Ela está nos 20 anos, dizem-me as contas de uma discussão que a ouvi ter com o namorado da mãe. Ele aparenta ser mais velho, imagino que a beirar os 30 ou, já sugestionada pelo que a minha audição tem sido forçada a suportar, talvez o aspecto dele, descuidado aos meus olhos, espelhe não tanto a idade, mas a errância em que vive, habitada pelo consumo de substâncias que não tenho literacia para enumerar.
Ela e ele namoram, contra insistentes e inquietantes ultimatos da mãe e da avó dela, gritados num festival de agressões verbais, recentemente sonorizado com um estilhaçar de vidros e bater de portas.
Talvez se declarem enamorados, mas coabitam entre insultos que nenhuma relação ou interacção humana deveria envolver, numa linguagem entupida de grosseirismos, e num despique intenso de acusações de traição.
"Não sou o teu brinquedo sexual", gritou-lhe ela há dias, numa rajada de fúria matinal, testemunhada pela mãe que, acompanhada do namorado, foi incapaz de conter a explosão, na fase final agravada pela presença indesejada da avó.
Antes disso, há um par de semanas, vinham dele as munições: "Andas aí a f**** com os meus amigos, sua p*** de m****", disparou, despertando-me de um sono que seguia no embalo da madrugada.
No intervalo de um e outro episódio, também houve espaço para a ouvir vociferar: "Vi como aquelas p***** estavam a olhar para ti. É porque andaste a f**** com elas".
Incrédula com os crescentes níveis de toxicidade, lembro-me das estatísticas que me fazem temer um desfecho trágico, e penso na importância de se ter agregado a violência no namoro ao crime público que a violência doméstica constitui.
Ao mesmo tempo, reflicto sobre o efeito multiplicador das agressões e intimidações, a partir da minha própria experiência, fixada num domingo de má memória.
Conto-vos como foi. Tinha acabado de chegar a casa, e, já enfiada no banho, vi-me alvoraçada por vozes que nem a água a correr nem a música a tocar conseguiram abafar. Ainda sem tempo para me situar, apercebo-me de que tenho a polícia à porta. Alguém na vizinhança apressou-se – e bem – a participar o caso, e, à falta de outra indicação para além do andar do confronto, calhou-me a mim a primeira interpelação dos agentes.
A força com que bateram à minha porta – como se a fossem derrubar –, aliada à rispidez da abordagem – “está sozinha em casa?”, atiraram em tom que me soou a ameaça –, tornaram evidente a presunção do meu envolvimento. Afastei a suspeita, direccionei-a para o apartamento do lado, mas tudo isto aconteceu com tanto estrondo que, automaticamente, me tornei testemunha de acusação.
Não fui eu a ligar para a polícia – embora pudesse ter sido, e embora tenha confirmado prontamente os assomos de violência da porta vizinha –, mas acabei por ficar com esse ónus, o que, meses depois, continua a pesar a cada encontro de elevador ou de vão de escadas.
Pergunto-me, por isso, se o exercício de um dever de cidadania tão fundamental como este de denúncia do crime que mais mata em Portugal – deve comprometer a segurança do denunciante. Até que ponto essa identificação, a partir do aparato de uma acção policial, inibe novas denúncias? Qual o custo de se ignorar a protecção de quem fala em defesa da protecção de quem não consegue falar? Sei que a lei prevê que possamos avançar de forma anónima, mas a partir do momento em que a polícia nos bate à porta, faz perguntas e até diz que voltará se precisar de mais informação – tudo isto alto e bom som, e a um passo do agressor – onde fica o direito à confidencialidade?