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PHDA nas mulheres: como o preconceito de género influencia a nossa saúde mental

Sónia Quinche partilha a sua experiência pessoal e a de outras mulheres com Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA).

Texto de Sónia Quinche

Ilustração de Marina Mota

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 Tradução: Rita Azevedo | Voxeurop

A Agathe estava à minha espera à porta. Como sempre, estava atrasada. Enquanto escovava os dentes, peguei na minha mala do quarto e lembrei-me de que, antes de sair, queria limpar alguma sujidade do chão que vi quando tratava das plantas. Apressada e com pasta dos dentes a escorrer pelo canto da boca, desci as escadas a correr. Segurei a escova de dentes na boca para poder pegar na vassoura com a mão direita e no apanhador com a mão esquerda, e subi as escadas para limpar rapidamente. A Agathe olhou para mim, surpreendida, mas sobretudo divertida, exclamando: “Meu Deus, tens mesmo PHDA!”

A primeira vez que soube o que era a PHDA, tinha 20 anos. Estava a participar num seminário sobre educação de crianças com necessidades de apoio. Nessa altura, era educadora voluntária num grupo de escuteiros e o objetivo do seminário era proporcionar-nos ferramentas para cuidarmos adequadamente dessas crianças. 

Emílio, um psicólogo com um doutoramento em Neuropsicologia, era o instrutor. Começou a falar sobre a forma como a PHDA se apresenta nas crianças e, logo no primeiro sintoma que enumerou, senti que estava a descrever a minha personalidade. As duas primeiras coincidências até foram engraçadas — e digo coincidências porque ser um pouco “esquecido” e “distraído” não quer dizer nada. O que se passa é que, à medida que ele ia enumerando os sintomas, eu ia-me identificando com todos eles: crianças que não conseguem medir o tempo corretamente, perdem a noção do tempo e estão sempre atrasadas; crianças que têm dificuldade em concentrar-se ou que se perdem na hiperfocalização; constantemente distraídas, não conseguem estar caladas; estão sempre a interromper os outros a meio de uma frase, são incapazes de manter uma rotina... 

Cada um deles: confere, confere, confere. Vi a minha vida, todos os pormenores, passarem-me diante dos olhos como num filme de Malick — completamente desligada do mundo real. Finalmente, os meus colegas trouxeram-me de volta à realidade: “Sónia, a criança que ele está a descrever — és tu!”. Senti-me como se estivesse a derreter na minha cadeira. O que eu encaixar-me perfeitamente no perfil de “criança com necessidades de apoio” significava?

No início desse ano, o Emílio tinha diagnosticado involuntariamente a minha amiga Marta. Ele pediu a um grupo de jovens do grupo de escuteiros para fazerem alguns testes e avaliações para a sua investigação de doutoramento. A Marta era uma delas. No final do processo, o Emílio disse à Marta e à mãe dela que não podia incluí-la no seu processo porque precisava de participantes neurotípicos, o que ela não era: os resultados dela apontavam para um diagnóstico de PHDA, caraterizada por desatenção.

Os sintomas da PHDA diferem de pessoa para pessoa e são normalmente classificados em dois tipos: PHDA-desatenção (PHDA-I), para as pessoas que apresentam padrões persistentes de distração, desorganização e esquecimento, e PHDA-hiperatividade/impulsividade (PHDA-HI), para as que apresentam níveis mais elevados de hiperatividade física, impulsividade e agressividade (Attoe & Climie, 2023). Mais recentemente, o DSM-5 enumera três apresentações primárias: Apresentação Predominantemente de Desatenção, Apresentação Predominantemente de Hiperatividade-Impulsividade e Apresentação Combinada (pequeno spoiler, a última é a minha!) (Wettstein et al., 2024). 

Curiosamente, as raparigas e as mulheres — quando diagnosticadas — tendem a ser classificadas no tipo de desatenção, enquanto os rapazes são frequentemente diagnosticados com o tipo de hiperatividade.

É biologia, não é?

É comum dizer-se que os cérebros dos rapazes e das raparigas funcionam de forma diferente — mas como é que podemos realmente saber isso? Em 1998, Hartung e Widiger analisaram 243 estudos publicados no Journal of Abnormal Child Psychology (EUA) ao longo de seis anos. Encontraram um desequilíbrio relativamente ao sexo dos participantes: nos setenta estudos centrados na PHDA, 81% dos participantes eram do sexo masculino e apenas 19% do sexo feminino. Constataram também que 69 dos 243 estudos foram efetuados exclusivamente com crianças do sexo masculino (Attoe & Climie, 2023).

Assim, não podemos afirmar com confiança que a ciência confirma diferenças biológicas no cérebro humano com base no sexo, nem podemos definir claramente quais seriam essas diferenças. Basicamente, não sabemos, porque, historicamente, a ciência tem frequentemente deturpado ou excluído completamente o corpo feminino (Green et al., 2019). Por outro lado, se olharmos para as normas sociais ocidentais, vemos que as crianças são ensinadas a comportar-se de forma diferente de acordo com o género que lhes é atribuído. As normas sociais desempenham um papel enorme na formação da forma como nos apresentamos ao mundo desde uma idade muito jovem (Macklin, 2024).

Em 2024, Wettstein et al. realizaram um estudo com o objetivo de avaliar os sinais de hiperatividade em adultos com suspeita de PHDA, abordando o potencial viés de género no diagnóstico. Com um conjunto de dados de mais de quinze mil pacientes — 49% dos quais eram mulheres — os seus resultados sugerem que as mulheres adultas com PHDA sofrem de hiperatividade da mesma forma que os homens.

Mecanismos de compensação: camuflar e agradar às pessoas

A Sandra é uma engenheira de telecomunicações de 36 anos, que me pareceu muito calma quando falei com ela. É simpática e tranquila, e fala calmamente. Disse-me que lhe foi diagnosticada PHDA de tipo desatento quando tinha 34 anos, depois de se debater com a sua saúde mental na sequência de um acontecimento emocional significativo na sua vida. Estava ansiosa por conhecê-la melhor, porque a única outra mulher com PHDA que conhecia na altura era a minha amiga Marta e, sinceramente, nunca percebi bem qual era a diferença entre o tipo desatento e o meu, o combinado.

Enquanto o tipo desatento se define por distração e esquecimento devido a uma mente hiperativa — pensamentos que saltam aqui e ali — apresenta-se frequentemente como calmo, introvertido e sereno. O tipo hiperativo ocorre em pessoas mais evidentemente vigorosas, com comportamentos perturbadores e ruidosos, reações impulsivas e episódios agressivos. 

Quanto a mim, tenho as duas coisas. Há reações químicas e sinapses elétricas a fervilhar a tempo inteiro na minha cabeça, mesmo quando estou exausta e só quero dormir a sesta com o meu gato. Na maior parte do tempo, sem medicação, tenho de dedicar metade do meu poder cerebral apenas para me comportar como um adulto bem-educado.

No entanto, a minha amiga Marta é uma pessoa muito enérgica, sempre a fazer alguma coisa, sempre em movimento. Começou a acampar e a fazer caminhadas quando era pequena e também jogou basquetebol. Se não está a trabalhar, está no ginásio ou na praia, ou a fazer caminhadas, ou a tocar guitarra. Está sempre a fazer algo. Basicamente, ela está sempre pronta para lutar — metaforicamente falando. É como se ela simplesmente tivesse de libertar a energia da forma que puder. No entanto, reparei que quando está rodeada de pessoas que mal conhece, tende a ser mais reservada e mais calma. Na verdade, também sou normalmente mais reservada e calada em situações novas e com pessoas que não conheço, estou sempre consciente de cada movimento que faço. É preciso tempo para que ambas mostremos quem realmente somos.

Por isso, foi muito engraçado quando perguntei à Sandra sobre o seu tipo de desatenção e os traços que moldam a sua personalidade aparentemente calma. De forma hesitante, com um sorriso tímido, respondeu que não tem a certeza se essa calma não será um mecanismo de cooperação, uma estratégia de autorregulação . Enquanto crescia sempre se sentiu invisível em casa e também não se enquadrava na escola ou entre as outras raparigas. Gostava de coisas que eram “um pouco rotuladas para rapazes e homens”.

“Uma rapariga não é educada exatamente da mesma maneira que um rapaz: o seu corpo é treinado para a passividade e o seu espírito é mantido num estado de dependência”, disse Simone de Beauvoir nas suas memórias, que intitulou Memórias de Uma Menina Bem-Comportada.

Sandra aprendeu a camuflar os seus impulsos, a agir como uma rapariga deve supostamente agir e a navegar pela vida com o sentimento constante de frustração por não ser como “devia”. Nunca pôde ser ela mesma. “A verdade é que sou diferente quando perco o controlo; quando estou zangada, por exemplo, começo a falar cada vez mais depressa. Não sei se estou calma de todo”, explicou.

Tal como sugerem Quinn e Madhoo (2014), as mulheres com PHDA podem desenvolver estratégias de compensação mais eficazes do que os homens para camuflar os seus sintomas.

“Porta-te bem” era uma indicação que ouvíamos muitas vezes quando éramos pequenas, seguida de “porta-te como uma menina crescida”, quando começámos a crescer. Pessoalmente, sempre detestei ser rapariga, odiava o que esperavam de mim por ser rapariga. Não queria sentar-me com as pernas cruzadas. Queria jogar futebol com rapazes em vez de ser obrigada a ir conversar com outras raparigas no parque durante o recreio. Queria trepar e ser forte.

Fui uma criança difícil, uma rapariga rebelde que lutava contra a autoridade, ao mesmo tempo que era uma das melhores alunas da minha turma. Os meus pais não sabiam como lidar comigo porque eu era as duas coisas: uma pirralha mimada e uma criança perfeita ao mesmo tempo — uma contradição ambulante. Era hiperativa, impulsiva e agressiva — toda a gente via isso. Mas tive de aprender a comportar-me, e aprendi, tal como as minhas amigas.

Quinn (como citado em Holthe & Langvik, 2017) explica que as raparigas, em geral, são ensinadas a ser educadas e complacentes. Aprendemos desde cedo a importância de um pedido de desculpas. E enquanto os rapazes são encorajados a mudar o mundo e a tornarem-se líderes, espera-se que as raparigas aceitem e sigam as regras estabelecidas pelos nossos pais, professores e pela sociedade. Aprendemos a não ripostar.

Surge então a questão para as raparigas e mulheres com PHDA: existe uma correlação entre “nascer rapariga”, ser “criada como rapariga”, ser ensinada “o comportamento apropriado para raparigas” e ser diagnosticada mais tarde na vida, frequentemente com o tipo desatento? Quando nos dizem para nos comportarmos como raparigas ou mulheres, somos obrigadas a aprender a camuflar quem realmente somos, ou arriscamo-nos a ser julgadas por violarmos as normas femininas (Holthe, 2013). Entretanto, como diz o ditado, "rapaz é rapaz".

A camuflagem é um termo usado para descrever o ato consciente ou inconsciente de suprimir comportamentos, caraterísticas ou respostas intrínsecas para se conformar às expetativas sociais que os neurodivergentes podem não adotar organicamente. É amplamente usado na comunidade neurodivergente e é aplicado por qualquer pessoa do espetro, independentemente da sua identidade de género. 

No entanto, nas raparigas e mulheres com PHDA, a camuflagem reflete a necessidade de se enquadrar não só em comportamentos neurotípicos , mas também em estereótipos de género que inibem os nossos sintomas naturalmente perturbadores. A investigação indica que as construções sociais que nos são impostas conduzem frequentemente a comportamentos de camuflagem e de agradar a toda a gente, contribuindo para um diagnóstico errado e tardio (Holthe & Langvik, 2017; Wettstein et al., 2024).

Como já foi referido, historicamente, as mulheres e as raparigas têm sido pressionadas a exibir comportamentos mais empáticos e obedientes. Somos ensinadas a dar prioridade às necessidades das outras pessoas em detrimento das nossas, o que muitas vezes leva a padrões de agradar às pessoas e a negligenciarmo-nos a nós próprias para satisfazer as pessoas que nos rodeiam. Como resultado, muitas de nós crescemos sem saber como estabelecer limites e, em alguns casos, sem sermos capazes de reconhecer quais são os nossos limites. Desde muito cedo, isto induz sentimentos de desconforto e inadequação, porque a forma como nos sentimos intrinsecamente não se alinha com a forma como é suposto sentirmo-nos.

Outra jovem com quem falei, Mia, diagnosticada aos 23 anos, disse-me que cresceu a pensar que era “apenas má pessoa” porque não conseguia manter a atenção quando os amigos falavam com ela. Condenava-se a não ter ligações profundas e significativas, porque, para ela, não conseguir prestar atenção significava que não se importava — como se estivesse a ignorar o bem-estar das pessoas que lhe eram próximas. Apesar de ser profundamente empática e estar ativamente envolvida em causas sociais desde tenra idade, achava que era má pessoa por se distrair enquanto falava com as pessoas. 

Inês, diagnosticada aos 26 anos, teve uma experiência semelhante: costumava ver-se como “uma má criança, uma má aluna”. Gabriela, diagnosticada aos 31 anos, cresceu constantemente a pedir desculpa e a culpar-se pelos seus “defeitos”, uma vez que não tinha uma explicação para esses “traços de personalidade” que a colocavam frequentemente em conflito com os outros.

O facto de não sabermos que os nossos cérebros funcionam de forma diferente fez com que carregássemos a culpa e a frustração durante esses anos cruciais em que os adolescentes estão a construir a pessoa em que se estão a tornar, com lemas constantes e gritos de fracasso como “Não fiz de propósito!” (Gabriela); “Eu só quero ser normal!” (eu) ou “Eu não pertenço a este mundo” (Adriana, diagnosticada aos 33 anos). Todas nos lembramos de situações em que dissemos ou fizemos coisas prejudiciais por impulsividade, porque não nos conseguimos controlar naquele momento, e isso fez-nos sentir culpadas e inadequadas.

Estes sentimentos de insuficiência e incapacidade criam a base perfeita para uma baixa autoestima, juntamente com o grande elefante na sala: os problemas de saúde mental de que as raparigas, adolescentes e mulheres adultas, com e sem um diagnóstico de PHDA, também sofrem, independentemente do seu contexto socioeconómico ou geográfico.

Existem taxas mais elevadas de comorbilidades tais como depressão, ansiedade ou perturbações alimentares em raparigas e mulheres com uma PHDA não diagnosticada (Attoe & Climie, 2023; Quinn & Madhoo, 2014; Wettstein et al., 2021). Portanto, as mulheres são frequentemente diagnosticadas e tratadas para uma condição comórbida antes de obter um diagnóstico de PHDA. Em 2005, Quinn descobriu que 14% das raparigas com PHDA tinham tomado antidepressivos antes de finalmente receberem o tratamento adequado para a sua PHDA, em comparação com apenas 5% dos rapazes. Por exemplo, tinha 15 anos quando tomei Diazepam pela primeira vez, quando comecei a ter crises de ansiedade que, na altura, ninguém compreendia bem.

A verdade é que, e agora sei disso, a dicotomia entre ser a rapariga perfeita — a que correspondia às expetativas académicas, que era popular na escola, bem comportada e que sabia o que queria — e a rapariga caótica — a que não compreendia bem as dinâmicas sociais e se sentia isolada a maior parte do tempo, não conseguia dormir à noite e se sentia fora de controlo — estava a destruir a minha saúde mental.

Foi durante este período que começaram a surgir pensamentos suicidas. A minha ansiedade social a colocar-me em situações complicadas, passando noites em claro online, socializando com pessoas muito mais velhas do que eu ou bebendo quantidades absurdas de álcool. Entretanto, o meu profundo desejo de ligação levou-me a experiências sexuais precoces. Sentindo que não me enquadrava, apresentava-me como uma rapariga aventureira e destemida, que apenas questionava as regras que lhe eram impostas.

A Adriana tinha uma história semelhante à minha. Não se recorda da primeira vez que idealizou a morte, porque esses pensamentos acompanharam-na “desde sempre”. Também ela assumiu o papel de má menina, sexualizando-se desde muito cedo e usando o álcool como escape emocional. Éramos duas adolescentes de origens completamente diferentes, ambas perdidas na nossa desregulação emocional, sentindo que não pertencíamos a lado nenhum, ambas com dificuldades em estabelecer relações saudáveis e procurando consolo no álcool e na hipersexualidade.

Um estudo de Young et al. (2020) concluiu que “ao longo da adolescência e na transição para a idade adulta, há um aumento do comportamento de risco que pode estar associado a sintomas de hiperatividade e/ou impulsividade”. Existe uma elevada taxa de adolescentes com PHDA que se envolvem no consumo de álcool, tabaco ou drogas, e em comportamentos sexuais de risco. É normal que os adolescentes comecem a aventurar-se e a explorar mundos desconhecidos e proibidos, mas para as raparigas adolescentes que nem sequer compreendem o que é “normal”, as probabilidades de se envolverem e aceitarem experiências prejudiciais ou abusivas são muito maiores — especialmente porque fomos nós que nos colocámos nessas situações. A baixa autoestima, a confusão e o estigma social podem deixar-nos mais vulneráveis ao assédio sexual, à exploração e a relações abusivas ou inadequadas.

Ser normal é um tema importante quando entramos na idade adulta. Crescer não é fácil para ninguém — há muitas possibilidades e caminhos a explorar — mas ter uma condição neurológica não diagnosticada torna este processo ainda mais difícil e, por vezes, profundamente doloroso. Quando questionadas sobre a forma como o diagnóstico influenciou a sua vida, todas as mulheres que entrevistei deram a mesma resposta: melhorou-a.

Uma doença cujo diagnóstico é uma luta

Ultimamente, é frequente ler ou ouvir dizer que “agora toda a gente tem PHDA”, como se ter PHDA fosse apenas uma tendência, uma dança parva no TikTok. Na realidade, não é assim tão fácil obter um diagnóstico enquanto rapariga ou enquanto mulher adulta. Como explicado anteriormente, as raparigas têm sido historicamente subdiagnosticadas porque a PHDA costumava ser considerada “uma doença de rapazes” (Holthe e Langvik, 2017). Atualmente, a taxa de diagnóstico em crianças é de 3:1 de rapazes para raparigas.

As mulheres adolescentes e adultas têm de lutar pelo seu diagnóstico — mesmo que tenhamos a sorte de estar em terapia antes de o obter. Em Portugal, a PHDA só foi considerada como uma possível doença em adultos em 2023, apesar de já ter sido contemplada no DSM-5 em 2013. 

No meu caso, após três anos de terapia para a ansiedade e a depressão, e quase 15 anos após a minha primeira toma de Diazepam; 10 anos a pensar “e se...?”, a ler artigos, estudos de caso e a reconhecer-me nos sintomas de PHDA, sugeri finalmente à minha terapeuta que talvez tivesse PHDA. A sua resposta foi perguntar porque é que eu sentia a necessidade de obter um rótulo. Tentei explicar-lhe que não precisava de um rótulo — precisava de me compreender, que era a razão pela qual tinha começado a fazer terapia. Depois disso, não consegui parar de pensar se ela não estaria familiarizada com a doença, se não conseguiria compreender o que eu estava a passar ou reconhecer as minhas necessidades. De qualquer forma, essa foi a nossa última sessão.

Durante toda a minha vida, estive convencida de que estava de alguma forma errada, que era preguiçosa, medíocre e uma impostora; que acabaria por ser um fracasso porque me faltava responsabilidade e autodisciplina para ser uma adulta bem-sucedida. Perguntava-me sempre porque é que eu era assim. Se toda a gente dizia que eu era inteligente e diligente, se costumava ter bons resultados na escola, se tinha talento, porque é que não conseguia concentrar-me e trabalhar para alcançar os meus objetivos? Eu queria respostas e talvez as tenha encontrado. Queria obter um diagnóstico, não porque quisesse um rótulo, mas porque queria perceber o que estava a acontecer e porque é que sentia que o meu cérebro estava a pregar-me partidas e a trair-me parte do tempo.

Obtive o meu diagnóstico quando tinha 31 anos. Demorei quase dois anos a obtê-lo, em grande parte graças à paciência e a uma médica compreensiva que me ajudou a aguentar uma longa lista de espera para consultar um psiquiatra através do sistema público de saúde. 

Adriana foi diagnosticada aos 33 anos, mas só depois de alguns conflitos com a sua família e os seus médicos. Também teve de investir muito dinheiro e passou por mais uma grande luta pela sua saúde mental. O mesmo aconteceu com Sandra, cujo terapeuta a desconsiderou e ignorou os seus pedidos de avaliação. Finalmente, teve de percorrer quilómetros durante muitas tardes com o pai para ir a um psiquiatra que aceitou fazer-lhe um teste. Inês, diagnosticada aos 26 anos, também teve de consultar um médico particular para ser diagnosticada. Estava com tanto medo de ser descartada que fez uma longa e detalhada lista dos sintomas e traços que a acompanharam durante toda a sua vida. Gabriela tinha preocupações semelhantes: quando foi procurou obter um diagnóstico aos 31 anos, tinha medo de não ser levada a sério, “por causa de todos os preconceitos de género que se encontram por aí”.

Apenas Mia e Rita sentiram que tiveram sorte quando receberam o diagnóstico. Mia, que tinha 23 anos na altura, foi simplesmente encaminhada pelo seu terapeuta. Rita foi diagnosticada aos 19 anos, após um período de insónia crónica que estava a afetar gravemente a sua qualidade de vida. Procurou ajuda e rapidamente lhe foi diagnosticada PHDA.

Uma vez conhecido o diagnóstico, pode seguir-se o tratamento. Não existe cura para a PHDA, uma vez que não se trata de uma doença, mas de uma condição inerente — simplesmente uma outra forma de ser. O tratamento consiste em duas abordagens que visam reduzir o impacto dos sintomas na vida quotidiana: a terapia cognitivo-comportamental e a medicação. 

A terapia é o principal objetivo das crianças, para que possam aprender desde cedo como funciona o seu cérebro e quais as estratégias que melhor lhes convêm. Os adultos, por outro lado — muitos dos quais cresceram desenvolvendo comorbilidades como a depressão e a ansiedade — precisam de terapia para desaprender maus hábitos e padrões negativos e, em muitos casos, para lidar com traumas não resolvidos.

O principal problema é que, hoje em dia, a psicoterapia não está disponível na maioria dos sistemas públicos de saúde — ou, se estiver, é extremamente difícil conseguir consultas regulares, razão pela qual o acesso à mesma depende da capacidade económica de cada um. No meu caso, enquanto aspirante a jornalista sem literacia financeira, a psicoterapia tem sido um luxo a que só me posso dar em períodos específicos da minha vida. No resto do tempo, dependo de estratégias de compaixão e autocompreensão para me orientar a mim própria.

Nestes casos, a medicação prescrita é fundamental para gerir a nossa condição. Ao passarmos pela confusão da juventude sem sabermos o que se passava realmente com o nosso cérebro, algumas de nós choramos de alegria na primeira vez que tomamos medicação para a PHDA, porque, pela primeira vez, havia uma sensação de harmonia na nossa mente, uma trégua numa guerra que nem sequer sabíamos que estávamos a travar. “É assim que as pessoas normais se sentem, normalmente?” foi o meu primeiro pensamento, enquanto uma estranha sensação de organização se instalava no meu peito. “Acho que é assim que se sentem os chakras alinhados”, gracejei para mim mesma.

Tomamos estimulantes do SNC (sistema nervoso central), como o Metilfenidato — o psicofármaco mais frequentemente prescrito para o tratamento da PHDA. Há cinquenta anos, a base científica dos seus efeitos terapêuticos era ainda pouco conhecida (Volkow et al., 2005). No entanto, novas investigações que exploraram a sua influência no cérebro afetado pela PHDA conduziram a uma hipótese revolucionária: o nosso cérebro perde dopamina e é a incapacidade de regular a concentração de dopamina extracelular que contribui para o desenvolvimento desta perturbação do desenvolvimento neurológico.

A dopamina é um neurotransmissor e uma hormona. Os seus recetores estão localizados principalmente no sistema nervoso central e desempenham um papel essencial nas funções diárias, afetando o movimento, as emoções e o sistema de recompensa do cérebro, bem como o sono, a memória e o controlo dos impulsos (Bhatia et al., 2023). Na prática, isto traduz-se em sintomas como a impaciência, a disfunção emocional, a falta de motivação, a insónia, a distração, a impulsividade e a agressividade. Em suma, a PHDA de tipo combinado.

Um dos sintomas que o meu antigo terapeuta diagnosticou erradamente como depressão foi a minha incapacidade de me levantar da cama. Já tinha tido episódios depressivos antes e, naquele momento, não me pareceu que estivesse a ter um. Depois de receber o meu diagnóstico e a minha receita de Metilfenidato, também tracei uma estratégia: todas as noites, ponho o meu alarme vinte minutos antes de me querer levantar na manhã seguinte. Mantenho a medicação e um copo de água ao lado na mesa de cabeceira, por isso, quando chega a altura, quando o alarme toca, tomo os comprimidos no escuro, volto a fechar os olhos e, menos de meia hora depois, o medicamento faz efeito e estou pronta para me levantar e enfrentar o mundo.

Agora posso finalmente ter manhãs calmas — um hábito que sempre desejei mas que nunca consegui alcançar. O tratamento dá-nos a oportunidade de acreditar que podemos ser o que realmente somos; não o que é suposto sermos, mas o que sonhamos ser. A Rita, que é quase dez anos mais nova do que eu, inspirou-me profundamente quando me disse: “Não sou mais imperfeita ou menos do que ninguém. Nunca vou andar à procura de piedade”. O cérebro dela simplesmente funciona de uma forma diferente, e isso pode por vezes ser um desafio, mas não é um obstáculo para a vida.

O alívio do “rótulo” é, na verdade, o alívio de podermos finalmente compreender-nos a nós próprias, de confirmarmos que não há nada de errado connosco; dá-nos uma oportunidade de sermos compreendidas e, finalmente, vistas. Assim, podemos agora criar estratégias funcionais em vez de camuflar comportamentos; podemos ser mais compassivas connosco próprias quando cometemos erros “estúpidos”; podemos explicar-nos aos outros; podemos pedir ajuda sem nos sentirmos menos válidas. Ao fazê-lo, podemos criar novas formas de viver, não só para nós próprias, mas para todos os seres humanos, para que todos possam desenvolver todo o seu potencial, sem forçar aqueles que são diferentes a adaptarem-se a regras e crenças desatualizadas.

Porque as neurodivergências de todo o espetro — autismo, trissomia 21 e muitas outras doenças menos conhecidas — são apenas parte da diversidade da vida. Reconhecê-las, validá-las e celebrá-las não é apenas uma tendência. É o nosso dever enquanto sociedade evoluída que tem espaço para todos, que aprecia a vida em todas as suas formas. Esse deveria ser o próximo passo na evolução humana: adaptar as nossas construções sociais às vidas vividas, e não o contrário.

Nota da autora

Um tópico importante que não explorei aqui é a forma como as hormonas afetam os nossos cérebros com PHDA, não porque não seja relevante, mas porque não consegui encontrar investigação científica sólida suficiente para lhe fazer justiça, apesar de ser mencionado em vários artigos. Espero que estudos futuros ajudem a esclarecer esta questão, para que nos possamos compreender melhor em toda a nossa complexidade. 

Para terminar, gostaria de agradecer à Adriana, à Gabriela, à Inês, à Marta, à Mia, à Rita e à Sandra pelo seu tempo, mas sobretudo pela sua disponibilidade para partilharem as suas histórias comigo e com o mundo. Sem as suas perspetivas e experiências, não teria sido capaz de elaborar este trabalho. Espero ter feito justiça às suas histórias e que este trabalho ajude as mulheres — com ou sem diagnóstico — a sentirem-se vistas e um pouco menos sozinhas no seu percurso.

Referências

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Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

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Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

02 JUNHO 2025

15 anos de casamento igualitário

Em 2010, em Portugal, o casamento perdeu a conotação heteronormativa. A Assembleia da República votou positivamente a proposta de lei que reconheceu as uniões LGBTQI+ como legítimas. O casamento entre pessoas do mesmo género tornou-se legal. A legitimidade trazida pela união civil contribuiu para desmistificar preconceitos e combater a homofobia. Para muitos casais, ainda é uma afirmação política necessária. A luta não está concluída, dizem, já que a discriminação ainda não desapareceu.

12 MAIO 2025

Ativismo climático sob julgamento: repressão legal desafia protestos na Europa e em Portugal

Nos últimos anos, observa-se na Europa uma tendência crescente de criminalização do ativismo climático, com autoridades a recorrerem a novas leis e processos judiciais para travar protestos ambientais​. Portugal não está imune a este fenómeno: de ações simbólicas nas ruas de Lisboa a bloqueios de infraestruturas, vários ativistas climáticos portugueses enfrentaram detenções e acusações formais – incluindo multas pesadas – por exercerem o direito à manifestação.

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