Só comecei a apreciar esplanadas após a pandemia. Não sei se pelo trauma do confinamento ou por uma crescente necessidade de sol. Peço um café e folheio uma revista esquecida na mesa. Numa das páginas, uma influencer que ajuda a atrair clientes para produtos de luxo, afirma que “o luxo não é ofensivo. A ostentação é que é”.
A ostentação é tão diabolizada que no Google alguém pergunta se é pecado. Mas como pode ser pecado algo que toda a gente faz? Quem acha que não ostenta, não lhe falta ostentação, apenas noção.
O ser humano é gregário, tem necessidade de aceitação e integração em grupos sociais. E possuir certos produtos ou aceder a determinados serviços são instrumentos de reconhecimento social. São lições que se aprendem logo na infância. Podemos estar a falar de um par de sapatos ou de uma caderneta de cromos. Podemos estar a falar de um penteado, do que jantamos, da presença de familiares na nossa vida, da cultura ou do nível económico do nosso agregado familiar.
Habituamo-nos a pensar na ostentação como exibição de luxo e dinheiro, mas nem sempre o poder económico é a moeda mais valorizada num grupo em que queremos ser aceites. O poder tem muitas formas. Em certos grupos, mais do que riquezas e bens, valorizam-se capacidades, ações, relacionamentos amorosos, viagens, aparência física, beleza. Tudo se pode ostentar. Até a bondade.
Criticarmos a forma como outras pessoas falam ou escrevem, não é ostentação do domínio de uma norma culta?
Exibirmos publicamente a lista dos livros que lemos ou possuímos não é ostentação de determinado nível cultural?
Exibir acesso a informação em primeira mão ou proximidade a certas pessoas não é ostentar poder?
E quando alguém que possui poder económico e social critica quem ostenta mas não tem nome, classe, dinheiro antigo? Essa crítica não é também uma forma de ostentação que tanto afirma pertença a um grupo como demarca a distância de outro?
Vivemos numa ilusão de pureza se julgamos que só novos-ricos, influencers e MC com dentes de ouro andam por aí a ostentar. Ostenta quem compra um ferrari e ostento eu quando afirmo que não tenho carro nem quero ter. Porque poder andar a pé também é valorizado como luxo por certos grupos. Pode significar ter tempo, cultivar um certo estilo de vida, ter saúde, viver numa cidade pacífica e com bom clima.
Ostento também com orgulho a minha identidade queer. Ser queer não é uma escolha, mas viver fora do armário é algo que nem toda a gente pode fazer.
Penso na roupa rasgada e nos piercings que usava quando estudava nas belas artes. Todo aquele aparato que enchia de desgosto a minha mãe. Para ela, o meu aspecto era um caminho para o degredo, mas na verdade era pura ostentação.
Pertencer a uma classe artística não me dava segurança financeira, mas oferecia-me o luxo de poder vestir o que bem entendesse sem que isso me prejudicasse. Significava por exemplo que estava fora do alcance de certas normas, e que não tinha de me submeter a um patrão que me obrigasse a usar manga comprida no verão. Eu orgulhava-me disso e não me cansava de o sublinhar. Que é isso senão ostentação de classe?
-Sobre a André Tecedeiro-
André Tecedeiro é um escritor português nascido em 1979. Tem licenciatura e mestrado tanto em arte como em psicologia. Publicou sete livros de poesia, sendo o mais conhecido “A Axila de Egon Schiele” (Porto Editora, 2020).