Vivemos numa sociedade orientada para a produtividade e rentabilização da existência. Nesta estrutura capitalista em que nos encontramos, aceitamos um jogo com determinadas regras. Em troca da nossa constante ação e utilidade, teríamos dinheiro e tempo para desfrutarmos. No livro How To Do Nothing: Resisting The Attention Economy (em português: Resista: Não Faça Nada. A Batalha Pela Economia da Atenção), Jenny Odell menciona que a organização da nossa vida está repartida em três: oito horas de trabalho, oito horas de lazer e oito horas de sono.
No entanto, as regras que nos impuseram são uma fraude. Numa sociedade em que tempo é dinheiro, seria improvável que houvesse um equilíbrio tão justo. A verdade é que dedicamos mais de oito horas ao trabalho. Portugal é um dos países da União Europeia que tem uma das cargas laborais diárias mais elevadas. Além disso, temos uma cultura de trabalho que encara o horário extraordinário como um sinónimo de dedicação e interesse pela entidade patronal. E se trabalhamos mais de oito horas, então não nos resta tanto tempo para nós como poderíamos pensar.
Não sou grande exemplo. Há cerca de quatro anos, que divido o meu tempo entre a escrita, um emprego de chefia que envolve responsabilidade e outros projectos relacionados com a área digital. Os meus dias são cronometrados com a diligência necessária de quem tem várias obrigações a cumprir e são mapeados a um ponto de precisão que, por vezes, até a imprevisibilidade da vida ou do mundo dos negócios é suficiente para desorientar a minha agenda. Por isso, quando Jenny Odell referiu as oito horas de lazer, eu comecei a contar. Como poderia ter tanto tempo se estou exausta constantemente e sinto que não aproveito nada? Enquanto reflectia, compreendi que esta tripartição temporal é uma ilusão. Além de dedicarmos mais de oito horas ao trabalho e nos restarem menos para o período de lazer, este último momento não só engloba a preparação e deslocação para o emprego como está profundamente otimizado e será realmente lazer se estamos focados na sua otimização?
Quando digo que os meus dias são cronometrados, não me refiro apenas à agenda laboral. Há uma data de coisas que faço — e diria que são a maioria — que tento desempenhar de forma eficiente e rápida. Encaixo-as no meu dia, como se de outro compromisso profissional se tratassem. Ir ao ginásio e ir às compras são alguns desses exemplos. Aliás, é frequente entrar numa dessas superfícies comerciais e pensar que seria bom estar despachada em vinte ou trinta minutos. Quanto às coisas que me dão prazer, também há uma transformação e elas vão sendo incluídas numa rotina corrida, de forma a que não as exclua por inteiro. Por exemplo, ler transforma-se em ouvir um audiobook. Assim, consigo arranjar-me para o trabalho ou cozinhar um prato rápido enquanto encaixo alguma leitura no meu dia-a-dia. Até o próprio tempo das minhas refeições é otimizado. Enquanto almoço, aproveito para fazer algum trabalho digital. Lanche? Na maioria dos dias, nem há tempo para isso.
O tempo de lazer que não é otimizado, no final de contas, é muito pouco. Se tivermos sorte e nos restar algum no dia-a-dia, resta-nos não fazer nada, como Jenny Odell defende. E a verdade é que, depois de tentar ser rentável e produtiva ao longo de horas, tendo a cair no sofá. Gostava que o meu não fazer nada fosse um pouco diferente, mas onde está a energia?
Odell menciona um dos seus atos favoritos, que leva a cabo para não fazer nada: observar os pássaros. Nesta atividade, há tempo, espaço e o silêncio das coisas que nos apressam. É possível existir sem propósito económico. Mas, realmente, para poder ouvir os pássaros é preciso ter tempo. E, aqui, voltamos à falácia do costume: tempo é dinheiro. Como posso ouvir os pássaros se mal tenho tempo para pensar? Reflectir sobre a vida e o mundo tornou-se num luxo. O pensamento tem de ser imediato, tem de ser ágil. Mas a reflexão não o é, na maioria das vezes. Por isso, onde fica o espaço para debatermos connosco próprios?
Este é um dos maiores obstáculos na minha escrita. Entre tanto trabalho e de forma tão acelerada, não consigo pousar. Quero aterrar e baixar o ritmo. Preciso disto para refletir sobre arcos narrativos e sobre personagens, mas não há tempo. Então, recorro a umas artimanhas e torna-se em mais uma das coisas que otimizo na minha vida. Enquanto conduzo de A para B, vou pensando no romance no qual estou a trabalhar. Provavelmente, falo sozinha no carro. Faço o mesmo quanto tomo banho. Aí, coloco inclusive o telemóvel a gravar para registar as ideias que vou tendo. A condução e o banho são alguns dos nossos tempos mortos. São ações diárias que precisamos de fazer, mas que levamos a cabo de forma automatizada. São momentos em que não conseguimos fazer grande multitasking e que, por isso, não rendem. Eu acabo por proteger e aproveitar esses instantes para pensar. Mas, mais uma vez, é um simples estratagema para rentabilizar um tempo, que consideraria um desperdício na minha rotina.
Estou cansada de antever o tempo que deveria ser meu, e que é só de empréstimo, como uma análise entre eficiência e desperdício, como se de uma empresa se tratasse. Já há muito que isto deixou de ser suficiente para mim. E, para nós, portugueses, o pior no meio disto tudo é que nos matamos a trabalhar para não ter dinheiro para gastar naquilo que são as nossas poucas horas de lazer. Por tudo isto, é que esta divisão tripartida é uma fraude. É a tal velha questão de que se vive para trabalhar e não se trabalha para viver. Trabalha-se, trabalha-se, e no fim, não resta grande vida.
-Sobre Cátia Vieira-
Cátia Vieira diz que não tem ídolos, mas chorou quando o Leonard Cohen e a Joan Didion morreram - e até sabe o mapa astral deles. Também diz que não é grande fã de pessoas, mas não pára de ler livros que esmiuçam a mente humana. Por isso, é que estudou Estudos Portugueses e frequentou o Doutoramento em Modernidades Comparadas, na Universidade do Minho. Como se já não lesse muito (o T1 está a ficar pequeno para as gatas e livros), também escreve. Lola, o seu primeiro romance, foi publicado em 2021, pela Penguin Random House, e encontra-se, neste momento, a escrever a sua segunda obra. À noite, dá-lhe para escrever poesia. Também trabalha como directora criativa na Selafano e fundou a Alma Interior Design Studio, uma marca de design de interiores. Vive em Braga e publica as suas leituras e ideias sobre a vida e o mundo em @catiavra.