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Opinião de Noa Brighenti

Noa Brighenti, aos 22 anos, navega entre duas dimensões distintas: o seu percurso académico no mundo jurídico e o seu envolvimento em várias equipas e projectos artísticos e culturais. Aluna finalista na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pós-graduada em Direito da Igualdade, dedica-se a explorar a influência recíproca entre estas duas dimensões e o seu impacto coletivo na sociedade. Nos seus tempos livres, coleciona gatos e perguntas, passeia, pinta e lê. Gosta de escrever, é a sua linguagem.

Sara Bichão

Nas Gargantas Soltas de hoje, Noa Brighenti fala-nos sobre a artista Sara Bichão ao escrever sobre dois caroços — os quais fazem parte da obra intitulada Raia (2018) —, brincando com a escrita e propondo com esta brincadeira uma outra realidade em que as coisas inanimadas têm ânimo.

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Este texto é apenas uma proposta de história ou uma proposta de realidade da qual o leitor deve sempre — sempre — duvidar.

No início de Dezembro fui desafiada pelo Jornal S/Título a escrever sobre um artista português. 

Desafiei-me, então, a escrever sobre a artista Sara Bichão. 

O nosso primeiro e único encontro ocorreu pouco tempo depois, no final de Dezembro. Aí, perguntei qual o conto que, ouvido em criança, mais marcou a artista. Respondeu-me recordar-se da Bela e o Monstro da Walt Disney, não pelo romance mas pela animação dos objectos. Eu ri-me com a resposta. Ri-me porque neste filme os objetos da casa do Monstro são objetos que têm vida e são personagens da própria história. São-no da mesma maneira que os materiais reunidos pela Sara Bichão nas suas obras (materiais que foram coletados, oferecidos ou roubados) são, para mim, as personagens principais da história que as próprias obras contam. Ao vê-las, questiono-me de onde vieram e como chegaram às mãos da artista e porque foram escolhidos para estar ali. 

Enquanto há quem diga que é impossível falar do trabalho da Sara Bichão sem usar a palavra corpo, eu diria que é impossível escrever sobre o seu trabalho sem escrever sobre os materiais que o constituem. Mais, sem lhes dar vida. Afinal, na descrição do seu processo artístico, a artista usa o verbo brincar; e o ato de brincar é, na sua essência, a proposta de uma outra realidade — realidade essa em que as coisas inanimadas podem ter ânimo. 

Percebi que só poderia escrever sobre dois caroços. Ao escrever sobre dois caroços, brinco. Estes caroços são parte da sua obra intitulada Raia (2018). Os dois, cosidos e presos ao tecido que forma o corpo da Raia com linha azul, pendem no centro da obra, a cerca de um palmo de distância, e estão conetados por um fio grosso branco que os puxa na direção um do outro. 

Regra geral, o nascimento do caroço dá-se com a trinca no pêssego. Antes disso, não existe caroço enquanto coisa independente; existe só pêssego, do qual o caroço faz parte. 

Se é verdade que o nascimento aos caroços não dói — afinal, não são eles que estão a ser trincados — é verdade também que a trinca lhes faz cócegas e o aproximar da boca e dos dentes causa-lhes medo. Os caroços nascem assim com cócegas e com medo, e sem mãos que aliviem as cócegas ou amparem o medo. Ao nascerem assim desprotegidos, os caroços tendem a das duas uma: ou se rebelam e rolam para o chão ou se recusam a ficar sós e rolam para as mãos de quem, trincando, os fez nascer. 

Os dois caroços ­sobre os quais vos pretendo escrever reagiram ao nascimento rolando para o chão. Nascidos de pêssegos trincados um a seguir ao outro, iniciaram a sua vida lado a lado: aos pés da mesma velha, a ficar cega, que ouvira que a ingestão de pêssego de polpa branca melhorava a visão. 

Não sei quanto tempo ficaram ali no chão. Sei que à noite, para combater o frio, aprenderam a enfiar-se nas ranhuras um do outro. Houve quem por eles até passasse e pensasse serem só um. Não eram um, eram dois, e gritavam-no aos transeuntes, mas rapidamente perceberam que o seu esforço era inútil pois a linguagem dos caroços não é reproduzida, como as dos humanos, com a língua. Antes, é reproduzida com o bater do corpo do caroço no chão e, de tão diferente, os outros não eram sequer capazes de perceber que estavam a tentar com eles falar. 

Minto. Houve quem se apercebesse, e até respondesse ao seu grito: a Sara Bichão.

Dizer que a artista respondeu ao grito não é o mesmo que dizer que entendeu o que os caroços, gritando, diziam. Não o entendeu, isso seria impossível. Mesmo não entendendo, porém, algum instinto a levou a baixar-se e a colecioná-los. Diria que os colecionou por os caroços estarem limpíssimos — ao ponto em que mais pareciam caroços falsos, de plástico, não sujeitos à degradação. Enfiou, em cada bolso, um caroço e levou-os para casa; colocou-os em estantes diferentes do mesmo móvel. Esta separação reconhecia a sua independência e foi assim que, sem saber, respondeu ao seu desejo. Sem se conseguirem sequer ver, porém, os caroços passaram a sua primeira noite longe um do outro. Não choraram; os caroços não têm olhos por onde pudessem escorrer as lágrimas. Começaram, porém, a degradar-se.

A verdade é que ao juntarem-se imediatamente depois de se separarem dos pêssegos, não deram espaço nem tempo à natureza para se aperceber do seu nascimento. Tudo se processou como se os caroços nunca tivessem, realmente, nascido e assim não podiam também morrer. Foi só naquela noite, ao serem separados, que a sua degradação deu início. Deu início e prosseguiu depressa. 

Ao acordar, a artista estranhou o estado dos caroços. Se inicialmente se havia interessado pelo seu estado intocável e os trouxera para casa numa perspetiva contemplativa, agora interessava-se pela sua rápida transformação. Como quem conserva em si uma constante busca pela pergunta e, consequentemente, pela tentativa e erro e a brincadeira, iniciou um plano de rejuvenescimento dos dois caroços. Incluiu mel, banhos maria e passeios no parque, e os passeios eram a única coisa que parecia resultar. Punha os caroços na mesma mão e caminhava, e eles retornavam lentamente a um estado mais novo, mas mal chegavam a casa e eram separados, a degradação voltava a assombrar os seus corpos.

Pensou e pensou e os dias foram passando e os caroços foram-se degradando até cheirarem mal e quase se tornarem pó. Como o cheiro infiltrava o quarto, colocou-os juntos dentro de uma gaveta da cozinha e foi assim que dias depois, em busca da canela, os encontrou rejuvenescidos. A artista compreendeu que a forma de manter os caroços em bom estado era mantendo-os juntos. Juntou-os, de novo no quarto, na mesma estante. Em poucas horas, pareciam recém-nascidos. Ainda assim, temendo o seu retorno ao reino dos mortos, a artista pegou numa agulha e fez um buraco em cada um. Sentada num banco, com os caroços à altura do peito, escavou o seu corpo pacientemente e este ato de escavar, que implica o repetitivo subir e descer do braço, imitou o gesto de quem embala; gesto de quem cuida. No final, passou a mesma linha azul nos buracos dos dois caroços. 

Escusado será dizer que nessa noite não conseguiu adormecer: os caroços não só tinham dores como estavam chateados. Depois de quase duas semanas a viver separados, perder a independência por completo — presos à mesma linha — era revoltante. Passaram a noite a gritar, batendo com força com o corpo no móvel. É estranho como a este ponto, mesmo sem perceber a linguagem dos caroços, a artista já os conhecia tão bem. Retirou a linha azul dos buracos, cortou a linha ao meio, passou cada metade pelo buraco de um dos caroços. Pronto; duas linhas, dois caroços. Foram levados para o atelier.

Não sei o porquê da artista os ter cosido à obra Raia. Olhando para ela, lembram-me dois ovários. É curioso porque, apesar de unidos e apesar de tão próximos, são explicitamente dois caroços e fazem presença enquanto dois caroços — nunca um só, nunca misturados. Gosto de pensar que nela foram cosidos por deterem em si o segredo para a não degradação. Noutras palavras, para a vida eterna. Afinal, as raias estão sujeitas à extinção. Isto porque produzem poucos descendentes. Isto porque sofrem de doenças reprodutivas.

Desde 2018 os dois caroços fazem parte da obra e, se os virem de perto, repararão que continuam num estado perfeito de conservação; a um palmo de distância, não podiam ser mais felizes. Envoltos numa figura tão grande, também não se podiam sentir mais protegidos. Se fecharem os olhos conseguem até imaginar que as mãos da raia são as suas próprias mãos.

No nosso encontro, a Sara Bichão disse-me que, uma vez finalizadas, as obras adquirem uma dimensão independente daquela da artista. Tenho pensado muito nisto. Acho que se tornou impossível para mim pensar nas obras como não vivendo nesse outro lugar.  Se fechar os olhos consigo até imaginar um outro eu cujos ovários sejam os dois caroços de pêssego. Não sei até que ponto, escrevendo, não me tornei eu na própria raia. 

(Texto integral a ser publicado na edição de Março 2025 do Jornal S/Título)

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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