fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Opinião de João Teixeira Lopes

Se és liberal e não sabias, pensa melhor, não sejas parvo

A visão liberal sobre a cultura e a sociedade parece libertadora. Afinal, soltam-se as amarras…

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

A visão liberal sobre a cultura e a sociedade parece libertadora. Afinal, soltam-se as amarras da intervenção do Estado, com as suas burocracias, as suas hierarquias, as suas complicações ou as suas imposições de gosto. Na vasta arena que é o mercado, oferecem-se os talentos, como se de um grande piquenique se tratasse. Os criadores levam as iguarias devidamente preparadas e os comensais escolhem o que lhes parece saber melhor. Existiria como que um ajustamento “natural” entre oferta e procura, a criação e a recepção. O espírito do tempo, aliás, é extremamente favorável ao imaginário ilusoriamente libertário. A Iniciativa Liberal, por exemplo, fala “em devolver o poder às pessoas”, slogan que, assim descontextualizado, facilmente se confunde com um desejo emancipador de devolver a autonomia a cidadãos agrilhoados, sem voz, oprimidos. Gritava-se “Power to the people” nas ruas dos EUA ou da África do Sul porque as minorias não tinham acesso à educação, ao emprego ou ao reconhecimento da sua dignidade – negada, já agora, pelos ultraliberais de antanho, que sempre foram tão “ousados” na desregulação económica como no autoritarismo musculado que nunca se coibiram  de usar, implicando todos os dispositivos de violência do Estado.  Convém lembrar sempre isto aos liberais fresquinhos e modernaços: os vossos arautos da Escola de Chicago serviram com prazer e proveito a ditadura de Pinochet que matou, violou e torturou. Não quiseram saber, estavam demasiado ocupados a aplicar o receituário ideológico e, já agora, a encher os bolsos pelos serviços prestados. Hoje, o Chile é um país desolado, assolado pelo desemprego, sem serviços públicos de qualidade e com um sistema de pensões falido porque os Chigago Boys investiram tudo no casino da bolsa. “És liberal e não sabias” explora a tábua rasa ideológica que a despolitização dos assuntos públicos vem insinuando, em favor de um individualismo que exalta todas as tecnologias do ego.

Não por acaso, nos concursos para lugares na docência e investigação universitária nos quais amiúde participo como avaliador venho notando,  não sem espanto, como se desenvolveu a “arte do currículo”, através da criação de complexas narrativas sobre si mesmo, capazes de criar uma aura sobre o candidato, uma “imagem”, uma “ideia” falsamente coerente, explorando com minúcia todos os atos que podem merecer uma avaliação (mesmo que aparentemente insignificantes) e tentando transmitir a posse de “competências e atitudes genéricas”, como a “resiliência”, a “imaginação”, a “audácia”, a “polivalência”, etc.

À primeira vista é aliciante. Estimula-se a concorrência entre as pessoas e constrói-se uma amnésia sobre tudo o resto (as enraizadas desigualdades de acesso aos mais variados bens e serviços). No final, há uma espécie de happy end: os melhores vingam, os piores (os “sem talento”, “sem iniciativa”, “falhados”) soçobram justamente, vitória da harmonia celestial.

Vejamos melhor o caso da cultura através de exemplos caseiros. O liberal Rui Rio, quando foi presidente da Câmara do Porto, suspendeu os apoios aos “subsídio-dependentes” com o argumento da neutralidade do poder local. Contudo, não se coibiu de favorecer a cedência do Teatro Municipal Rivoli à companha de teatro Comercial de Filipe La Feria em termos muito vantajosos para este último, a quem eram esquecidas as rendas e a quem se comprava bilhetes. Sob o manto da não intervenção, a Câmara favorecia quer um estilo, um género e um padrão de gosto (pois o encenador monopolizou a ocupação do Rivoli), quer a ausência de liberdade de escolha, dado o monolitismo da oferta. Da mesma forma, ao apoiar generosamente os programas de música pimba da Rádio Festival, a ponto de convidar o então Ministro Pedro Roseta para um pezinho de dança, Rui Rio oferecia às populações mais carenciadas aquilo a que elas já tinham franco acesso – o reportório pimba.

O liberalismo (na cultura, na sociedade) é um embuste. Caminha lado a lado com a falta de transparência ao transferir dissimuladamente recursos comuns para os privados (pagando o cheque ensino ou o cheque saúde, por exemplo), explora os ressentimentos de uns contra outros, surfa os ímpetos egoístas e narcísicos e é preguiçoso, ao demitir-se de criar as condições para que todas as linguagens, estilos e formas tenham acesso ao espaço público em iguais condições. É claro que a música comercial ou o império Hollywood não precisam de apoio, porque são máquinas feitas para ganhar dinheiro. É fácil, não é barato, mas dá milhões. E deixa as pessoas contentes e distraídas. Mas a criação independente, para chegar às pessoas, necessita de estímulos. Como de estímulos carecem as populações que nunca tiveram oportunidade de se familiarizarem com a dança, o teatro, a poesia ou as artes plásticas. Não se trata de impor uma ditadura do estado ou um padrão de gosto. Trata-se, tão-só, de abrir as portas da esfera pública a todos, em igualdade de circunstâncias. É esse o caldo da diversidade, do confronto, da contradição, do processo coletivo de discussão e formação de gostos. A liberdade só se exerce verdadeiramente se houver alternativas equitativas. O “excitante” discurso do novo velho liberalismo é o cemitério da criatividade: favorece quem já era favorecido (pela educação e pelo dinheiro) e destrói a possibilidade de se aprender pela partilha (ao invés da competição que é autocentrada). Por isso, se és liberal e não sabias talvez seja melhor pensares duas vezes antes de te assumires.

-Sobre João Teixeira Lopes-

Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade  de  Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997).  É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a  29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.

Texto de João Teixeira Lopes
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

5 Novembro 2025

Por trás da Burqa: o Feminacionalismo em ascensão

29 Outubro 2025

Catarina e a beleza de criar desconforto

22 Outubro 2025

O que tem a imigração de tão extraordinário?

15 Outubro 2025

Proximidade e política

7 Outubro 2025

Fronteira

24 Setembro 2025

Partir

17 Setembro 2025

Quando a polícia bate à porta

10 Setembro 2025

No Gerador ainda acreditamos no poder do coletivo

3 Setembro 2025

Viver como se fosse música

27 Agosto 2025

A lição do Dino no Couraíso

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Financiamento de Estruturas e Projetos Culturais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Criação e Manutenção de Associações Culturais

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

27 outubro 2025

Inseminação caseira: engravidar fora do sistema

Perante as falhas do serviço público e os preços altos do privado, procuram-se alternativas. Com kits comprados pela Internet, a inseminação caseira é feita de forma improvisada e longe de qualquer vigilância médica. Redes sociais facilitam o encontro de dadores e tentantes, gerando um ambiente complexo, onde o risco convive com a boa vontade. Entidades de saúde alertam para o perigo de transmissão de doenças, lesões e até problemas legais de uma prática sem regulação.

29 SETEMBRO 2025

A Idade da incerteza: ser jovem é cada vez mais lidar com instabilidade futura

Ser jovem hoje é substancialmente diferente do que era há algumas décadas. O conceito de juventude não é estanque e está ligado à própria dinâmica social e cultural envolvente. Aspetos como a demografia, a geografia, a educação e o contexto familiar influenciam a vida atual e futura. Esta última tem vindo a ser cada vez mais condicionada pela crise da habitação e precariedade laboral, agravando as desigualdades, o que preocupa os especialistas.

Carrinho de compras0
There are no products in the cart!
Continuar na loja
0