“Todos nós passamos por experiências ruins, não há cor no sofrimento, é tudo igual. Se calhar todas essas experiências que tu disseste que passaste foram boas, talvez por isso tornaste-te a mulher forte que és, guerreira. Já pensaste nisso?”
Mulher, branca e portuguesa ao dirigir-se á melhor amiga, uma mulher negra e cabo-verdiana durante uma conversa em que a segunda relatava as situações de racismo e as dores que carrega até os dias de hoje.
Caros leitores, sinto-me uma mensageira de más notícias, mas realmente preciso dividir com todos interessados nesta leitura, a considero pedagógica em muitos sentidos. Embora já tenha experiência clínica o bastante para não me surpreender, confesso que tais falas são como um soco no estômago. É uma fala muito problemática e, durante este artigo, vamos descobrir o motivo de ser tão violenta, carregada de racismo implícito e velado, e o pior, aconteceu numa relação de intimidade e suposto afeto. Veremos que esses elementos de proximidade não são garantia para que uma relação se dê de forma desigual e com hierarquias de humanidade, o racismo é persistente e coexiste nesse jogo.
Num cenário em que o preconceito, o racismo e a xenofobia tendem a crescer em Portugal, a vigilância e a responsabilidade aumentam, especialmente no que tange a disseminação de informação. Eu, particularmente, reconheço que a informação em si não dê conta da complexidade de tais fenômenos, compreendo a existência de uma formatação de mentes que foram forjadas historicamente e contra esse facto demanda-se um esforço exorbitante.
“Não acho que ela tenha perfil para esta vaga, ela é difícil, dura nas palavras, é reativa, não consigo comunicar de forma saudável com ela. Eu não a contrataria para esta função.”
Mulher branca e brasileira, líder numa empresa ao falar numa reunião de equipe sobre uma mulher negra e brasileira, possível candidata para uma liderança. Um exemplo de aferição de estigmas acerca da mulher negra sem levar em consideração sua qualificação.
O conceito de “vieses Inconscientes” embora amplamente disseminado em ambientes corporativos e institucionais, aponta a existência das chamadas crenças implícitas como um fator determinante na expressão explícita do preconceito, e podemos, sim, lançar dele para explicar também relações de intimidade.
Este conceito advém da tradição americana dos estudos das cognições. A primeira pesquisa deu-se em Harvard, e teve como produto o TAI (teste de associação implícita). Em termos práticos, o teste tinha como objetivo principal medir o grau de preconceito de uma pessoa branca a partir da associação que ela faz entre pessoas negras e adjetivações negativas.
Com o passar do tempo, surge um mercado de profissionais e soluções para diminuir o tal preconceito implícito e melhorar as relações institucionais, e investir em imagens positivadas de pessoas negras bem-sucedidas, foi uma das ações que prometiam melhorias. Decerto, sabemos que a representatividade é fundamental para a mudança de mentalidade de uma sociedade pois a imagem, influencia, sim, na forma que pensamos o mundo e consequentemente pessoas. Ademais, numa sociedade auto declaradamente diversa, deveria, sim, refletir essa diversidade em todos os espaços.
A pergunta é: será que a aquisição de habilidade em positivar pessoas negras garante relações de alteridade? Em relações de intimidade, as hierarquias e desumanizações desapareceriam? Nos ambientes corporativos, as disputas e hierarquizações de corpos que produzem exclusões e privilégios estariam capacitados a transcender o que está mentalmente introjectado?
Freud dizia que “o ego não é senhor em sua própria casa”. A forma que fomos socializados transborda a linha do individual. Os exemplos trazidos aqui neste texto revelam que o inconsciente fala bem mais alto. A dimensão mais importante do racismo é a psicológica, essa dá sustento a todas as outras dimensões e não podemos simplificar. Os vieses inconscientes devem ser reconhecidos como uma realidade nociva, producente de toxicidade e sofrimento, um dos subprodutos do racismo estrutural.
A mudança individual de mentalidade é o início do caminho, uma estrada longa de esforços, vigilância, mudança de atitude e de humanização. O antirracismo não é uma plena garantia e não deve ser romantizado, é uma luta cotidiana travada em diferentes frentes. O mais importante dessa reflexão seria a capacidade de identificar tais atitudes como nocivas e combatê-las.
É preciso enfrentar o problema com coragem!
- Sobre a Shenia Karlsson -
Preta, brasileira do Rio de Janeiro, imigrante, mãe do Zack, psicóloga clínica especialista em Diversidade, Pós Graduada em Psicologia Clínica pela PUC-Rio, Mestranda em Estudos Africanos no ISCSP, Diretora do Departamento de Sororidade e Entreajuda no Instituto da Mulher Negra de Portugal, Co fundadora do Papo Preta: Saúde Mental da Mulher Negra, Terapeuta de casais e famílias, Palestrante, Consultora de projetos em Diversidade e Inclusão para empresas, instituições, mentoria de jovens e projetos acadêmicos, fornece aconselhamento para casais e famílias inter racias e famílias brancas que adotam crianças negras.