Inspirado no francês Film Femme Mediterranée, o Olhares do Mediterrâneo é o primeiro festival de cinema internacional em Portugal dedicado exclusivamente ao trabalho de mulheres. Desde 2014, as seleções contemplam curtas e longas-metragens de cineastas naturais ou habitantes da região mediterrânea – filmes que raramente chegam às grandes salas de cinema, segundo a codiretora do evento, Silvia Di Marco, explica em entrevista ao Gerador.
A organizadora realça a diversidade das perspetivas que trazem os programas: “como cada mulher tem os seus interesses e preocupações, cada uma faz filmes sobre temas diferentes”. Para Silvia, a pluralidade também é identificada nas oportunidades de produção, variáveis de acordo com o local de origem, razão pela qual a curadoria “tenta sempre incluir filmes de todos os países [candidatos]”. “A qualidade cinematográfica é importante, mas não vamos apresentar cinco belíssimos filmes franceses, deixando de fora um filme egípcio, por exemplo, que pode não ser perfeito do ponto de vista técnico porque as condições de filmagem não permitiam”, garante.
O nono ano do festival arrancou com uma retrospetiva das últimas cinco décadas do cinema libanês, realizada em parceria com a Cinemateca Portuguesa. A Civilized People (1999), ficção ambientada na guerra civil, de Randa Chahal, abriu as sessões Olhares do Líbano. Primeira realizadora árabe a apresentar um filme em Cannes, em 1974, Heiny Srour foi a convidada de honra da programação. Além de apresentar as longas Leila and The Wolves (1984) e The Hour of Liberation Has Arrived (1974), a cineasta ministrou a masterclass Making World-changing Films, sobre o potencial transformativo do cinema, na qual frisou a dificuldade de ultrapassar a falta de financiamento para novos projetos.


Após as exibições, os visitantes também puderam conferir a exposição Order Within The Caos, da artista Nour Ali, mestranda em Arte e Ciência do Vidro e da Cerâmica na NOVA FCSH. O sucesso das atividades com enfoque no país convidado, novidade da edição, foi uma agradável surpresa, afirma Silvia Di Marco, revelando o desejo de manter a ideia para os próximos anos, uma vez que “o público está interessado em descobrir mais a fundo o cinema de alguns países”.
Casa do evento, o Cinema São Jorge, por sua vez, acolheu a abertura oficial do Olhares do Mediterrâneo 2022, que destacou Murina (2021), de Antoneta Alamat Kusijanović. A 19 de novembro, marcou-se ainda a estreia do documentário Novíssimas Cartas Portuguesas, que celebra os 50 anos da publicação Novas Cartas Portuguesas. A obra coletiva, como é definida na sinopse, produzida por Irina Pampim, reúne testemunhos de mulheres ativistas, como Maria Teresa Horta, Sara Barros Leitão e Helena Neves, que esperam manter esta história viva, explicou a produtora antes da sessão.
Mas nem só de filmes é feito o festival – encarado pela equipa, refere a codiretora, como uma forma de ativismo. Com debates e programas para as escolas, o grupo espera contribuir para a sociedade portuguesa, culturalmente ligada ao mediterrâneo, e “abrir janelas sobre realidades que, de outra forma, passariam ao lado”. “Fazemos parte da defesa do direito das mulheres a ver reconhecido o seu trabalho e de ter a sua voz ouvida”, diz Silvia. As conversas deste ano partiram das exibições de produções de 2021 e foram compostas pelos temas Palestina: Quotidianos e Resistências, Transexualidade e Por Trás das Persianas e Redes Internacionais: Trabalho Doméstico e Tráfico de Pessoas. Neste último, os especialistas Nuno Dias (NOVA FSCH) e Mara Clemente (ISCTE) refletiram sobre a escassez de direitos das empregadas domésticas em Portugal e os casos de tráfico humano na agricultura nacional.


Além da mostra de longas-metragens, secções competitivas premiaram a curta Sex Relish (A Solo Orgasm)(2021), de Ananda Safo, “um filme que é um elogio à liberdade feminina, de visionamento obrigatório para mulheres e homens”, de acordo com a nota do júri. Já Room Without a View (2021), de Roser Corella, ao denunciar o sistema da Kafala, promovido pelo Estado libanês, que legaliza a escravatura de trabalhadoras domésticas imigrantes, recebeu o prémio Travessias, voltado a obras que trabalhem as questões da migração e do colonialismo.
Lia (2021), de Giulia Regini, foi a curta realizada em contexto escolar que conquistou os jurados da secção Começar a Olhar, enquanto Mesa Posta (2022), da portuguesa Beatriz de Sousa, conquistou o Prémio Inatel. Também tiveram direito aos troféus feitos por alunas/os da Escola Artística António Arroio os filmes Scheherazade’s Diary (2013), de Zeina Daccache, e Erasmus In Gaza (2021), de Chiara Avesani & Matteo Delbò – melhores curta e longa-metragem, respetivamente, na opinião do público.


Próximo de completar dez anos, o festival admite a dificuldade de comunicar a abertura do seu período de submissões nos países do sul do mediterrâneo, facto que incentivou a criação de uma rede de festivais de cinema de mulheres da região, que hoje integra Portugal, França, Itália, Espanha, Líbano, Palestina e Turquia.
Outra ambição da equipa, revela Silvia Di Marco, é a possibilidade de promover a presença de cada vez mais realizadoras, a fim de criar momentos de partilha e de experiência entre as cineastas e o público. “Não vamos desistir porque ainda não conseguimos dar o grande salto – chegaremos lá”, promete a codiretora.