com A Escola da Noite, mas também com investigadores da Faculdade de Letras no domínio da música e do teatro, especificamente de Gil Vicente. Estamos também a fazer esta parceria com o Bando de Surunyo, que tem uma ligação umbilical ao trabalho de investigação que é feito na Faculdade de Letras no domínio da musicologia. Portanto, a Frágua de Amor é um exemplo desse diálogo que existe entre a academia e as entidades culturais da cidade.
É uma produção de grande folgo porque, de facto, envolve meios consideráveis, envolve um investimento das várias estruturas aqui associadas e acho que vai ser um marco naquilo que é a representação de Gil Vicente. Vamos estar a receber em breve A Escola da Noite, que virá para aqui trabalhar e fará a preparação aqui e, em termos de programação, temos a possibilidade de fazer algumas apresentações no Teatro da Cerca de São Bernardo.
Ainda não foi revelado o nome da nova coprodução da Marionet com o TAGV. Qual tem sido o propósito deste mistério?
Tem que ver meramente com a gestão do processo de ensaio da companhia, que até à última hora pode eventualmente ter necessidade de fazer ali algum ajuste. Estamos a falar de uma opção que tem que ver com a coerência do ponto de vista da comunicação. É uma parceria que me deixa também muito satisfeito, porque a Marionet é uma estrutura muito particular, que tem um trabalho único muito relevante nesta confluência entre aquilo que é o teatro, as artes e a ciência. É uma parceria que não se fica por este espetáculo e que ao longo do ano vai tendo outros momentos, nomeadamente um colóquio que acontecerá, em 2025, sobre arte e ciência.
Tem sido dado algum destaque aos Futuros e Assombrações e às Ressonâncias. Pode explicar os conceitos por detrás destes projetos?
No caso do projeto Ressonâncias é um projeto que não terá apenas uma dimensão de performance. A questão da saúde mental tem sido, talvez desde a pandemia, muito destacada em diversos contextos. É uma preocupação que me parece ser crescente e, conhecendo o trabalho da Rita Alcaire — antropóloga, ativista, investigadora no seio da universidade e, em particular, do Centro de Estudos Sociais — fizemos-lhe um convite para que ela estruturasse um ciclo à volta das questões relacionadas com a saúde mental, que ela direcionou para esta perspetiva de saúde mental e storytelling.
O storytelling é aqui abordado como ferramenta no domínio da investigação em saúde mental. Depois, há aqui uma outra dinâmica que é a que tem que ver com a aproximação dos média e das artes à investigação em saúde mental. O que ela propõe é um conjunto de eventos que vão desde cinema e performance a uma exposição e uma instalação sonora. Vão também ser fomentados momentos de conversa e discussão com os públicos de forma a explorar este potencial que existe de contar histórias pessoais e concretas.
Depois, o Futuros e Assombrações é um ciclo que acontece pela segunda vez: aconteceu no ano passado e o resultado foi muito interessante. É um ciclo de performance, cujo resultado no ano passado nos deixou muito entusiasmados para recuperar o conceito e voltar a apresentá-lo este ano. A curadoria é da Isabel Costa e do Fernando Matos Oliveira e, entre 17 e 19 de outubro, tem três propostas de performance que vão acontecer aqui no TAGV.
Na música: os estilos e géneros musicais que compõem a programação são muito diversos, desde o jazz ao rock e à música eletrónica. À semelhança da religação com o local, manter esta diversidade é também uma prioridade para o TAGV?
No domínio da música temos, de facto, essa diversidade, mas há aqui uma linha que tem que ver com a qualidade das propostas e com o critério nas nossas escolhas que pode ser enfatizada mais do que essa ideia. Temos uma ligação ao jazz que gostava muito de destacar, particularmente ao Jazz ao Centro, de quem somos parceiros na produção do Festival Internacional de Jazz.
Gostava muito de destacar a ligação que temos a nomes e estruturas locais, de que se destacam alguns projetos com muita qualidade, nomeadamente o festival que vamos ter muito em breve, Lux Interior, cuja curadoria é feita por uma estrutura local. Em 2025, temos algumas propostas em parceria com uma outra estrutura, que é a Blue House, que também é uma estrutura da cidade. Portanto, parece-me que há de facto uma linha muito concreta e muito coerente em relação àquilo que é a nossa visão do lugar do TAGV na cidade e sobre a qual começámos a falar nesta entrevista.
Mas também há outras propostas dentro daquilo que é a nossa perspetiva. Os DJs são uma opção que experimentámos há pouco tempo e esperamos recuperar ao longo dos próximos meses, porque promovem essa aproximação das pessoas, para que venham aqui. Não necessariamente para ver um espetáculo no palco, mas virem aqui fruir deste espaço.
No cinema, algumas das exibições destinam-se aos públicos escolares. Em fevereiro, anunciou também a inauguração de uma sala especialmente dedicada aos mais novos. Têm procurado aproximar-se destes públicos?
Sim, os públicos mais novos têm sido uma preocupação grande. Acho que a primeira ação que tivemos nesse domínio foi precisamente a de criar um espaço mais amigável — que ainda está a ser pensado — no qual possam estar acompanhados pelos pais. Numa primeira fase, transformámos aquilo que é a sala verde num espaço que tem alguns figurinos que nos foram cedidos em parceria com algumas estruturas da cidade e que podem ser experimentados pelas crianças. Colocámos também uma máquina de fazer pinos do TAGV, com umas instruções muito claras e que permitem uma dinâmica engraçada entre pais e filhos.
É algo em que temos estado a trabalhar e que está a tornar-se visível para lá disso, nomeadamente através de oficinas que mensalmente teremos no TAGV. Estamos a falar de oficinas e pequenas sessões, tendencialmente para juntar à sessão de cinema, que acontece ao sábado uma vez por mês, mas que não tem necessariamente que acontecer junto de cinema. A ideia é que tenhamos uma sessão mensal que pode ir desde uma sessão de conto até uma sessão de origami. Depois, naturalmente, temos toda aquela relação que já tínhamos e que temos tentado aprofundar com algumas escolas da região.
Em novembro, para além dos Caminhos do Cinema Português, as artes negras ganham alguma visibilidade na programação. Destacaria algum dos projetos?
O Afro-Portugal é um evento que produzimos em conjunto com A Escola da Noite e com o apoio da Cena Lusófona e de outros parceiros da cidade. É um espaço que acontece de dois em dois anos e que tem um foco óbvio à volta da reflexão sobre a memória colonial portuguesa, sobre o racismo, e tem um intuito muito específico de dar visibilidade às artes negras. Este ano terá o tema “Mundos em Movimento” e é um festival que tem a curadoria da Catarina Martins — mais uma ligação à academia — que é professora na Faculdade de Letras e investigadora da Universidade de Coimbra, e que este ano se rodeou de mais um conjunto de pessoas ligadas às artes para fazer uma curadoria conjunta deste programa.
O programa é vasto e tem exposições, espetáculos e espaços de debate que me parecem muito importantes. Há um espetáculo que destacava, da Companhia Teatro GRIOT, que estará no Teatro da Cerca de São Bernardo e que me parece ser um espetáculo que vale francamente a pena manter debaixo de olho. É um espaço muito relevante do ponto de vista da reflexão e do ponto de vista artístico, que coproduzimos com muito entusiasmo.
Têm ainda uma exposição virtual: 50 anos a colar cartazes. Os 50 anos da Revolução dos Cravos foram o pretexto adequado para que o TAGV mostrasse uma parte significativa do seu arquivo pela primeira vez?
Sim, é um dos projetos que mais me entusiasma nesta fase. Durante este período de comemorações dos 50 anos do 25 de Abril tivemos aqui um conjunto de eventos em vários domínios, mas no seio daquilo que foi a nossa discussão interna para ver como podíamos entrar nestas comemorações, pareceu-nos muito evidente que poderíamos abrir ao mundo o nosso acervo de cartazes.
O TAGV tem um arquivo muito rico de cartazes referente aos seus 63 anos de atividade. Ainda não está inteiramente inventariado, mas já há muito trabalho feito e, a partir desse trabalho, conseguimos criar algumas narrativas e alguns conjuntos coerentes de cartazes que nos ajudam a contar, não só a história do que aconteceu ao longo destes 50 anos no TAGV, mas, através do que aconteceu aqui, refletir também um pouco sobre aquilo que foi a evolução da nossa democracia nestes 50 anos.
Há esta ligação evidente da arte e da ocupação dos espaços artísticos àquilo que é o pulsar democrático, social e económico do país. Olhar para os cartazes, que são objetos de design muito interessantes, ao longo das suas várias épocas, permite também fazer uma reflexão mais ampla e compreender outros movimentos para lá daquilo que é a simples ocupação do TAGV. Optámos por uma solução virtual — que é menos habitual — porque quisemos levar isto para lá do espaço expositivo do teatro e quisemos aproveitar muito concretamente este monitor que temos aqui virado para a cidade, virado para o trânsito, e permitir às pessoas que passam aqui todos os dias tomarem contacto com este projeto que nos vai acompanhar durante as próximas semanas.
O arranque desta Meia Temporada foi marcado por uma renovação da imagem do Teatro. Quais as principais mudanças e de que forma se alinham com a visão futura do TAGV?
Esta mudança ao nível do design de comunicação não é uma cisão. Continuamos com a logomarca do teatro, mas fazemos uma nova leitura a partir daí, que tem dois objetivos. Um dos objetivos tem uma natureza mais funcional e tem que ver com a necessidade de respondermos a aspetos específicos relacionados com a comunicabilidade dos nossos conteúdos. Depois, há uma outra necessidade que tem que ver com a necessidade de algum refrescamento.
Foi um desafio que fizemos a dois designers sediados no Porto, o Rui Silva e o Sérgio Couto, e que está a tornar-se pública de forma faseada: primeiro, aqui nos ecrãs locais e nas redes; e a médio prazo será também visível no website e noutros suportes do teatro. Como todas as estruturas que concebem e implementam uma linha específica de design de comunicação, o nosso grande desejo é que aquilo que é a imagem do TAGV passe a ser facilmente reconhecida como tal. Acredito que isso vai acontecer muito em breve, porque é uma abordagem bem distinta e acho que em breve se tornará uma marca muito reconhecível associada ao TAGV.