Nesta que será a sua primeira obra em nome individual, a artista recria o clássico russo de Anton Tchekhov, cruzando o pensamento crítico com o humor, a arte e a interseccionalidade, interagindo nas artes performativas portuguesas e repensando o fluxo da história em diálogo com a identidade de género.
O projeto — que recebeu a bolsa de 22 mil euros, com acesso a várias residências artísticas e apresentação do espetáculo nos quatro teatros parceiros — contará com interpretação de João Abreu, Ivvi Romão e Luan Okun, assistência de dramaturgia de Keli Freitas, música de Aurora Pinho e Odete, direção de movimento de Jaja Rolim, iluminação de Luisa Labate, cenário e figurinos de Marine Sigout e produção de Maria Tsukamoto.
Encenada pela primeira vez em 1901 pelo Teatro de Arte de Moscovo, a obra As Três Irmãs explora as vidas e os sonhos de Olga, Masha e Irina, moscovitas de nascença, mas confinadas a uma cidade numa província, no interior da Rússia, da qual anseiam afastar-se.
Na versão de Tita, três irmãs de sangue descobrem-se pessoas trans e não binárias, ao mesmo tempo que se tentam inserir na sociedade. Uma criação que combina a estrutura literária de um clássico com as ideias de vanguarda da contemporaneidade.
Gerador (G.) — Como surgiu a ideia de recriar este clássico russo à luz dos debates da identidade de género e da intersecionalidade?
Tita Maravilha (T. M.) — É muito engraçado, porque a minha formação é em teatro, e a [minha] dedicação dentro das artes acontece depois de descobrir a palavrinha performance. O teatro sempre me pareceu convencional demais, ao mesmo tempo que é a minha base.
Pensando na bolsa [Amélia Rey Colaço], quando decidi que projeto escrever, pensei “vou voltar para um clássico”. Imagino o que é o meu lugar, o que as pessoas vêm, o que elas procuram quando me vêm ver. E essa releitura de um clássico é como Tita Maravilha remontaria.
O contexto dela [As Três Irmãs] me interessa muito. Agora estou no processo de escrita, com a Kelly Freitas, que é a dramaturga. A gente se debruçando sobre o texto, [percebe que] elas não são protagonistas. O nome da peça é As Três Irmãs, mas quem está sempre falando são soldados que as vêm visitar dentro de casa. Elas são totalmente desprotagonizadas, e isso é algo onde agora vou achando os meus interesses.
Mas a princípio as três irmãs eram quase, nesse desejo, de remontar um clássico, sem medo. Não vou ter medo de tocar nesse clássico, porque não tenho protecionismo com o Tchekhov. Com todo o respeito, porém, vou fazer do meu jeito. Na verdade, gosto do Tchekhov, amo A Gaivota, o Jardim das Cerejeiras… As Três Irmãs, confesso que elas são um golpe estratégico para trazer as coisas do jeito que eu quero: numa família, num interior qualquer, três irmãs, com identidades trans… E, depois, como é que duas delas são brasileiras, negras de pele clara, e uma é portuguesa branca, e elas são irmãs de sangue. O meu “pano para mangas” é mais nesse sentido, sabendo que vou usar o Tchekhov, mas não estou presa no texto que ele escreveu.
G. — No fundo, vais trazer para este projeto uma série de temáticas que tens trabalhado ao longo da tua carreira enquanto performer?
T. M. — Sim, mas, em algum momento, a peça traz uma negociação maior. O objetivo não é ser uma peça sobre identidades trans. Isso é uma dúvida que vou trazer. Parece que é tão objetivo que fico com medo de as pessoas quererem vir assistir esperando uma aula. Na verdade, não é sobre identidade trans, é sobre a subjetividade dessas atrizes/ personagens. Elas já são pessoas trans. O meu trabalho vai muito nesse lugar de dissolver as obviedades do que se pensa e o que se escreve, e o que se planeia para o futuro, enquanto pessoas trans.
Ainda tenho interesse em ser uma artista que vai trabalhar essencialmente sobre as identidades trans e sobre as identidades múltiplas; sobre a subjetividade; sobre olhares políticos, direitos humanos… Tudo isso ainda é importante. Ressaltar que morremos muito, que estamos na margem da prostituição. Mas isso já fiz em vários outros lugares. Nesse momento, não vou passar por aqui.
Me interessa muito mais entender problemas e entender dificuldades: como amam? Já foram amadas? Como é o processo dentro da família? Sabe cozinhar? Me conta a história das suas tias. De onde você veio? Onde você nasceu? Tudo isso para pensar que essas histórias normalmente não são contadas desse jeito. Me conta sobre a sua transição. Tenho uma frase que tenho usado muito que é: todo mundo está em transição, quando não se quer chegar em lugares muito óbvios. Essa é uma frase chave, para mim, aqui também. Está todo mundo em transição. Vocês também, pessoas cisgéneras. A metáfora da borboleta não serve. Mas não quer dizer que eu vim de um lugar e fui para outro. O processo ainda continua acontecendo.
G. — Ou seja, não circunscrever as pessoas trans à condição de pessoas trans.
T. M. — Exatamente. Não estaremos pensando as identidades trans enquanto uma condição. É um detalhe da vida dessa pessoa. Claro que encontro artistas, na linha de frente na temática, um pouco nesse lugar, porque estamos morrendo. Ainda não temos as necessidades básicas hospitalares. Ainda não temos as condições básicas de tratamento, mas não vou passar a vida dando aula.
G. — Quando venceste a Bolsa Amélia Rey Colaço, falaste em “sobrepor a trama original a um tema que grita por atenção e pouco discutido com sabedoria e lugar de fala." Vencer esta bolsa, e teres a oportunidade de apresentar este espetáculo, é por si só um marco importante para ti enquanto criadora de um espaço.
T. M. — Sim. Em Portugal, a gente vai percebendo que existem lugares de prestígio dentro das artes, e sempre fiquei muito segura nos espaços onde passei. Quero chegar em outros lugares. Foi muito importante e engrandecedor ter ganhado a bolsa. Também trago isso como abertura de espaço. Enquanto artista marginal, que gosta de ter uma estética marginal, sinto que foi um voto de confiança. Consigo perceber [isso], principalmente, em relação ao pensamento queer no Brasil, de travestis escrevendo para nós mesmas, de trans pretas escrevendo na linha de frente. Já conseguimos passar de uma mão.
G. — Em Portugal, sentes que esse processo está mais atrasado?
T. M. — Às vezes, parece que é importante cutucar. Mas coisas já foram escritas. A gente não precisa inventar de novo essa roda, é só abrir esse livro.
É importante também colocar isso em As Três Irmãs, numa negociação. Apesar de Portugal, e apesar do Brasil, é uma experiência anticolonial. Não estou aqui para ficar reconhecendo mazelas do passado, mas também não estou aqui para passar um paninho seco. Reconhecer uma travesti brasileira artista nesse lugar não é que seja naturalmente anticolonial, mas o meu posicionamento tem a ver com uma renegociação desse passado. Sabemos que, na história da arte, não tivemos muito espaço.
Ao mesmo tempo, há quatro meses, aconteceu um caso no Teatro Experimental de Cascais de transfake. Já se tem falado de transfake em outros lugares e aqui parece que a discussão ainda não tinha acontecido. Transfake não! Temos artistas trans suficientes para fazerem todas as personagens.
G. — “Aqui interessa o futuro, negociar o futuro da escrita”, disseste quando venceste a bolsa. Como é que isso se faz?
T. M. — Vou usar uma palavra bem portuguesa que é "ressabiada”. Sou uma artista ressabiada. Sempre gostei muito da micropolítica. Acho que está mais no dia a dia. Não acho que vá ser a arte dentro de lugares institucionais que vai mudar a cabeça da sociedade, de um país. Ao mesmo tempo, a arte forma o pensamento de um povo. A cultura não é imóvel.
Isso é uma algo que vou aprendendo, porque sou do interior de Goiás, onde a festa do Divino Espírito Santo é refeita há 12 283 anos. E [essa festa] mexe muito comigo. É uma tradição cristã toda misturada. Está sendo refeita a guerra entre mouros e cristãos lá no interior de Goiás, no Brasil. Quase me dá a ideia de pensar que, se me insiro, também estou reestruturando os processos de tradicionalismos. A cultura está sempre em movimento. Nesse sentido, sei que a minha aparição é quase uma ideia de micro-política. E às vezes, isso chega quase a uma ideia mais macro […].
Tenho essa frase que a arte não salva. Ela me ajuda no processo comigo mesma, de me entender. Ao mesmo tempo que também não pode ser terapia, vai para terapia, e a arte vai-se tornando terapêutica. Ao mesmo tempo que sei que tudo o que estou propondo, não é dentro do meu quarto. Estou propondo, e outras pessoas estão em sintonia, então é realmente um pensamento coletivo. Pensando n’As Três Irmãs, nesse lugar que estou imaginando, ela [a arte] vem realmente para trazer uma proposta de olhar. Nisso sei que pode ser bastante transformadora.
G. — Tens limites, impostos por ti, não propriamente por outra pessoa, em relação ao próprio clássico, do que podes ou não fazer a partir dele?
T. M. — Não. Fiquei pensando nisso logo no início. Ninguém me colocou esses limites. Sinto que há uma abertura nessa ideia de jovens criadores e também nessa bancada de pessoas que estavam no júri.
O meu jeitinho vai ser através do humor. Acho que é algo que falta dentro das artes. Tenho vindo a falar disso: o humor interseccional. Tenho trabalhado muito a ideia de stand-up. O Tchekhov que venha puxar a minha perna. “Fala filha: não gostei."
No início, pensei: chegou o momento de formatar. Numa perspetiva comercial, existem formatos. Também sou uma pessoa que estou aqui para vender as minhas coisas, porque sobrevivo só disso — é importante também desmistificar. Agora, vou do jeitinho sem medo, porque acho que isso também vende. Dá para ver quando você está com medo. Então, [é preciso] perceber essas novas comercialidades. “Eu vou-te mostrar o que eu tenho.”
Estou voltando a fazer teatro. Por muito tempo, também fiquei um pouco com medo do teatro, por ser muito engessado das artes, mas, ao mesmo tempo, é a minha porta de entrada, e o teatro permite tudo. Não me sinto condicionada, sabe? Nem pela peça, nem pela estrutura.
G. — Não tens receio que te acusem de “profanar” um clássico?
T. M. — Tem muito mais a ver com como estou negociando pensamento trans com outras artistas trans. Não quero é vacilar nesse lugar e aí, sim, tenho pessoas com quem comunico: por aqui não! Isso é um processo coletivo.
De resto, estragar um clássico? As Três Irmãs é das peças mais montadas. Então, acho que as pessoas hoje, quando vão ver [a peça], não vão para ver a literalidade, mas, sim, como a pessoa a montou. Isso já me interessa, mercadologicamente, que as pessoas venham ver o que fiz com As Três Irmãs.
A ideia também é ter duas aulas para a equipa toda. Estou em busca de, principalmente, mulheres, pesquisadoras de Tchekhov, pensar a Rússia em sociedade, pensar o que é essa busca agora, para ter as metáforas na mão e depois conseguir jogar. Um corpo dissidente quando quer entrar em assuntos que parecem desse mundo normal, tem de estudar e tem que correr duas vezes mais. Disso, já sabemos. Então, isso é o que vou fazer. Vou ficar nerd dentro da minha peça, para que também saiba exatamente quais são os símbolos em que peguei, ou como as meninas são perseguidas - a pobre da Irina, com 18 anos de idade, os soldados todos se fazendo a ela, porque acabou de fazer 18. Não remontarei do jeito que foi. Não nos interessa. Nos interessa brincar com algo que já foi feito e agora a gente remonta. As Três Irmãs sempre existirá.
G. — Trabalhas muito a ideia de corpa política, como referes. Como é ser um corpo dissidente em Portugal?
T. M. — Tem coisas que a gente vai desenvolvendo. A minha primeira sensação é a primeira frase, mais bruta, que veio na minha cabeça: Não existe sossego para um corpo dissidente. Não existe segurança. As cidades são perigosas. As sociedades são perigosas. Ainda não me foi apresentada nenhuma sociedade em que as pessoas não tenham medo de travesti. Tanto Portugal, quanto o Brasil, e alguns outros países onde fui. Algumas coisas mais [são] dissolvidas, outras mais literais. Lugares, por exemplo, onde meu corpo e o meu afeto seriam proibidos por lei. O Brasil é hipócrita. Portugal também.
É muito doido, porque também vou falar das delícias e dores de ser uma corpa dissidente. Acho que está na minha sinopse. Tita Maravilha, ou a lenda da garota do Pau Brasil, ou as dores e as delícias de ter um corpo dissidente. Não estou tentando aliviar que a arte tenha que me salvar e que as coisas têm que refletir isso, enquanto primeira instância. Só sou e faço o que faço porque gosto de emocionar.
Agora, as minhas questões são fortes e vou levá-las para o bar. Vou acabar levando para todos os lugares. Até que ponto a gente está disponível? Tenho aprendido muito. Para mim, a leitura da Castiel Vitorino foi importante. Pensar que há esse lugar de disponibilidade. Nem sempre estarei disponível, mas aí negócio. É importante que dentro do trabalho esteja disponível para negociar. Putz, na rua, é como é. É por isso que também é importante pensar que as pessoas são carentes, dentro dessa sociedade. As pessoas nos desejam, mas não sabem lidar.
Portugal é um lugar violento para pessoas queer - se for para chegar nessa frase. O Brasil é violento. É muito violento. É violento diferente. Estive no Brasil agora, e é sempre duro chegar nessa realidade, do país que mais mata. E sei disso.
[Em Portugal] Nunca passei por uma violência de rua. Mas isso não justifica todas as violências de olhar dentro do metro, ou comentários que vêm associados principalmente ao ser brasileira. Travesti brasileira. Ao mesmo tempo, quando passo nos espaços que são os meus espaços, isso tem obrigado as pessoas a dobrarem o pensamento duas vezes, porque estou no mesmo lugar [que elas]… Então, não quero sentir que estou vivendo numa bolha, sabe? Mas quase num lugar de uma violência subliminar.
*A entrevistada fala em português do Brasil.