Uma filha deve lutar por não ser esmagada
Uma filha deve proteger-se da invasão familiar
Uma filha deve olhar de frente para as pessoas e tentar ver quem elas são
Uma filha deve poder ser quem ela quiser, todos os dias da sua vida
Uma filha deve ter dúvidas, deve ter discussões, deve ter medos, deve mostrar as suas falhas, e continuar a ser respeitada
Uma filha deve ter conversas sobre menstruação, abuso e violência
Uma filha deve ter conversas sobre desejo, sobre força, sobre defesa pessoal, sobre desportos radicais, sobre sexo, sobre porrada, sobre largar tudo e fugir
Uma filha tem de ser a mais bonita de todas
Uma filha tem de fechar as pernas como as princesas
Uma filha tem de sorrir mesmo que não queira
Uma filha tem de ser a melhor naquilo que faz
Uma filha tem de andar depressa se estiver sozinha na rua à noite
Uma filha tem de olhar para todos os lados se estiver sozinha na rua à noite
Uma filha tem de ignorar comentários nojentos
Uma filha tem de aguentar o coração na boca de cada vez que tem medo
Uma filha irá ser apalpada pelo menos uma vez na vida
Uma filha irá ser violentada pelo menos uma vez na vida
Uma filha irá ser silenciada pelo menos uma vez na vida
Uma filha irá, com toda a certeza deste mundo, ser vítima de machismo, de racismo, de preconceito, de injustiça e de maldade
Uma filha quando está à mesa com a família deve dizer o que pensa mesmo quando insistem em falar por cima dela
Uma filha quando está à mesa com a família deve quebrar o sossego se assim for necessário
Uma filha quando está à mesa com a família tem de experimentar arrotar e rir-se disso a seguir
Uma filha quando está à mesa com a família tem de se sentir segura
Uma filha quando está à mesa com a família tem de saber ser democrática
Uma filha quando está à mesa com a família tenta ser a pessoa que deseja ser
Uma filha quando está à mesa com a família finge que está tudo bem
Uma filha quando está à mesa com a família sabe que o mundo lá fora é diferente
Uma filha pode não ter mão ou pai ou nada e continuar a sentir-se filha
Uma filha pode ter tudo e sentir-se órfã
Uma filha não tem de desejar ter filhos ou filhas
Uma filha é mais mãe e menos filha no momento em que tem de tomar conta de quem dela tomou conta
Uma filha não é menos filha nem menos ela por não ser mãe de alguém
Uma filha não é mais ou menos filha por ter ou não nascido com uma vulva
Uma filha não é menos filha por ter pessoas em seu redor que imprimem nela as suas frustrações
Uma filha quer arte, quer revolução não-violenta, quer mudar o mundo, quer dançar à chuva
Uma filha quer um mundo onde possa amar e ser amada de coração aberto
O corpo de uma filha não é para acabar na valeta
O copo de uma filha não é para ser violado
O corpo de uma filha não é para ser engravidado à força, mutilado à força, destruído à força
O corpo de uma filha não é para ser assassinado, raptado, desaparecido, objectificado
Queremos que o nosso corpo seja livre
Queremos que o nosso corpo nos pertença
Queremos que o nosso corpo não seja propriedade de ninguém
Queremos que o nosso corpo não seja rotulado
Queremos que o nosso corpo, seja ele como for, possa ocupar qualquer lugar, todos os lugares
Queremos que o nosso corpo seja válido, seja festejado, seja deixado em paz, e seja só uma pequena parte de tudo aquilo que ela é
Longe da vossa bíblia, da vossa soberba, da vossa arrogância, da vossa falta de amor, do vosso machismo, do vosso fachismo, do vosso horror, da vossa sede de poder.
Porque nós somos luz, brilho, terra, sabedoria, amor, coragem
Somos aço, chuva, madrugada, estória, comunidade, grito
Somos o tremor que faz o planeta girar e teremos as mãos livres para quem nos queira acompanhar
Junho, 2022
E assim continuando
-Sobre Sara Carinhas-
Nasceu em Lisboa, em 1987. Estuda com a Professora Polina Klimovitskaya, desde 2009, entre Lisboa, Nova Iorque e Paris. É licenciada em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Estreando-se como actriz em 2003 trabalhou em Teatro com Adriano Luz, Ana Tamen, Beatriz Batarda, Cristina Carvalhal, Fernanda Lapa, Isabel Medina, João Mota, Luís Castro, Marco Martins, Nuno Cardoso, Nuno M. Cardoso, Nuno Carinhas, Olga Roriz, Ricardo Aibéo, e Ricardo Pais. Em 2015 é premiada pela Sociedade Portuguesa de Autores de melhor actriz de teatro, recebe a Menção Honrosa da Associação Portuguesa de Críticos de teatro e o Globo de Ouro de melhor actriz pela sua interpretação em A farsa de Luís Castro (2015). Em cinema trabalhou com os realizados Alberto Seixas Santos, Manoel de Oliveira, Pedro Marques, Rui Simões, Tiago Guedes e Frederico Serra, Valeria Sarmiento, Manuel Mozos, Patrícia Sequeira, João Mário Grilo, entre outros. Foi responsável pela dramaturgia, direcção de casting e direcção de actores do filme Snu de Patrícia Sequeira. Foi distinguida com o prémio Jovem Talento L’Oreal Paris, do Estoril Film Festival, pela sua interpretação no filme Coisa Ruim (2008). Em televisão participou em séries como Mulheres Assim, Madre Paula e 3 Mulheres, tendo sido directora de actores, junto com Cristina Carvalhal, de Terapia, realizada por Patrícia Sequeira. Como encenadora destaca “As Ondas” (2013) a partir da obra homónima de Virginia Woolf, autora a que regressa em “Orlando” (2015), uma co-criação com Victor Hugo Pontes. Em 2019 estreia “Limbo” com sua encenação, espectáculo ainda em digressão pelo país, tendo sido recentemente apresentado em Londres. Assina pela segunda vez o “Ciclo de Leituras Encenadas” no Jardim de Inverno do São Luiz Teatro Municipal.