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Sofia da Palma Rodrigues: “O jornalismo lento explica, dá contexto e rostos às notícias do dia a dia”

Esta semana, partilhamos contigo a conversa que tivemos com a Sofia da Palma Rodrigues, jornalista…

Texto de Andreia Monteiro

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Esta semana, partilhamos contigo a conversa que tivemos com a Sofia da Palma Rodrigues, jornalista e cofundadora da Divergente. Esta entrevista, conduzida no dia 22 de abril de 2021, foi uma das que fizemos aquando da investigação que deu corpo à última edição da Revista Gerador (maio) para explorar a problemática do jornalismo lento.

Sofia da Palma Rodrigues é jornalista e doutoranda em Pós-Colonialismos no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Apaixonou-se pela escrita numa altura em que ainda se desenhavam letras em diários com folhas de papel cheirosas fechadas a cadeado. Começou por trabalhar como freelancer para vários órgãos de comunicação social portugueses e integrou a equipa de narrativa da Bagabaga, fazendo parte dos órgãos sociais da cooperativa. Em 2014, cofundou a Divergente. Participa, pontualmente, em projetos de investigação académica. Ouvir e contar histórias é o que mais gosta de fazer.

A Divergente, criada em 2014, é uma revista digital de jornalismo narrativo que retrata temas de interesse público e que quer dar eco a vozes sub-representadas. Acredita na força das histórias para retratar temáticas complexas e encara o jornalismo como uma ferramenta de escrutínio das estruturas de poder, contribuindo para uma cidadania mais ativa. Assume o ritmo lento como a sua prática jornalística diária, valorizando o rigor em detrimento da rapidez. No seu site, podemos encontrar várias reportagens em que já trabalharam: “Juventude em jogo”, “Chá da meia-noite”, “O Zé quer saber porquê”, “Tudo isto existe, tudo isto é bicha, tudo isto é Fado”, “Terra de todos, terra de alguns” e “Demasiado novo para ser velho”.

Esta é a sétima entrevista da nova rubrica Entrevistas com Jornalistas, que o Gerador irá continuar a lançar ao longo das próximas semanas e que se debruça sobre os grandes desafios que a profissão continua a enfrentar.

Gerador G. — Como definirias o conceito de jornalismo lento?

Sofia da Palma Rodrigues S. P. R. — Diria que o jornalismo lento é o jornalismo que vem a jusante do jornalismo diário. Se é verdade que precisamos do imediatismo das notícias no dia a dia, — sem ele não saberíamos, por exemplo, os números da pandemia — também é verdade que precisamos de um certo distanciamento para olhar os temas e termos tempo de os estudar, de os analisar, de conversar com pessoas — não só que aquelas que os tenham estudado, mas também as que os tenham vivido e sentido na pele. Acho que é isso o jornalismo lento, é o jornalismo que vem depois das notícias e do jornalismo diário. Tinha um professor que dizia que as notícias são o “anjo” que anuncia e o repórter vai, depois, atrás do “anjo”, para tentar explicar o que aconteceu. O jornalismo lento explica, dá contexto e dá rostos às notícias do dia a dia.

G. — Que função é que o jornalismo lento ocupa dentro do próprio âmbito jornalístico e da sociedade?

S. P. R. — Acho que ocupa uma função que está cada vez mais extinta na nossa azáfama diária: a capacidade de parar, olhar, pensar e, daí, fazer uma análise. Diria que a capacidade de problematizar é cada vez mais necessária. O jornalismo diário dá-nos quase sempre notícias já mastigadas, em que somos orientados para pensar de determinada maneira. O jornalismo lento, na forma como o concebo, tem o dever de problematizar, de mostrar os silêncios e de mostrar os cinzentos. Raramente as coisas são verdade ou mentira, são pretas ou brancas, são boas ou más. E acho que é nesse meio caminho que se situa o jornalismo lento.

G. — Como achas que surge a necessidade, tendo em conta as práticas do dia a dia que observamos nas redações tracionais, de não falar em jornalismo como um todo, mas falar em jornalismo lento em específico?

S. P. R. — As redações de hoje em dia estão reféns de uma lógica capitalista, em que têm de produzir, têm de produzir rápido, mesmo que isso signifique que a qualidade esteja a ser posta em causa. Diria que esses momentos — de termos tempo para nos sentarmos em torno de uma mesa e discutir que outros ângulos é que podemos mostrar sobre determinados temas — é uma atividade que já não se faz ou que se faz muito pouco. E não acho que isto seja uma responsabilidade que deva ser imputada apenas aos jornalistas, é um reflexo de causas estruturais, sobretudo de condições de trabalho cada vez mais precárias. As redações são cada vez mais pequenas, com menos jornalistas, com menos memória. Essa massa crítica que, no fundo, é a engrenagem do jornalismo, está a perder-se. E se ela não existe, é impossível fazer jornalismo lento, porque se está constantemente a apagar fogos. Diria também que nas redações tradicionais falar-se deste tipo de jornalismo é uma utopia porque as pessoas saem muito pouco. Na minha conceção de jornalismo lento, é preciso problematizar, explicar, tentar compreender o que não se percebe. E isso não se faz apenas a partir de uma secretária em frente a um computador. Este tipo de jornalismo tem de ser feito com as pessoas porque, no fundo, o jornalismo é uma ferramenta da cidadania e deve contar histórias.

G. — E achas que é por isso que também começam a surgir cada vez mais projetos de jornalismo alternativo?

S. P. R. — Vou falar da Divergente. A Divergente é uma revista digital de jornalismo narrativo. dedicamo-nos sobretudo a fazer trabalhos de investigação, mas contamos histórias narrativas também. A Divergente nasceu da vontade de um grupo de pessoas de fazer o tipo de jornalismo que acredita ser necessário, mas para o qual não encontrou espaço nas redações tradicionais. Acho que os diferentes projetos de jornalismo alternativo têm motivações diferentes. A nossa motivação é construir um espaço de trabalho feito à nossa imagem. Começámos a Divergente com a plena consciência de que ninguém nos conhecia, de que precisávamos, primeiro, de fazer aquilo que dizemos sermos capazes. Só depois, poderíamos pensar em encontrar apoios. E foi isso que fizemos. Estivemos, praticamente, quatro anos a fazer reportagens de fundo e só depois de termos um portefólio para mostrar é que conseguimos ganhar, no ano passado, uma bolsa da Civitates, (um consórcio de organizações europeias que financiam o jornalismo independente) que nos permite, pela primeira vez, planear os próximos três anos e ter uma redação fixa com quatro pessoas. Mas, repara, isto é uma grande loucura. Nós estivemos [durante] quatro anos, com duas pessoas quase a tempo inteiro, a trabalhar sem nenhuma garantia de que iríamos receber alguma coisa. E os jornalistas, como todas as pessoas, precisam de pagar contas ao fim do mês.

G. — No teu caso, como se deu essa passagem para um projeto de jornalismo alternativo?

S. P. R. — Saí da universidade, estagiei em vários órgãos de comunicação em Portugal — na Time Out, no Público, depois passei pelo Jornal de Negócios, estive um ano na Sábado — e fui fazer um mestrado. Quando o terminei, o Paulo Nuno Vicente, que agora é professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, na Universidade Nova de Lisboa, convidou-me para integrar uma cooperativa de medias digitais, a Bagabaga. A partir daí, começámos a sonhar. A cooperativa é composta por designers, jornalistas, fotógrafos, videográfos, programadores, e, dentro deste grupo que era lato, havia três ou quatro pessoas que vinham da área do jornalismo e que queriam criar um sítio onde pudessem fazer reportagem, onde pudessem contar histórias — que é o que nós gostamos de fazer. Foi assim que tudo começou: encontrei o Diogo Cardoso e começámos a sonhar juntos. Nesse início, não fazíamos ideia de seria mesmo possível, porque uma coisa é a ideia no papel, outra é quando a tentamos concretizar. Percebemos que não era impossível, mas que teríamos de construir um caminho. Quando começávamos a ver as coisas a acontecerem, percebemos que era mesmo por ali que queríamos ir. E digo-te uma coisa: “Todos os dias tenho noção do privilégio que é estar a trabalhar na Divergente, de estar a trabalhar com um grupo de pessoas com o qual me sento a pensar, a debater; um grupo de pessoas em que somos todos muito diferentes, mas que, no final, somos também amigos que vão beber copos, jantar e, provavelmente, continuar a falar da Divergente. Porque isto, mais do que um trabalho, é um projeto de vida.”

G. — Vocês conseguem ou têm conseguido combater a questão de serem um projeto pequeno ou de nicho, mas conseguirem alcançar mais pessoas com as vossas histórias?

S. P. R. — Nós damos muito de nós e do tempo que deveria ser tempo livre para fazer a Divergente acontecer. Sermos uma equipa pequena é um desafio, mas é também uma força, porque estamos todos muito alinhados e é muito mais fácil gerir uma equipa pequena do que 20 ou 30 pessoas. Somos quatro, conhecemo-nos muito bem, sabemos muito bem o que é a Divergente e quais são as linhas vermelhas que não queremos ultrapassar, qual é a forma como queremos comunicar, qual é a forma como queremos apresentar os nossos trabalhos. O grande desafio é sermos muito idiotas, termos muitas ideias e não conseguirmos concretizar nem metade... Temos um plano de ação para o futuro, em que acho que poderíamos viver cinco vidas e, mesmo assim, não o iríamos conseguir concretizar. A parte boa de fazemos menos trabalhos é estamos 100 por cento confortáveis com aquilo que publicamos e com tudo o que escrevemos. Ou seja, para nós, partilhar um post numa rede social não é algo que façamos de ânimo leve. Estamos a construir um nome e queremos que o nome da Divergente signifique confiança. Que as pessoas tenham confiança naquilo que estão a ler: com um tom sóbrio, no sentido de haver uma problematização das temáticas. Segundo a nossa forma de olhar e ver o mundo, o jornalista não é um detentor da verdade. O jornalista é alguém que medeia o caminho entre o que acontece no mundo e as pessoas que querem saber sobre o mundo. Nesse processo de mediação, existe uma série de cinzentos, e nós não queremos esconder esses cinzentos.

O que não significa que não possamos errar. Podemos errar. Fizemos um post acerca de um museu que existia na Guiné-Bissau, sobre as estátuas coloniais, em que fomos ao local e o guia do museu nos disse que uma das estátuas que estava lá era do Diogo Cão, um navegador. Entretanto, houve um leitor que comentou no post alertando que a estátua não era do Diogo Cão, mas sim do Diogo Gomes. E nós pensámos — “OK, como é que vamos descalçar esta bota?” O leitor está a dizer que é do Diogo Gomes, no museu dizem que é do Diogo Cão; falámos com várias pessoas na Guiné, a maioria delas dizia que era do Diogo Cão, mas com dúvidas. Só respondemos ao leitor quatro dias depois, quando tivemos uma fonte primária, que era o boletim da Guiné colonial, onde fomos ver a data de inauguração da estátua. E sim, era o Diogo Gomes. Quando respondemos ao leitor, contámos-lhe todo o percurso que fizemos até chegar à informação. E este é o processo que temos em todos os trabalhos; de verificar quase frase a frase, para não perdermos a credibilidade.

G. — Aquando da publicação de uma história, também têm feito parcerias com meios, como jornais ou televisões. Essa é a forma que encontram de chegarem a mais gente do que as pessoas que já conhecem o vosso site?

S. P. R. — Sem dúvida. Para nós, o jornalismo não deve ser uma coisa de nicho.  Queremos que o nosso trabalho chegue ao máximo de pessoas possível. Fazemos grandes investigações em formato multimédia e, depois, tentamos que estas ganhem outros caminhos: publicamos reportagens em jornais, como o Público; fazemos versões televisivas e versões para rádio, a próxima planeamos emitir na RTP . Estamos a falar de investigações muito longas que fazem sentido transformar noutros formatos além do multimédia, para conseguirmos  chegar a mais gente. O jornalismo que fazemos não é em competição com o jornalismo dito tradicional, é um complemento. Não queremos ser competidores, queremos ser parceiros.

G. — Já me disseste que, agora, finalmente conseguiram uma bolsa que vos vai permitir estar mais descansados financeiramente, mas como é que se foram mantendo ao longo destes anos?

S. P. R. — Ao longo destes anos, a Divergente funcionou por projetos. Tomemos como exemplo o trabalho que fizemos em Moçambique, no qual retratámos a ocupação de terra no país. Fazíamos sempre o mesmo processo: uma listagem de organizações potencialmente interessadas em financiar a abordagem jornalística a que nos propúnhamos. Geralmente, começávamos pela Jornalism Fund, uma ONG holandesa que já financiou parte de alguns dos nossos trabalhos . Tendo um fundo inicial para avançar com o projeto, fazíamos a reportagem na íntegra e, só depois de a ter fechada, procurávamos outros apoios. Por exemplo, no “Terra de todos, terra de alguns” pedimos ajuda à ONG Grain — “O trabalho está fechado, precisamos de fazer a tradução em inglês. Vocês financiam?” Eles apoiaram, mas nunca abrimos sequer a possibilidade de haver interferência no conteúdo do trabalho, este já estava fechado antes deste primeiro contacto. Só mais tarde, se ganhássemos um prémio ou conseguíssemos outro fundo, é que o nosso trabalho era efetivamente pago.

Conseguíamos viver porque eu estive, durante quatro anos, com uma bolsa de doutoramento e o Diogo, nos meses do verão, fazia cobertura de desportos náuticos pelo mundo — vivíamos de projetos paralelos para poder ter a Divergente. Agora, estamos num modelo completamente diferente. Temos três jornalistas e uma pessoa que se dedica à comunicação e ao marketing, que é a Patrícia Alves, a quem digo todos os dias que foi a melhor coisa que nos aconteceu na vida, porque é tudo o que nós não somos, é a pessoa que nos chama à Terra e diz — “É preciso comunicar melhor, fazer preciso fazer candidaturas, estas aqui aquelas em que devemos apostar”. É alguém que estrutura toda a parte de financiamento e de comunicação do projeto, algo indispensável se queremos pensar em crescer. Gostávamos muito de poder contratar mais uma ou duas pessoas nos próximos dois anos.

G. — Em relação a estas candidaturas a fundos, o próprio processo de candidatura também é muito exigente. Acabam por investir muito tempo daquilo que deveria ser a criação jornalística ou são processos que se interligam?

S. P. R. — O processo de candidatura tira muito tempo, mas não rouba à investigação jornalística, porque para escrever a candidatura é preciso investigar. Não vale a pena fazer candidaturas se não houver uma forte componente de investigação jornalística prévia, há muita gente a candidatar-se a estas bolsas. No fundo, não é uma coisa ou outra. Pensar a candidatura é uma primeira fase que, depois, nos ajudará a estruturar o que fizermos a seguir. É muito interessante que, durante muito tempo, pensava que o ideal seria termos alguém para fazer candidaturas para os nossos trabalhos. Hoje, penso que seja impossível: como é que uma pessoa que cai de paraquedas num tema vai escrever sobre ele e fazer uma boa candidatura? Essa pessoa pode limar as arestas, mas a ideia e a escrita inicial têm de ser do jornalista que a pensou e que a vai executar.

G. — E como é a vossa relação com o tempo? Já percebi que não escrevem nada de última hora, mas até que ponto é que conseguem estender o tempo de um trabalho, saber se ele está ou não finalizado?

S. P. R. — Na Divergente, temos todos mais de 30 anos. E estou a dizer isto porque acho que é um fator importante: nós, realmente, não corremos. Por exemplo, hoje era o Dia da Terra, temos dois trabalhos que se enquadram neste tema, sobre os quais poderíamos ter feito posts nas redes sociais, e decidimos não o fazer. Decidimo-lo porque estamos com outros processos entre mãos. E isto é uma aprendizagem: termos a noção de que não podemos chegar a todo o lado e que não queremos trabalhar 20 horas por dia, não queremos estar a correr, porque isso vai comprometer o trabalho e a nossa vida pessoal. Acreditamos mesmo que é o facto de termos tempo para ir ao cinema, para ir ao teatro, para nos sentarmos numa mesa de jardim a ouvir as conversas dos outros, que nos faz bons jornalistas. E essa é a nossa relação com o tempo: termos consciência de que ter tempo para não fazer nada é importantíssimo para podermos criar, para podermos pensar fora da caixa.

Agora, claro, tudo tem um limite. Quando é que achamos que uma investigação está feita? Quando grande parte das nossas perguntas iniciais estão respondidas, quando reunimos um conjunto de fontes o mais variado possível e quando temos uma cobertura de imagem e de vídeo que nos permitam fazer um trabalho “à Divergente”. Um trabalho cuidado, relevante, em que houve tempo passado com pessoas — a relação que estabelecemos com as fontes é para nós muito importante. Assumimos que queremos ouvir vozes que são geralmente silenciadas pelos media tradicionais, vozes às quais não são dadas relevância. No fundo, são as pessoas ditas comuns que melhor retratam as temáticas complexas e, para nós, é muito importante ter esse tempo para estar com elas. Não é eu chegar ao pé de alguém e, em cinco minutos, dizer — “Olá, sou a Sofia”, ligo o microfone e começamos a conversa. A abordagem da Divergente é quase sempre a mesma— “olá, nós somos a Sofia, o Diogo e a Luciana, queremos fazer uma reportagem sobre o tema X, gostávamos de saber isto e isto e isto. E você, o que gostaria de saber sobre nós?” E nesse primeiro momento, em que há uma partilha, não levamos câmaras, não levamos gravador, não levamos nada. Depois, quando voltarmos, já vamos ser a Sofia, o Diogo e a Luciana com quem aquela pessoa esteve a beber um café ou a almoçar, em que ela sabe coisas sobre nós e nós sabemos coisas sobre ela. Assim, acedemos a camadas a que nunca chegaríamos.

G. — E como é que vocês chegam até essas pessoas? Não é de todo uma prática comum, porque as pessoas ditas comuns não estão nas listas habituais de contactos dos jornalistas.

S. P. R. — É muito engraçado, essa é uma pergunta que nos fazem muitas vezes. Para mim, é muito mais difícil chegar a um ministro do que a qualquer uma destas pessoas, porque, no fundo, elas estão por todo o lado. E são muito fáceis de chegar. Por exemplo, para o trabalho que estamos agora a fazer sobre a história colonial de Portugal, chegámos à Guiné-Bissau com uma lista de nomes e fizemos uma coisa tão simples como ir ao café principal de Bissau e começar a perguntar — “Vocês conhecem alguém dentro deste perfil?” E as pessoas conheciam. É só sairmos da redação e irmos aos espaços onde as nossas fontes realmente se encontram. Se existe um furacão, vamos ao sítio onde o furacão aconteceu, em vez de ouvirmos apenas o presidente do sindicato ou da Associação de Moradores a falar; vamos à curva do prédio que está escondido tentar falar com as pessoas que lá estão... porque, geralmente, são elas, que habitualmente não dão a cara e que não têm um discurso já formatado, quem tem histórias mais problematizantes para contar. Mas, para isso, é preciso mudar o paradigma do jornalismo de hoje em dia, que é o paradigma do telefone e do computador.

G. — Como é que tu achas que a falta de diversidade nas redações, e quando digo falta de diversidade é em vários sentidos — racial, económica, social, geográfica e por aí fora. Como é que isso influencia os temas que são tratados e os ângulos escolhidos para contar as histórias?

S. P. R. — Acho que influencia totalmente o enquadramento ideológico dos media, no sentido em que, neste momento, ser jornalista é um luxo. Qual é o jovem que sai de uma universidade e se pode dar ao luxo de estar três, seis, nove meses, um ano, a estagiar, recebendo 100 ou 200 euros e, depois desse tempo de estágio, entrar numa redação a ganhar o ordenado mínimo? O jovem que pode fazer isto é um jovem que tem uma estrutura por trás, familiar ou seja ela qual for, que lhe permite ter dinheiro para pagar as contas básicas. E isto é um luxo. A sensação que tenho é que as redações são, na sua maioria, o reflexo de uma urbe, do centro de Lisboa e do Porto.

Há exceções, mas, cada vez mais, o jornalismo de proximidade, a existência de correspondentes nas diversas regiões do país, é uma prática que está a perder-se, e isso reflete-se completamente nas temáticas abordadas, e na forma em como são abordadas. Um jornalista que nasceu na Lapa e ali tenha vivido toda a sua vida, quando vai fazer uma reportagem sobre Chelas tem um olhar sobre o bairro diferente de alguém de Chelas. Podemos chamar-lhe lugar de fala, ponto de partida, background social e cultural: o sítio donde as pessoas vêm, aqueles com quem se cruzam no dia a dia, aquilo que as constitui enquanto seres humanos, é importantíssimo para a forma como olham para o mundo. E eu acho que existe uma olhar unidirecional — que parte quase sempre do mesmo ponto — no jornalismo.

Faz falta diversidade racial, faz falta diversidade geográfica, faz falta a diversidade etária. Não há praticamente pessoas com mais de 60 anos nas redações, por isso, não há memória. Quantos dos que viveram o 25 de Abril estão, hoje em dia, a trabalhar como jornalistas? Lembro-me de que quando estagiei no Público essas pessoas existiam e com elas com quem aprendias, com quem tiravas dúvidas, porque tinham uma memória que não pode ser encontrada nos livros.

Agora, tens a ditadura do clique. Chegámos ao ridículo de haver redações com ecrãs onde se pode ver o ranking das notícias mais lidas. Quando são essas as variáveis que valorizam o trabalho jornalístico, está tudo perdido. Muitas vezes perguntam o que é que o jornalismo pode fazer para se salvar? Acho que uma das coisas primordiais que o jornalismo podia fazer para se salvar será voltar a fazer jornalismo, a cumprir o código deontológico e regressar à base. Porque, neste momento, quando não é clara a distinção entre o que é uma reportagem do que é uma publicidade-reportagem, em que há jornalistas a escrever conteúdos pagos, em que há pessoas a defenderem que o jornalista que tem mais cliques nos seus trabalhos é um melhor profissional... está tudo perdido.

G. — Como vês a relação das redes sociais com o jornalismo? O que há de bom e o que há, também, de perigoso?

S. P. R. — O facto de as pessoas acederem a conteúdos jornalísticos hoje em dia sobretudo através do algoritmo das redes sociais faz com que tenham um afunilamento do mundo. Se estou interessada em questões como o racismo, o feminismo, os estudos pós-coloniais, 99 por cento daquilo que aparece no meu feed de notícias é sobre essas temáticas. O que quer dizer que eu vou ser, provavelmente, uma completa ignorante sobre temas relacionados com alterações climáticas, agricultura, ou o interior país. Acho que essa é a grande limitação da relação do jornalismo com as redes sociais: antigamente, abríamos um jornal e, por muito que fosse en passant, líamos os títulos, tínhamos uma visão global do que é que estava a acontecer; hoje, somos direcionados imediatamente para os temas do nosso interesse, o que nos torna ignorantes especializados. Somos ignorantes sobre o mundo e sabemos um bocadinho, em específico, de um tema. Gostava muito que se encontrasse uma forma para que o jornalismo, em si, contribuísse para que isso não acontecesse. Fui ver uma peça de teatro, a Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, uma distopia passada em 2028, em que há uma parte em que se diz: “o único jornalismo que vale a pena ler é o jornalismo em papel, porque o jornalismo que está na Internet está todo controlado”. Tendo a acreditar — contra todos os estudos, contra tudo o que é dito — que o futuro vai voltar por um regresso a um formato físico, porque, na Internet, temos tudo e não temos nada. Enquanto se pegarmos numa revista, se pegarmos num jornal, é um tempo que temos entre nós e aquele objeto, em que somos confrontados com uma série de temáticas com as quais a Internet não nos confronta. Eu, por exemplo, compro o jornal todas as sextas e todos os sábados, apesar de assinar as versões digitais, porque houve um momento em que tive a perfeita consciência de que estava a ficar uma pessoa mais ignorante. Talvez nunca tivesse consumido tanta informação e nunca tivesse sabido tão pouco sobre o mundo em geral. Acho que esse é o efeito nefasto das redes sociais.

Depois, acho também que aquilo que o jornalismo e os órgãos de comunicação fazem tem de se distinguir, efetivamente, das fake news e da informação criada pelos trolls das redes sociais e, às vezes, não se distingue.

Na Divergente, temos o cuidado de não fazer textos que vão fracionar e polarizar a audiência, abrindo um esgoto a céu aberto nos comentários. O nosso cuidado é para que, quem leia aquele post, não se sinta atacado — nem os de direita, nem os de esquerda. Queremos que os nossos posts e as nossas partilhas levem um espectro grande de pessoas a pensar sobre, a questionar, em vez de sentirem imediatamente “eu identifico-me com isto”, “eu sou contra isso”. Não queremos ter nem um clube de fãs, nem um clube de haters. Queremos que quem nos segue goste de nos ler e de nos ver porque, de alguma forma, aquilo se sentem interpelados pelo nosso trabalho.

G. — Há várias formas de desinformação, umas fora do meio jornalístico e outras dentro. Achas que é tarefa do jornalismo combater as fake news? E como se pode combater a desinformação criada pelos próprios meios?

S. P. R. — Acho que nós temos aqui duas questões. A primeira é que o Estado tem de intervir. A nível europeu, provavelmente, tem de haver regras para que estes sites de fake news, para que estes trolls, sejam retirados do espaço público, porque, neste momento, as redes sociais fazem parte do espaço público e as pessoas informam-se nele. É preciso intervir, é preciso legislar, é preciso regular.

Por outro lado, acho que o facto de haver, cada vez mais, uma descredibilização do trabalho do jornalista, o sentimento de “li esta notícia no jornal, mas não estou segura se aquilo que estou a ler é correto”, leva à desconfiança. “Se eu não estou segura de que aquilo que estou a ler no jornal é correto, então o que é que o distingue de um site de fake news?” E, aí, penso que foi um caminho que o jornalismo foi percorrendo. Quando comecei a estudar, em 2004, aquilo que lia no jornal era verdade, acreditava sem questionar. Hoje em dia, questiono. Houve, realmente, uma descredibilização da profissão, por uma série de questões estruturais de que já falamos, e que levou a que o jornalismo deixasse cair sobre si a descrença. Para termos a certeza do que estamos a escrever, precisamos de tempo, precisamos de ter mais pessoas a trabalhar connosco, porque, se não, é muito fácil acontecerem erros. Errarmos um nome, uma data, um sítio. Quando as coisas são feitas sob pressão e à pressa, é muito fácil isso acontecer.

Quando penso no tempo que os trabalhos da Divergente levam... e que, às vezes, no deadline ainda descobrimos coisas para alterar... Como é que um jornalista que tem de fazer isso todos os dias, sozinho, pode não errar? Não pode não errar. Existe também a questão estrutural das redações: pouca gente, trabalhos feitos em contrarrelógio... Editores, onde é que estão os editores? Revisores, onde é que estão os revisores? Diretores de jornais de fecho, onde é que estão essas pessoas? O que sinto é que muitos dos textos jornalísticos que lemos não passam por mais ninguém, com olhos e tempo para ver, a não ser pelos próprios autores, e isso é problemático. Na Divergente, todos os trabalhos são revistos pela equipa e todos têm gralhas, todos têm coisas para serem mudadas. Não me lembro de ter escrito um texto em que, depois, não fosse encontrada uma gralha, um questionamento, algo para ser alterado. E, se isso não acontece, é normal que existam falhas, e que essas falhas contribuam para a desinformação.

G. — E, por vezes, há a prática de se publicar apenas uma frase, relativa a uma notícia de última hora, por exemplo, em que não se confirmou antes a sua veracidade, sabendo que no online podemos, mais tarde, editar e desmentir a informação dada anteriormente. Achas que isso se deve a essa pressa a que muitos jornalistas são forçados?

S. P. R. — Acho que as redes sociais não são o motivo. O motivo é que nós vivemos numa sociedade capitalista frenética, em que já não escrevemos notícias, produzimos conteúdos. Costumo dizer que quando um jornalista diz que produz conteúdos, está tudo baralhado. E isso é resultado da sociedade em que vivemos, da qual as redes sociais são mais um elemento. Mas não sei, se não fossem as redes sociais, se não seria outra coisa qualquer, porque isso tem que ver com a forma como nos organizamos. Andamos sempre a correr de um lado para o outro, que tempo é que temos para, realmente, nos informarmos? De que forma é que nos queremos informar?

As redes sociais, no fundo, vêm responder a uma lacuna que existia: as pessoas não terem tempo. E, ali, conseguem ter uma ideia vaga sobre tudo e não saber de nada profundamente. A verdade é que Portugal tem um dos índices de literacia mediática mais baixos da União Europeia, o que significa, consequentemente, que as pessoas não investem o seu tempo a informarem-se em fontes fidedignas. A maior parte das pessoas pega no jornal e não consegue distinguir o que é uma notícia ou uma reportagem, de um artigo de opinião. Temos um Governo, um Estado, que se deveria ocupar disso, porque cada vez há uma capacidade mais baixa para interpretar, para perceber a sátira, ara perceber o humor, e isso faz com que tudo o que seja um pouco mais complexo seja inalcançável.  Que tudo o que seja mais problematizado, seja difícil de compreender. Mas isto é uma pescadinha de rabo na boca: quanto mais se simplifica, mais se estupidifica. Esse é o tipo de equilíbrio que nós tentamos encontrar na Divergente: ter uma linguagem acessível, fácil, que toda a gente consiga compreender, mas não simplificar aquilo que não é simples. Tentar continuar a problematizar, escolhendo uma linguagem acessível.

G. — Como é que achas que os problemas de literacia mediática, mas também de literacia digital, se podem combater?

S. P. R. — Em primeiro lugar, acho que é preciso traçar um perfil da população portuguesa — há muitos milhares de pessoas, em Portugal, que não têm uma ligação de Internet em casa. Somos uma população envelhecida. A candidatura da Divergente à Civitates identificava esse problema e estamos a tentar alternativas: promover debates públicos sobre os temas que trabalhamos, por exemplo. Não acho mesmo que 100 por cento do jornalismo venha a passar pelo digital, porque acredito que há um nicho de pessoas que terá cada vez mais necessidade de ter um objeto na mão e de se informar nesse objeto não volátil. Não tenho receitas mágicas, mas acho que uma forma de combater a iliteracia mediática é que as pessoas voltem a encontrar-se com os jornalistas, e, para que isso aconteça, é preciso que os jornalistas desçam do pedestal e voltem a entrar em contacto com os cidadãos. Acredito que — e mais ainda depois desta pandemia — há necessidade de promover debates públicos.

Na Divergente, estamos a planear promover debates públicos sobre os nossos trabalhos em Lisboa, mas também fora. Uma das nossas propostas é levar o debate dos nossos temas para o interior de Portugal. Acreditamos que nesses espaços de contacto, em que as pessoas podem perguntar ao jornalista como é que fez, como é que chegou às fontes, o que é que o levou a ir pelo caminho A e não pelo caminho B, podem aproximar os cidadãos do jornalismo. O jornalista é alguém que vemos na televisão, ou que lemos no jornal, penso ser necessário que desçamos os degraus que nos separam e nos desloquemos ao encontro das pessoas, que expliquemos a importância que aquilo que fazemos tem na sociedade. E agora, os mais puristas da profissão dir-me-ão: “Ah, mas esse não é o papel do jornalista.” Pois, se calhar, não é, mas eu consigo conceber esse papel na forma como encaro o jornalismo.

G. — Podes escolher uma das investigações que tenhas feito e explicar-me quais foram as várias fases do vosso trabalho?

S. P. R. — Vou escolher logo a primeira, que foi a “Juventude em Jogo”. Ia a passar na rua, vi uma capa de jornal em que falava de uma série de jogadores oriundos do continente africano que tinham chegado a Portugal com a promessa de virem a ser jogadores de futebol profissional, mas ninguém lhes tinha dado trabalho e, por isso, viviam na rua. Já não era a primeira vez que lia uma notícia com histórias assim, e ficava a pergunta: “Mas quem são estas pessoas?” “O que é que faz jovens com 10, 11, 12, 13, 14 anos deixarem as suas famílias, as suas casas e virem para um continente diferente atrás do sonho de virem a ser jogadores de futebol?” Estes questionamentos foram o primeiro passo e, a partir daí, começámos a construir.

O segundo passo foi: se queríamos contar esta história, era preciso traçar um perfil destas pessoas. Analisámos as principais ligas europeias e tentámos perceber, nesses clubes, quais eram os jogadores, oriundos do continente africano e da América do Sul, que estavam nas principais ligas europeias com menos de 18 anos. Percebemos que Portugal era a sua principal porta de entrada na Europa e que, a partir daqui, poucos conseguiam chegar a grandes clubes. A grande maioria acabava longe da família, longe de casa, a viver no estádio, a comer aquilo que a solidariedade dos vizinhos lhes proporcionava. Ou seja, sem absolutamente nada e com um fardo grande que era a vergonha de voltar de mãos vazias. E foi assim que nasceu a história.

Percebi que a Guiné-Bissau era um dos países que mais enviava jogadores para a Europa e entrei no mundo dos jogadores, com menos de 18 anos, vindos da Guiné. No Facebook, comecei a tentar encontrar jogadores. Estive um ano a falar com o Francisco — que é uma das personagens principais — à distância, , a tentar perceber qual era a sua história, até que um dia ele me disse: “OK, venham ter comigo a Liverpool”. Pensei logo que, para conseguimos fazer essa investigação, era mesmo bom ficarmos o mais próximos possível. Quando nos perguntou se queríamos ficar em casa dele, pensámos: “Isso é tudo o que  queremos”. Passámos uma semana em casa do Francisco, a tentar perceber uma série de dinâmicas a que nunca teríamos acesso se tivéssemos ficado num hotel, e a principal foi a vida de solidão. A solidão que é estar a ganhar uma quantia de dinheiro que nunca pensou e, apesar disso, ter uma vida completamente só, em que podia ficar doente, podia acontecer-lhe alguma coisa, e não teria ninguém à volta com quem se socorrer.

É assim que montamos as nossas investigações. A maior parte dos temas surgem de acasos. Muitos deles vêm de conversas de café com amigos, em que, de repente, ficamos a pensar “isto é interessante”. Temos uma lista onde vamos escrevendo as muitas ideias e, depois, quando queremos [definir] qual vai ser o próximo trabalho, varremos essa lista e decidimos. Criámos a Divergente como um espaço onde queremos fazer aquilo de que gostamos, por isso, as temáticas que escolhemos abordar são também aquelas em que temos interesse, nas geografias em que temos interesse.

G. — Para terminar, podes dar-me exemplos de projetos de jornalismo nacionais e internacionais que te inspirem?

S. P. R. — O primeiro, não é nacional, mas é europeu. Tenho acompanhado bastante a Investigate Europe, da qual faz parte o Paulo Pena, que é jornalista do Público também. Acredito que, em termos nacionais, o caminho vá passar por parcerias com outros projetos europeus, porque as realidades são globais. Distinguiria esse projeto pela capacidade que eles têm de conectar temáticas complexas e de nos fazer perceber como é que elas são contemporâneas e transversais a várias geografias. Gostaria muito que, na Divergente, conseguíssemos que os nossos trabalhos passassem também por colaborações com outros jornalistas, noutros países. A nível internacional, destaco a Agência Pública, porque que é um projeto de jornalismo dirigido por mulheres, que fazem jornalismo de proximidade e de investigação, e tem uma coisa que, para mim, é muito importante: o cuidado em fazer com que os seus trabalhos sejam canalizados para os meios em que as populações afetadas pelos temas têm acesso. É uma grande inspiração para a Divergente.

Texto de Andreia Monteiro
Fotografia de Diogo Cardoso

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