A discussão é tão antiga quanto o comportamento humano que lhe dá origem, a divisão sobre a natureza humana e a repartição entre as doses de individualismo e coletivismo de que somos compostos. Quase igualmente antiga é a discussão sobre as circunstâncias da história, e se resultam de relações aleatórias ou causais, determinismo ou indeterminismo é essa a questão - que nisto da vida os cinzentos são só para os líricos e o preto e branco tornam, dizem, a vida mais simples.
Deixemos então a filosofia e voltemos à hi(e)stória. Era uma vez, no Portugal do Estado Novo. Esta história, em particular, de diferente de tantas outras só tem o acaso de ser a minha. Avós paternos, ambos nascidos em 1923, avó em Faro, 4ª classe, avô em Lisboa, escola comercial; avó materna, nascida em Oliveira do Hospital, em 1935, equivalente ao 7º ano do liceu, em artes, avô materno, em Lisboa, em 1940, 2º ano do ciclo preparatório. Muitas histórias caberiam dentro desta outra, tantas que encaixariam a papel químico em tantas outras, que as histórias são só diferentes para quem as vive, mas encaixam sempre no rolo compressor das estatísticas. De entre as semelhanças estatísticas, as variações da média podem ser, contudo, muito determinantes para a alteração do rumo natural das coisas.
Assim, calha que da filha de uma telefonista e de um homem de sete ofícios, cuja atividade profissional começou ainda de criança, por entre a banca de fruta dos pais e o carregar de vigas de ferro pelas ruas de Lisboa, e do terceiro filho de um guarda-livros e de uma cuidadora profissional, profissão (ainda) não remunerada e não reconhecida, relegada ao título de “dona dE casa”, que dA casa, dono era ele, tenham calhado aqueles que me viriam a dar origem a mim. E, naquele Portugal do Estado Novo, salazarista, calharia que as probabilidades ditariam destino diferente aos meus pais que aquele que viriam a ter. Com 13 e 15 anos em 1974, mãe e pai, respetivamente, concluiriam o ensino secundário no Liceu Camões, em Lisboa, e seguiriam, depois, para concretizar a vocação de virem a ensinar outros, após terminarem as licenciaturas em Matemática e História, já após aquele ano em que calhou haver uma madrugada inicial, inteira e limpa.
Nada de novo nesta história, como digo, ou nada de particularmente diferente, exceto no facto de ser diferente de tantas. Porque abril e a escola pública assim o permitiram, que, de outro modo, os recursos da casa não o teriam permitido. Assim, não fui eu o primeiro da minha família a acabar um curso de ensino superior. E, ainda hoje, esta é a frase que é tantas e tantas vezes, demasiadas vezes, repetidas por outros de fortuna etária maior que a minha. E porque trago esta minha história, nossa, à baila? É que, independentemente da corrente filosófica em que se insiram, acreditem na causalidade ou aleatoriedade das coisas, o que me parece certo é que sem um conjunto de fatores que se conjugaram entre si, as pequenas diferenças da minha história, e de cada um dos protagonistas que aqui trouxe, em relação aos dados estatísticos das suas diferentes épocas, o mais provável é que os seus futuros, e o meu, tivessem sido consideravelmente diferentes.
Por acaso da história, calhou que a minha estreia no Gerador coincidisse com a semana em que se realizam mais umas eleições legislativas. Ao longo destas semanas de campanha, repetiu-se incessantemente a ideia de que esta geração, aquela de que faço parte, é a mais qualificada da história de Portugal. Uma rápida pesquisa por indicadores estatísticos mostra que este nível de qualificações da nossa população contrasta, vincadamente, com a realidade de há pouco menos de meio século. Esta conquista que fizemos às trevas, melhorando as nossas qualificações, assentou, e continua a assentar, na trave mestra da escola pública. Com todos os seus defeitos, com todos os desafios que enfrenta, com a necessidade imperativa de modernização que tem, o ensino público continuará a ser a pedra angular de todo o processo, mantendo-se implacável na luta contra a ignorância e o medo do desconhecido.
Custa-me, por isso, entender que os frutos desta escola pública germinem hoje em sementes que procuram corroer o seu modelo de financiamento. O umbiguismo libertário, assente quase exclusivamente na ideia de redução dos mecanismos contributivos de solidariedade, são contrários aos ensejos de consolidação coletiva dos nossos níveis qualitativos de educação. Reduzir o bolo das contribuições disponíveis para o financiamento público da educação não equivale ao triunfo do direito individual de escolha ou a afirmação pessoal do mito meritocrático; pelo contrário - será, a concretizar-se, o empobrecimento coletivo da oportunidade de cada um de nós lutar pela realização dos seus anseios individuais.
As histórias desta geração querem-se, pois, aborrecidamente iguais na beleza imensa das suas infinitas variações. Iguais na estatística que nos aproxima dos melhores indicadores europeus e mundiais de educação e de qualificações, e que não nos permita um retrocesso por todos indesejado. Iguais no facto de, independentemente do ponto de partida, os mecanismos continuarem à nossa disposição de forma incondicional. E coletiva. Ao serviço das especificidades de cada um de nós.
PS: Esta é a primeira crónica, de periodicidade mensal, com o “Gargantas Soltas”, do Gerador. Não poderia iniciar esta colaboração sem agradecer o convite que me foi feito pelo seu presidente, Tiago Sigorelho, e realçar – porque, infelizmente, é episódio raro – a disponibilidade que mostraram em que esta fosse paga. Por comum acordo, o valor estabelecido será doado à associação ANGEL, que tem como finalidades prestar auxílio, informação e apoio aos familiares de portadores da Síndrome de Angelman em Portugal, bem como a profissionais e técnicos de saúde, investigadores e demais interessados - http://www.angel.pt
- Sobre o João Duarte Albuquerque -
Barreirense de crescimento, 35 anos, teve um daqueles episódios que mudam uma vida há pouco mais de um ano, de seu nome Manuel. Formado na área da Ciência Política, História e das Relações Internacionais, ao longo dos últimos quinze anos, teve o privilégio viver, estudar e trabalhar por Florença, Helsínquia e Bruxelas, onde reside e trabalha atualmente - algures pelos corredores do Parlamento Europeu. Foi presidente dos Jovens Socialistas Europeus e candidato ao Parlamento Europeu, nas eleições de 2019.