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Ana Pinto Coelho: “Cultura, educação e saúde mental são as coisas fundamentais de uma sociedade”

O Festival Mental, evento que põe a cultura ao serviço da consciencialização e prevenção de problemas…

Texto de Sofia Craveiro

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Festival Mental, evento que põe a cultura ao serviço da consciencialização e prevenção de problemas de saúde mental, está de volta no próximo mês. De 20 a 28 de maio, o Cinema São Jorge, a Fábrica Braço de Prata e o Espaço Atmosfera M. vão receber as atividades que têm como intuito promover a literacia em torno da saúde mental e quebrar o estigma face às doenças deste foro.

Este ano, estão em destaque a Ecoansiedade, Depressão e Somatização, temas que, de acordo com Ana Pinto Coelho, surgem na continuidade da edição anterior, que incidiu sobre ansiedade, toxicodependências e stress pós-traumático.

A ecoansiedade, em particular, surge dos problemas enfrentados pelos jovens preocupados com o ambiente, que vêm as suas lutas fracassarem. “Eu percebo porque é que eles andam deprimidos, porque é que eles andam sem chão, sem saber o que fazer, porque ninguém lhes liga absolutamente nada, porque as pessoas ainda estão a viver de forma muito egocêntrica, para si próprias”, diz a diretora e curadora do Festival Mental. Em entrevista ao Gerador, Ana Pinto Coelho destaca ainda a importância de falar sobre emoções, positivas e negativas, de forma a desconstruir estigmas e prevenir problemas futuros, sobretudo no que respeita às idades mais jovens.

Gerador (G.) – Ecoansiedade, Depressão e Somatização são os temas da próxima edição do Festival Mental. Pode explicar o porquê da escolha destes assuntos?

Ana Pinto Coelho (A.P.C.) – As escolhas são sempre um bocadinho aleatórias, tendo em conta a situação do país em determinada edição. É aquilo que me parece mais objetivo e mais necessário falar em cada ano e é sobre essa necessidade que eu sinto – e isto é uma coisa mais subjetiva e empática até em relação às pessoas – aquilo que mais me parece importante falar em determinado ano e, por isso, é assim que eu escolho os temas.

G. – Então porque lhe pareceram mais importantes estes, em específico?

A.P.C. – São, obviamente, porque vêm já na continuidade do ano passado, em que falámos do [stress] pós-traumático, e que tem, obviamente, que ver com o facto de se viver o que se tem estado a viver, com a covid-19, confinamentos e o que é que isso faz à saúde mental. O ano passado,o [stress] pós-traumático já foi por causa disso. Com o [stress] pós-traumático, nós começamos a sentir os sintomas depois do trauma, bastante tempo depois. Ora, se o festival foi em outubro, o confinamento foi em março, abril, maio, depois houve aquele confinamento/desconfinamento... portanto, os primeiros sintomas que uma pessoa poderia começar a sentir seriam exatamente na altura do festival. Por isso é que escolhemos falar do [stress] pós-traumático, para explicar às pessoas o que é isso seria, porque muita gente estava já a viver isso, em outubro. Quanto à depressão, é a linha lógica e subsequente do [stress] pós-traumático, porque quem não ficou com [stress] pós-traumático, ficou com certeza debilitado em termos de saúde mental. Não há ninguém, neste momento, que não esteja minimamente debilitado com tudo isto, é impossível. Portanto, passámos para a depressão agora, para se falar um bocadinho mais sobre isto e explicar o que é que é, o que é não é. Claro que estamos sempre baseados no filme, que vem a seguir mas... pronto, esse é a razão. Tem tudo que ver com a época que estamos a atravessar.

G. – E a parte da ecoansiedade?

A.P.C. – No ano passado, nós tivemos [nos temas selecionados] ansiedade só, e, mesmo assim, convidámos uma pessoa já com uma pontinha a pegar a ecoansiedade, uma pessoa que já sabe de ecoansiedade – que não há muitas pessoas cá [em Portugal] a falar sobre isto e a saber disto.

A ecoansiedade, neste momento, em termos europeus e em termos de toda a sociedade... digamos... de primeiro mundo – como se costuma dizer – [surge porque] os jovens estão cada vez mais cultos, inteligentes, preocupados, ao contrário do que se costuma dizer. Não digo que seja a maioria – podem ser até a minoria –, mas são uma minoria [à qual] tem de se prestar um respeito absoluto, ao trabalho que eles estão a fazer. Não são os que andam no Instagram, nas redes sociais. Esses são os que aparecem, mas a maior parte da nova geração está preocupadíssima com as alterações climáticas, está preocupadíssima com o que está a acontecer ao planeta, e com toda a razão. Mudaram os seus modos de vida completamente, passaram a ser vegans, procuraram [incluir] essa economia consciente na sua vida, não andam a comprar produtos que usam óleo de palma, têm uma responsabilidade ética, moral, social e humana que nenhuma geração anterior teve.

Nenhum de nós nunca andou preocupado com o que é que está a comer e de onde é que vem, pelo contrário. [Pensa-se] “que bom que tenho uma t-shirt tão barata que comprei na Primark e custou-me só cinco euros, que bom, que fixe!”. A custo de quê? Quem é que fez esta t-shirt? De onde é que isto vem? De que trabalho escravo infantil, da China ou do Bangladesh, é que isto vem? Ora, estes jovens, agora, têm essa preocupação social e têm-na de uma forma muito séria, muito estudada e muito sustentada. Eles sabem de que é que estão a falar, sabem o que é que estão a dizer... e não é só a Greta [Thunberg], há milhões de “Gretas” neste mundo.

Só que, depois, há um problema em termos de saúde mental com esta gente toda. É que ficam completamente sem chão, estão completamente sem chão. Ninguém os ouve, ninguém quer saber, a maior parte das pessoas ri, saem à rua – apesar de eles saberem e terem a noção, e isto está mais do que estudado cientificamente –, saem à rua, vão ao restaurante mais próximo e está toda a gente, na mesma, a comer o bife, o frango na mesma, como se não existisse nada disto. [Há] filas no McDonald’s, as grandes indústrias que estão a destruir – literalmente – o planeta estão a viver cada vez mais... ainda agora, com isto da covid[-19] e das entregas... Amazon e coisas assim empresas mesmo muito feias – eticamente, muito feias mesmo, que não deveriam já existir – estão a ganhar mais e mais e mais dinheiro.

Agora, pondo-nos nos pontos de vista deles – que, por isso é que eu chamei este tema ao Festival Mental –, eu percebo porque é que eles andam deprimidos, porque é que eles andam sem chão, sem saber o que fazer, porque ninguém lhes liga absolutamente nada, porque as pessoas ainda estão a viver de forma muito egocêntrica, para si próprias. Estamos aqui, depois de uma pandemia e da covid, a falar de retoma? De querer que volte tudo ao mesmo? Estamos a brincar? Voltar ao mesmo, ao horror que isto tem estado? O ser humano desligou-se de si próprio, desligou-se dos outros, desligou-se de tudo, está com problemas de saúde mental cada vez maiores, mais frequentes... e [problemas] físicos. O cancro está a crescer imenso por causa da alimentação... tudo, tudo, tudo. E as pessoas dizem que querem voltar ao normal?! Mas qual normal?... e é isto que as pessoas têm de pensar duas vezes.

Cartaz Festival Mental

Daí que tenhamos feito, este ano, um esforço maior nisto, sobretudo quando me assustei com as taxas de suicídio destes miúdos, no Reino Unido, na Alemanha e, já não me lembro se é na Suíça se é na Suécia. É que eles chegam a uma altura em que já não aguentam mais, porque eles vêm que não há esperança, não há esperança. Como dizia uma pessoa que eu entrevistei no outro dia, uma cantora lírica, “quando o homem pára, a natureza rejubila”. E nós vimos isto. Está tudo dito. E nós queremos, não [isto, mas] que voltem os navios todos outra vez para o Tejo, aviões com viagens a preços baratíssimos... porque é isso que nós queremos, economismo, economia sem ser consciente, consumismo até à loucura.

É que isso dá um vazio imenso em termos espirituais, em termos mentais, em termos psicológicos, porque estamos cada vez mais longe de nós, estamos só a comprar e a ir e a fazer, comprar, fazer, fazer, fazer, trabalhar, trabalhar, trabalhar... tudo, menos estar connosco próprios. Tudo menos olhar para o outro com calma, ouvir o outro. Tudo menos sermos humanos e empáticos. E a ecoansiedade tem que ver com isto tudo. Tem que ver com este perfil dos meninos que deixam de dormir – meninos, meninas e crescidos – que têm de tomar antidepressivos, mas depois também não querem, e que se estão a suicidar cada vez mais, porque vêm que o mundo não pára.

Eles já desligaram da vida deles, já deixaram tudo. Ninguém diz que estes vegans não gostam de carne e peixe. Eles gostam, deixaram foi de comer por outros motivos, porque são altruístas, ao contrário de todos nós e merecem imenso respeito. Eu tenho muito, muito respeito, por esta gente toda.

Repare, a questão da sobrepopulação do planeta é outra coisa que os preocupa imenso, aos vegans e todas estas pessoas, porque vegan não é só a comida, vegan é um modo de vida. Eles estão muito preocupados com a sobrepopulação, portanto, não têm filhos, e querem! Estão a deixar de ter. As pessoas com consciência, que têm agora 23, 24, 27, 28, 30, 31, 33 anos... conheço tantos que tentam dar o exemplo. Não têm filhos, não é porque não queiram, e ficam tristes. Eles querem, mas dizem “tanta gente neste mundo, não vai haver comida que chegue para todos, nem água. Para que é que vou pôr filhos no mundo?”. Eles depois têm este aspeto muito derrotista. [Pensam] “o que vai acontecer aos meus filhos é passarem a vida a ter que procurar comida e água”, que é o que vai acontecer.

Isto é ecoansiedade, é isto que provoca, uma ansiedade brutal e um modo de vida em permanente ansiedade, e deixam de viver a suas próprias vidas a favor da humanidade, a favor dos outros, que, ainda por cima, não só não ligam nem querem saber, como ainda gozam muitas vezes. É um absurdo. Acho que é mesmo urgente falar disto, por isso é que o nosso livro, este ano, é o primeiro livro sobre ecoansiedade que está a ser feito em Portugal. Está a ser feito não, já foi feito, já está na gráfica, estou muito contente.

G. – Pois, está a ser lançado...

A.P.C. – Já vai ser lançado na Atmosfera M., no Festival Mental, dia 28 de maio, que é uma sexta-feira. Vai ser lançado o livro que eu encomendei ao Vieira de Castro só sobre ecoansiedade. É a primeira vez que se vai fazer isto em Portugal, vai ser no âmbito do festival. Estou muito contente e, no que puder ajudar, vou ajudar, porque eu estou muito com eles. Não sendo eu vegan, nem sequer vegetariana, [pois] a única coisa que fiz para diminuir a minha pegada ecológica foi deixar de comer carne, mais nada. Tenho outros cuidados e tenho, sobretudo, muita pena de não ter sido educada com princípios diferentes daqueles que fui, porque realmente não tinha ideia. E mudar mais tarde custa um bocadinho mais.

G. – É sempre mais difícil, de facto...

A.P.C. – Mas é possível. Se quisermos, é sempre possível.

G. – Falava há pouco da pandemia... esta é a segunda vez que o festival acontece em neste contexto.

A.P.C. – É verdade, passámos pelos pingos da chuva.

G. – O que é que podemos, então, esperar desta edição do festival?

A.P.C. – Passámos mesmo pelos pingos da chuva... Nós estamos a fazer como no ano passado. Ninguém aqui ficou enervado, foi tudo tranquilo, sempre a acreditar que as coisas iam correr bem, e assim aconteceu, felizmente. Correu mesmo muitíssimo bem, e este ano estamos à espera que aconteça da mesma maneira. Estamos a fazer programação presencial e a contar já com o Mental Júnior e com o Mental Jovem também. O ano passado cancelámos bastantes atividades do Mental Júnior, porque isso é que não dava mesmo. O contacto com as crianças e as atividades que há com eles envolvia muito contacto físico. Este ano temos planeadas as atividades, [temos] uma oficina com as crianças e tudo. Vamos ver se conseguimos fazer ou não. Com todos os cuidados e mais alguns, mas vamos ter Mental Júnior na mesma, portanto, em princípio, estamos a contar que corra tudo bem.

G. – O que pode dizer-nos acerca dos filmes submetidos na open call?

A.P.C. – A open call foi [aquela] que nós tivemos com maior submissão de filmes. Foram acima de 170 submissões, vindas de 45 ou 46 – não sei dizer ao certo, rigorosamente – países. Foi um trabalho muito árduo para os selecionadores, obviamente, trabalho árduo também para a programadora, porque depois, de repente, tínhamos muitos mais filmes que gostaríamos de ter nas sessões, do que aquilo que é possível, porque o tempo é aquilo que é, e não se pode estar a inventar mais tempo. Portanto, a Catarina Belo, que é a programadora teve muito trabalho a fazer isto para o [cinema] São Jorge e depois para as outras cidades. De qualquer maneira está feito, está bem feito, esperemos que gostem. Mas foi um sucesso muito grande, em termos de diversidade de filmes também, que recebemos. Às vezes nota-se que há edições em que, por algum motivo – não sabemos qual é, é impossível entender isto, porque vem de toda a parte do mundo, de outros continentes, portanto não há uma razão lógica que eu consiga identificar... ou se calhar até há, mas eu não consigo identificar – em que, por exemplo, há três ou quatro anos, havia muito filmes sobre demências, alzheimer, os seniores, os mais velhos, os problemas de saúde mental. Houve um ano, que eu tenho memória, em que eram imensos filmes sobre suicídio, suicídio, suicídio. Ou seja, que se via claramente uma temática mais forte nos filmes. Este ano nem por isso. Se tivesse que dizer algum [tema], falaria do confinamento, porque tivemos, de facto, vários filmes já à volta da covid-19, do confinamento e da saúde mental.

G. Tiveram muitas submissões oriundas de Portugal?

A.P.C. – Tivemos, foi o ano em que tivemos mais submissões também de Portugal, felizmente, e algumas com melhor qualidade, também, porque o problema de Portugal não tem sido só serem poucas, é também a qualidade. Ou seja, é a qualidade quando temos de comparar com os que vêm de fora, porque se fosse sozinho, em Portugal, pronto... uma pessoa baixa um bocadinho os braços e desvia os olhos para o lado e a coisa até passa, falando em bom português, mas tendo em conta depois a qualidade do que nos vem de fora... e as matérias e os temas são os mesmos, estamos a falar sempre de saúde mental.

Não há necessidade de continuar a fazer coisas tão fraquinhas com aquelas que nós temos recebido, mas este ano melhorou consideravelmente. Portanto, eu não sei ao certo a programação, para lhe estar a dizer agora. A programação está feita, mas vamos passar acho que dois ou três filmes portugueses este ano, no Festival Mental. Ou seja, é um aumento significativo porque [normalmente] ou não há nenhum, ou [só há] um. Está a melhorar. Eu acho que isto tem que ver também com as parcerias e com as ajudas que nós temos de toda a gente, incluindo o Gerador – quer dizer, a divulgação disto para os realizadores portugueses, [para] eles saberem que há o festival e que devem submeter [trabalhos] e tudo isso – tem ajudado muito, porque, lá fora, penso eu, os produtores e realizadores estão habituados a andar nestas plataformas internacionais, vão à procura dos festivais, participam, aparecem. Não nos conhecem de lado nenhum, mas aparecem de todo o lado, e os portugueses não. Parece que temos de andar atrás dos portugueses e a fazer campanhas e a pedir a jornalistas que ajudem a divulgar... Até a Antena 3 nos fez uma campanha de spots de rádio.

Parece que temos de andar atrás dos meninos, quer dizer... em Portugal, anda-se muito assim. E depois quando alguém escreve pedem para não pagarem – que é uma taxa ridícula que quase nos obrigam a pedir, por causa da Freeway... quer dizer, eles obrigar não obrigam, mas se a gente se põe a pagar zero [euros] por submissão aparece-nos todo o lixo deste mundo e mais algum, portanto temos de pôr sempre [um pagamento], nem que seja só para não dizerem que é de graça.

Ainda assim ainda há portugueses que se queixam e dizem, “mas somos portugueses não devíamos pagar nada”. Peçam freewave, e nós damos sem problema, mas nem isso fazem. É um tom de arrogância... é muito diferente o trabalho com os realizadores portugueses do que o resto do mundo, mas estamos aqui para isto, devagarinho a coisa há de acontecer. E estamos a crescer com o número de candidaturas portuguesas, e isso deixa-nos contentes, obviamente.

G. – E o número global, de submissões, também tem crescido de ano para ano?

A.P.C. – Sim, claro, claro que sim. Tem crescido de ano para ano, exatamente.

G. – O Festival Mental continua a apostar em fazer da cultura um instrumento para o debate público e a consciencialização...

A.P.C. – Promoção e prevenção da saúde mental, sim.

G. – Qual o balanço que faz desde a primeira edição do festival?

A.P.C. – É assim, eu só posso fazer um balanço para lá de positivo porque, não só em resultados de comunicação e estudos de impacto da comunicação que nós temos – que são estatísticas feitas pela Manchete, que é uma empresa que faz auditoria externa –, nós temos crescido em termos de comunicação e divulgação por todo o lado. Em última instância, é disto que se trata. É nós estarmos a fazer as coisas para que haja comunicação e informação pública. Isso significa não só fazer uma boa programação em sala e ter salas cheias – isso até acaba por ser o mais irrelevante – o mais importante de tudo é que se fale de saúde mental, e que se fale de saúde mental de uma forma absolutamente normal, como se fala de outra saúde qualquer, ou de outro assunto qualquer, diria.

Isto só faz sentido começando a entrar, sobretudo, na comunicação social. E eu acho que, ao longo destes cinco anos – também um pouco graças ao nosso esforço de incluir permanentemente jornalistas neste festival, seja a moderar os nossos debates, seja a convidá-los para as inaugurações, seja o contacto permanente através de press releases, a avisar o que é que está a acontecer permanentemente, mesmo durante o ano, sem ser só no festival. Claro, não é estar permanentemente a aborrecer [as pessoas] com o festival, mas ir mantendo [o público] a par das atividades que estamos a desenvolver – foram-se abrindo, devagarinho, e a custo, portas e portas e portas.

Agora noto perfeitamente que se fala muito mais de saúde mental. Claro que a covid veio ajudar e o confinamento e o que as pessoas estão a passar por esta altura veio ajudar, porque veio ao de cima, ainda mais, a saúde mental, mas nós já vínhamos de trás, bastante de trás, a fazer este trabalho. Em muitas redações, eu diria mesmo, havia muitos jornalistas – até quando começaram a agora, por causa da covid-19 – a [considerar] “mas eu já falei nisto, porque já moderei um debate sobre isto, há um ano, há dois, há três, há quatro, há cinco”... Tecnicamente vieram dizer-me “eu não fazia a mínima ideia de que se devia falar de suicídio na televisão, pensei que era proibido, eu não sabia”. Há uma iliteracia em relação a tudo isto na própria comunicação social. A par do público e das pessoas, a comunicação social faz parte do nosso alvo, para [que se gere] informação e para que se fale mais de saúde mental.

G. – Esse tipo de temas – como o suicídio – de forma se deve falar nisso, nomeadamente junto das crianças?

A.P.C. – Nós, com as crianças, não vamos falar de suicídio. Nós, com as crianças, o que fazemos, em termos de falar de saúde mental, o mais importante de tudo e a única coisa que a mim me preocupa – poderá haver outras, mas este é o meu festival, por isso eu é que escolho [risos] – e a única coisa que acho que elas precisam mesmo de saber é que é OKter emoções. É OK estar triste, irritado, zangado, como é OK estar feliz e contente, como é OKsentir coisas que parecem desagradáveis e não ter vergonha de mostrar os sentimentos e emoções.

Acho que uma criança que vive com esta noção sente-se protegida, sente-se bem consigo própria e vai crescer com uma boa saúde mental e vai saber ter mais resiliência e resistência à frustração quando for mais velho. Em vez de ser aquela proteção constante dos meninos, “o menino não pode cair”, “o menino não pode magoar”, “o menino não pode chorar”, “o menino não pode isto”... pode pois! Pode e deve. E os adultos devem olhar para isto com aceitação, para não haver bullyings, para não haver [quem chame de] mariquinhas ou todo o rol de disparates que ainda hoje em dia se diz, e que acontece nas escolas ainda. Portanto, há muito trabalho aqui para fazer com as crianças, muito mesmo. Porque aceitar que o menino naquele dia vai para a escola, está triste, enfia-se num buraco e não quer falar com ninguém porque o avô morreu ontem... isto já me foi dito, num festival, por uns pais, uma vez. O miúdo sofreu imenso, ele estava diferente, simplesmente porque o avô tinha morrido, e nem queria ir às aulas, porque sabia que ia ser gozado. Ora, isto... há mesmo trabalho a sério para fazer com isto, junto dos professores que não têm ainda, de todo, a noção de como devem lidar com a saúde mental das crianças. Não sei se ensinam nas escolas dos educadores de infância, não faço ideia. Falam muito de pedagogia, mas se calhar não falam de saúde mental. Portanto, em relação aos miúdos não me interessa o suicídio, não lhes vou falar disso. Pode até haver um caso na família, mas a única coisa que eu acho muito importante são as emoções, eles saberem que não há problema nenhum chorar, não há problema se está zangado. O que é importante é falar com alguém, pedir ajuda, falar, falar, falar e comunicar. Mais nada. Se isto for feito, o trabalho está feito, pelo menos da minha parte.

G. – E até acaba por ajudar se eles virem exemplos em filmes...

A.P.C. – É por isso mesmo que nós temos os filmes, é exatamente para mostrar isso. Não é só o Inside Out – ou Divertida-mente, que é sempre o exemplo mais lógico e clichê – mas há outros filmes. Aliás, tudo o que é Pixar e Disney, cada vez são mais filmes para adultos do que para crianças, não é? Já o [filme] Coco era com a morte, porque tinha morrido o avô do boneco principal... e portanto, acho que a própria Disney Pixar, os filmes estão a virar muito para estas temáticas, das emoções, dos sentimentos e a brincar menos. Aliás, nós vamos falar até para jovens adultos. O próprio Harry Potter não tem problemas nenhuns em matar uma data de gente, aquilo quase parece o Game of Thrones para os miúdos [risos]. E todos choram desalmadamente porque matam até o Dumbledore... portanto acho que [os temas] estão presentes, sobretudo internacionalmente. Estes assuntos estão presentes para os miúdos e para os jovens adultos e nós, aqui, tentamos fazer o mesmo, porque acho que há muito pouco ainda, muito pouco mesmo, para não dizer nada, ou quase [nada]. Depois, quando há, é tudo muito a medo, muito ao de levezinho. Nós tentamos fazer um bocadinho diferente.

G. – Quais são, na sua opinião, os maiores problemas que enfrentamos no nosso país – e não me refiro apenas às crianças, mas de uma forma geral – no que respeita à saúde mental e à sua preservação?

A.P.C. – Acho que há muito estigma. Isto é um bocado clichê – lá voltamos nós aos clichês –, mas continua a ser verdade. Há muito estigma, sobretudo nas idades mais velhas. Os mais velhos têm um estigma imenso com pedir ajuda para a saúde mental. Associam ainda à fraqueza, “sou forte, não preciso de ajuda”. Não associam a doença, associam a ser forte ou fraco, o que é errado. Depois acho que é preciso haver muito mais investimento em termos de – infelizmente é assim que o mundo gira, este mundo que nós criámos e que estamos a viver agora, que está terrível, mas é o que é – empenho político, a sério, e financiamento a sério nesta área. Porque tal como a cultura é o parente pobre de tudo, de todos os outros, dos ministérios e tudo o resto, a saúde mental é o parente pobre da saúde. Entre cultura e saúde mental, estamos com os dois parentes pobres de tudo e mais alguma coisa, e isto tem de ser completamente invertido, porque cultura, educação e saúde mental são as coisas fundamentais e basilares de uma sociedade, para mim.

G. – Então, na sua opinião, devia haver outro tipo de estruturas, dedicadas à saúde mental, no Sistema Nacional de Saúde? É isso?

A.P.C. – Devia dar autonomia completa ao Programa Nacional para a Saúde [Mental], que funcionaria muito bem. Tem pessoas supercompetentes à frente e não têm autonomia. Está sempre dependente do que lhe chega, não tem autonomia, nem física, nem administrativa nem financeira, nem absolutamente nada. Depois nós ouvimos os políticos na televisão a dizer que vão aplicar um maior investimento na saúde mental etc. Não é o investimento, são as condições para que o Programa Nacional para a Saúde Mental possa funcionar e, para isso, precisa só de uma coisa: ser autónomo. Como é o SICAD [Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências], com as toxicodependências, que é área onde eu trabalho. O SICAD tem autonomia da DGS [Direção-Geral de Saúde] há anos e anos e anos. O Programa Nacional para a Saúde Mental devia ser muito mais abrangente, devia abranger o SICAD, no meu ponto de vista, porque as adições são um problema de saúde mental.

G. – Deviam estar interligados?

A.P.C. – Interligados ou fazer parte mesmo, como haverá outros para as demências, ou outro para o suicídio, ou outro para os jovens, enfim... vários. Devia tudo fazer parte do Programa Nacional para a Saúde Mental. O professor Miguel Xavier... nós temos uma sorte com este diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental, que devíamos aproveitar ao máximo. Ele faz o trabalho muito bem feito, o trabalho de casa está todo feito, ele só não faz o que não o deixam fazer. É uma questão disto seguir, passar a ser como o SICAD, ter a autonomia que o SICAD tem, no mínimo dos mínimos.

Isso era o princípio e nem sequer custaria muito ao país, porque a saúde mental – como eu costumo dizer e às vezes eles dizem muito a brincar –, se a pessoa tratar a saúde mental previne a saúde física também, por causa das somatizações, deixa de ter uma data de outras doenças. Ora, essas outras doenças físicas são as que custam muito dinheiro ao país. A saúde mental não implica análise, imagiologia, mais exames disto, mais exames daquilo...não, não, não. É muito mais barato. Até em termos de economia, sai muito mais barato investir na saúde mental e as pessoas andarem bem – porque andam, depois, fisicamente melhor, também e evita-se um dispêndio estúpido de dinheiro em saúde física, quando muitos dos problemas são só psicossomáticos.

Texto por Sofia Craveiro
Fotografias cedidas por Ana Pinto Coelho

O Gerador é parceiro do Festival Mental

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