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Opinião de Paulo Pires do Vale

Operadores estéticos

Sobre a importância de palavras, actos e omissões Para a Isabel Alves 1. Palavras Ernesto…

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Sobre a importância de palavras, actos e omissões

Para a Isabel Alves

1. Palavras

Ernesto de Sousa sabia que a linguagem é um campo de combate e o lugar da revolução: a nomenclatura é uma forma política, promove valores e recria o mundo. As palavras são destruidoras ou criadoras - e uma revolução tem de passar pelos conceitos que recusamos, promovemos ou inventamos para moldar uma nova ordem. Afinal, no princípio era o logos.

A expressão “operador estético”, com que Ernesto de Sousa passou a designar-se depois de 1969, era um desses desvios semânticos nada negligenciáveis. Em vez da visão romântica, hierárquica e burguesa que a palavra “artista” transportava, era necessário sublinhar a estrutura horizontal, a proximidade e a integração do trabalho artístico na vida social e quotidiana. “Operador” não o distinguia de todos os outros operários, “estético” identificava o âmbito específico da sua intervenção no colectivo. As palavras não são neutras, transportam ideologia e mundividências. Produzem o mundo, não o representam ou dizem apenas.

A alteração conceitual proporcionava, também, a acomodação numa expressão de uma transdisciplinaridade pessoal: Ernesto era artista plástico, realizador de cinema, crítico, curador, historiador de arte, etnógrafo, investigador... A expressão “operador estético” permitia conter esses âmbitos de trabalho, desfazer as fronteiras entre todas essas funções e ultrapassar hierarquias académicas ou de prestígio social. Indisciplinava. Desse modo, os rótulos disciplinares perdiam a sua importância e promovia a desejada queda do império ditatorial dos especialistas – dos que definem um território e de quem o pode tutelar, excluíndo e levantando muros. A arte é parte da vida, não pode ser domínio fechado de especialistas.

Uma outra fronteira era posta em causa com o conceito “operador estético”: a que existia/existe entre o criador e o espectador. Também este é um operador estético, activo e participante. Esta subversão política/cutural do lugar do poder é a de uma capacitação democrática, de valorização e responsabilização de cada um pela cultura de todos. O desejo expresso de uma autêntica democracia cultural – que encontramos, também, na atenção que dirigiu a artistas (ditos) populares.

A operação realizada por Ernesto, mas obra de todos, seria uma transformação da comunidade, é uma proposta de “escultura social” (Beuys) – dando os instrumentos para que cada um se liberte e que não fique à espera da libertação dada por um outro.

2. Actos

Em 1974, para festejar o 1000011º aniversário da arte – no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra – Ernesto de Sousa propõe distribuir pelos participantes, cartões de uma série que sugeriu intitular: “como podes ser automaticamente artista”.  Eram instruções em que um operador se dirigia a um outro operador. A existência da obra nasceria deste encontro.

Aqui ficam algumas dessas instruções, a que Ernesto de Sousa chamou “actos” (para operarem esteticamente durante as férias, se assim quiserem):

“. dá um passeio e pensa que foi uma obra de arte

. decide-te a fazer de um dia da tua vida uma o. de a.

. funde um bocado de chumbo e verte-o num recipiente com água fria (resultará uma escultura)

. utiliza um rolo fita de papel de carnaval (ou qualquer outra coisa) e faz uma moldura aos objectos que entenderes do teu quotidiano, frigorífico, balde do lixo

. pega em certos objectos e forra-os de papel

. descreve os teu sonhos

. recorta palavras nos jornais, junta-as em grande número e tira-as à sorte ou em grupos numericamente definidos; com o resultado faz um poema

. faz uma cova; e pensa na escultura de ar que acabaste de criar

. aprende a técnica de fazer soldadinhos de chumbo e não faças soldadinhos; não faças mesmo nada se não te apetecer”[1]

3. Omissões

Muito fica por dizer sobre Ernesto de Sousa e muito está ainda por cumprir do que pensou, escreveu, fez e desejou. Outros conceitos, nomes e discursos são necessários e possíveis – que corresponderão a outros gestos e acções, a outros modos de organização do mundo, da arte e da vida. Que possamos aprender, com ele, a não cair na armadilha da omissão: há, ainda e sempre, muito Novo por encontrar.


[1] Ernesto de Sousa, Revolution my body (coord. Helena de Freitas e Miguel Wandshneider). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p.242

*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico

-Sobre Paulo Pires do Vale-

Filósofo, professor universitário, ensaísta e curador. É Comissário do Plano Nacional das Artes, uma iniciativa conjunta do Ministério da Cultura e do Ministério da Educação, desde Fevereiro de 2019.

Texto de Paulo Pires do Vale
Fotografia de Tomás Cunha Ferreira

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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