Como a maçã cortada em fatias (não sei se se diz fatia ou gomos — para a Sofia são gomos, mas não me faz muito sentido): pego na maçã e na faca e corto a maçã com a faca e a maçã deita sumo e ponho um lenço por baixo e as minhas amigas gozam comigo porque deixo tudo sujo e depois roubam as fatias que cortei e dizem que quem corta maçãs são os miúdos pequenos e eu não as oiço — maçã fatiada sabe melhor. Se se diz maçã fatiada é porque são fatias e não gomos. A Sofia não ficou convencida com este argumento, foi procurar à internet. A Marta chegou e disse “gomos são para as tangerinas e laranjas”. A Sofia perdeu.
Chega Maio e ninguém quer estudar e podemos passar horas a discutir como se devem ou não dizer as palavras, mesmo que os exames estejam à porta; afinal chegou Maio e com ele chegou o sol e podemos fingir que não estamos fechadas no mesmo edifício horas a fio em busca de questões doutrinárias escritas por professores de peito cheio. Este ano, com Maio, chegaram também as Jacarandá Sessions no Bus - Paragem Cultural e, com elas, Maio continuou a existir durante o resto do ano: todas as terças-feiras, de duas em duas semanas, numa cave sem luz natural. Mas está lá, eu juro.
Ao longo da minha estadia nas Gargantas Soltas tenho escrito muito sobre educação: tanto sobre os cursos científico-humanísticos do ensino secundário como sobre o ensino superior — falei deles por serem aquilo que conheço e por nunca me ter parecido haver na prática, uma outra via, por mais que a pudesse querer. Sem me aperceber, estabeleci uma hierarquia escolar e com ela fui eliminando opções melhores que aquela que acabei por escolher para mim — ou, pelo menos, diferentes.
Foi ao entrar nas Jacarandá Sessions que dei de caras com quem quebrou estas barreiras e teve a coragem de escolher um caminho seu em vez de escolher, para si, o caminho de outros. Hoje, venho então falar-vos desta outra perspetiva: do Coletivo Artístico Jacarandá e de dois dos seus sete membros, António Pinto e Xavier Lousada, para quem os cursos artísticos especializados foram a única via. Assim, vamos ao que interessa. Este encontro ocorreu numa segunda feira à noite no Bus - Paragem Cultural, onde o Coletivo tem a sua base, e onde nos sentámos a conversar, rodeados de instrumentos que esperavam a Jacarandá Session do dia seguinte.
Quem são os Jacarandá?
António: Neste momento somos um grupo artístico composto por sete pessoas: eu, o Xavier Lousada, o João Coelho e o António Santos (que fazem parte da banda Península), o designer João Vouga e a Matilde Bicudo, responsável pelas redes sociais.
Como nasceu o Coletivo Artístico Jacarandá?
António: O Coletivo começou durante a Pandemia quando a banda, da qual fazia parte, os Zaratan, ficou sem chão; tínhamos inclusive um álbum que acabou por nunca chegar a sair. Nessa altura conseguimos através da Vera Machado da Costa chegar ao dono do Village Underground e vimos a oportunidade não só de lá trabalhar esporadicamente, mas ainda de fazer as Zaratan Sessions. O Village precisava de um novo evento que trouxesse público jovem e acabámos por lá ficar até Dezembro de 2020 quando chegou a segunda vaga da COVID-19. Foi ao termos de sair daquele espaço que a Vera e o Francisco começaram a pensar o conceito do Coletivo. O objetivo foi, desde sempre, criar uma plataforma para artistas que não tinham essa capacidade: ajudá-los a crescer.
O que são as Jacarandá Sessions?
Xavier: As Jacarandá Sessions são jam sessions organizadas pelo nosso Coletivo que se distinguem das restantes por, no início de cada edição, podermos assistir ao concerto de um artista local com as suas peças originais, o que faz com que estejam sempre a aparecer novos núcleos trazidos por esse mesmo artista. Depois, são organizadas dez jams de sete minutos em que todos são convidados a vir tocar e a tocar qualquer estilo musical.
Inicialmente o Coletivo estava mais ligado à música. Porquê expandi-lo para outras áreas artísticas?
António: No início, o Coletivo tinha uma forma diferente de funcionar. Quem o pensava e fazia acontecer eram a Vera, o Francisco e a Beatriz Felício e os três saíram de Portugal com o final da Pandemia. Acho que acabou também por ser uma consequência de termos sido alunos da Escola Artística António Arroio: fomos sempre muito abertos a pensar as artes como um conjunto; afinal, este é um mundo que consegue ser um pouco agressivo e onde temos de nos defender e este acabou por ser o nosso mecanismo de defesa.
Xavier: Desde as Zaratan Sessions que o Coletivo queria crescer e a Vera — fotógrafa — também queria expor o seu trabalho. Isso fez com que, com ela, nos virássemos para outros caminhos. O mundo das Artes é uma rede gigantesca em que todos precisamos uns dos outros e não é justo os músicos só darem plataforma a outros músicos. Da pouca experiência que temos, por exemplo, enquanto Península — que tem um ano de projeto — fizemos já várias colaborações com outras áreas artísticas, basta pensar no designer que nos faz as capas.
O que vos influenciou a escolher seguir uma carreira na música? Sentem que a escola vos empurrou neste sentido?
António: Quando eu fui para a Escola Artística António Arroio estavam a passar-se muitas coisas na minha família, foi também quando comecei a ganhar interesse pela música. Ver o meu avô doente a tocar piano despertou algo em mim. Antes até estava mais interessado em Cinema e ia comprar uma câmera, mas acabei por comprar um baixo. A escola nunca me empurrou nesse sentido, antes pelo contrário, faltava-lhe dinâmica.
Xavier: O programa musical da escola é horrível. A partir do momento em que compras um instrumento na papelaria está tudo estragado. Falta contextualização: antes de começar a produzir temos de consumir coisas artísticas e quando aprendemos música na escola não nos dão o que ouvir: dão-nos uma flauta e ensinam-nos a ler pautas e pronto, tocamos o titanic até ao final do ano — essa é a educação musical. Só serve para dizer que existe.
Em que pensam que se deveria focar o ensino artístico? Numa vertente mais técnica ou mais emocional?
Xavier: Os dois, mas só quando se tem o sentido emocional é que se procura a técnica. A Arte está completamente ligada às emoções e isso não nos é ensinado na escola, a menos que se vá para a António Arroio ou para a Soares dos Reis. Na António Arroio, no primeiro ano, passamos por todos os cursos e só no ano seguinte escolhemos para onde ir e isso é fundamental porque só aí temos um contexto das várias hipóteses e podemos realmente fazer uma escolha. E, quando a fazemos, a nossa cabeça tem tantas novas referências que mais facilmente pensamos fora da caixa.
António: Por isso é que existem conservatórios cheios de miúdos que perderam a paixão. O lado emocional é o que nos faz continuar, seja o que for: se quero desenhar um braço é porque tenho uma referência da qual me quero aproximar ou até destruir ou refazer. Também no nosso coletivo eu, por exemplo, adoro pintura, cinema, animação e inspiram-me para as coisas que faço.
No Coletivo, qual o vosso objetivo enquanto criadores?
António: Quero mandar cá para fora. Continuar a criar. Fazer disto uma plataforma mais sustentável para muita mais gente. Enquanto jacarandá estamos agora associados ao Bus - Paragem Cultural e queremos crescer, ser mais um ponto de Lisboa que ajude novos artistas e que traga mais ideias à conversa: abranger novas áreas artísticas e novos espaços, produzir mais conteúdos digitais também.
Xavier: Um dos papéis da Arte é permitir-nos estar à vontade para exprimir aquilo que não queremos exprimir em palavras, e exprimi-lo de uma maneira que só nós percebemos. Hoje em dia somos muito controlados, as emoções estão distraídas com as redes sociais e etc — e a Arte permite-nos não ter medo das emoções fortes e evoluir enquanto pessoa. Da minha perspectiva bastante pessoal, o que me move é nós, enquanto artistas, estarmos unidos. Nesta área, somos bastante enganados e iludidos por soluções totalmente precárias e, de repente, termos conseguido criar um espaço — não muito grande — mas que dá a oportunidade a novos artistas, pequenos artistas, de se apresentarem e saírem daqui com um dinheirinho no bolso e com uma noite agradável, é quase inimaginável.
Pensam que seja mais fácil crescer enquanto artistas numa pequena ou grande cidade?
Xavier: Eu cresci num meio artístico bastante underground — do punk rock e etc — estando muita dessa malta envolvida em projetos associativistas, coletivos,... e muitos deles saíram da cidade e foram viver para o campo. Na cidade há um ambiente competitivo, parece que não há espaço para todos — o que é uma enorme ilusão; cada projeto é um projeto e mesmo que semelhantes nunca existem dois iguais. Já no interior, em Seia, que é o que conheço melhor, existe uma série de grupos e entidades independentes e eles procuram sempre trabalhar todos juntos para conseguirem chegar a um fim comum. Na cidade perde-se este objetivo: distraímo-nos com os nossos próprios problemas, com o stress.
António: Mesmo assim, é bom, sendo artista, ter nascido na cidade. Estás mais exposto a coisas novas e há mais pessoas; acabas por ganhar uma maturidade diferente graças à abertura que a cidade te dá. Vi muita gente vinda do interior com a ideia de que vão conseguir e depois chocam com a cidade, aqui as coisas são competitivas de uma maneira que não faz sequer sentido.
Quando decidiram ser artistas? Não tiveram medo?
Xavier: Durante muito tempo tive muitos complexos ao pensar no tipo de vida dos músicos. Ao estudar música, ouvimos que a vida de artista é difícil, que temos de nos esforçar e que mais vale ir estudar outra coisa. Os meus pais apoiaram-me, isso nem foi um problema, o problema estava em mim próprio por não acreditar na minha capacidade para singrar neste meio. Temos de estar preparados para a vida como artistas porque ela está sempre a dar-nos chapadinhas e temos de estar sempre a aguentá-las; há meses em que não encontro trabalho e depois no mês seguinte tenho uma série de concertos marcados. Não consigo convencer a minha cabeça a trabalhar num nine-to-five enquanto aqui trabalho dentro de um espaço com um sistema por si já alternativo e com pessoas que me apoiam.António: Sempre fui aluado e quando era mais novo tinha algumas inseguranças em relação às minhas capacidades. Foi ao virar-me para a Arte que descobri algo em que era bom, que conseguia fazer, e atirei-me de cabeça sem pensar duas vezes. As artes deram-me um propósito e pensei que mais valia fazer algo de que realmente gosto, por mais que isso implique viver numa situação precária. Temos de ser felizes com o que fazemos na vida, e viver em harmonia com o que queremos ir fazendo: hoje posso ser músico e amanhã já não. Não podemos ter medo de arriscar e isso é o importante. Compensa.
-Sobre a Noa Brighenti-
Noa Brighenti começou por colecionar conchas e cromos aos 6 anos. Com 9 recitou o seu primeiro poema, teve o seu primeiro amor e deu o seu primeiro concerto no pátio da escola. Fartou-se dos museus aos 13, jurou que nunca mais pintaria aos 14 e quando fez 17 desfez este juramento. Com 20 anos, coleciona gatos e perguntas. Pelo meio, estuda Direito na Faculdade de Direito de Lisboa, anda, pinta e lê. De vez em quando escreve — escreve sempre de pé.