Na crónica imediatamente anterior introduzi a importância de celebrar de forma significativa e pertinente os 30 anos volvidos sobre a participação de Portugal como país tema do Festival Europália 1991.
Para além de todo o contexto absolutamente excecional já referido, uma outra ordem de razões torna urgente esta evocação. Todos quantos aqueles que trabalham no meio cultural em Portugal, designadamente aqueles sobre os quais recai a formação das gerações mais jovens, sabem quão lacunar e pobre é a elaboração de uma narrativa sobre a progressiva e difícil consolidação da cultura como categoria de intervenção pública, ao longo de 46 anos de Democracia.
Ora, a realização do Festival Europália teve consequências duradouras e deixou um legado que se prolongou até aos nossos dias, disseminado por várias vertentes.
A primeira que desejava evocar é a que designaria como um verdeiro “laboratório” para todos os eventos culturais de iniciativa pública que se realizaram ao longo dos anos 90 e que desenham, eles próprios, um arco de 10 anos de 1991 a 2021; o ciclo encerra-se, de algum modo, com a realização do Porto Capital Europeia da Cultura. Em 1990, foi nomeado governamentalmente um comissariado presidido por Emílio Rui Vilar e Fátima Ramos que espelhava na estrutura orgânica criada e nas direções/ coordenações que integrou, lideradas por uma mole dos melhores especialistas de Simonetta Luz Afonso a Eduardo Prado Coelho; de José Ribeiro da Fonte a Miguel Lobo Antunes, onde pontuavam igualmente gestores notáveis como Adelaide Rocha. O programa queria-se vasto e revelador da riqueza e diversidade da cultura portuguesa, das manifestações mais patrimoniais às mais contemporâneas disseminadas pelas expressões artísticas mais diversas: música, teatro, ópera, cinema, artes plásticas e património.
Um segundo nível consequência prende-se com o que hoje designaríamos como “formação em contexto de trabalho”. Quanto a este aspeto é necessário sublinhar que o Portugal do início dos anos 90 oferece um panorama paupérrimo, para não dizer inexistente, em termos de formação de quadros profissionais qualificados para o setor cultural. As organizações culturais existentes, públicas na sua maioria, tinham ainda unidades de gestão muito incipientes. A formação académica ou profissional era praticamente inexistente.
Deste modo, a sucessão de grandes projetos que pontuou, como referimos a década de 90, funcionou também como importante formação acelerada em contexto, digamos, informal, de uma geração de profissionais que hoje se disseminam pelas mais variadas responsabilidades, constituindo, em boa parte, garante do funcionamento do “sistema nacional de cultura”, assumindo, por sua vez, o papel de formadores de futuras gerações de novos agentes.
Um terceiro e último aspeto releva o Festival Europália 91 como um pujante estímulo à consolidação de novos movimentos culturais que caracterizaram o advento da década de 90 em Portugal, exemplos muito significativos foram a Nova Música Portuguesa, em que pontuaram nomes de bandas históricas como os GNR, Madredeus ou Xutos e Pontapés, ou de forma ainda mais eloquente o Movimento da Nova Dança Portuguesa cujos fundadores, Vera Mantero, João Fiadeiro, Francisco Camacho, Margarida Bettencourt, Clara Andermatt e Paulo Ribeiro, precedidos por Paula Massano, encontraram, neste contexto, o desafio necessário para a o início da sua carreira como “criadores / autores”. A prova mais sintomática deste fenómeno e, talvez, a sua vitória mais emblemática saldou-se pelo reconhecimento do estado português, cinco anos depois, ao colocar a dança contemporânea como uma das expressões artísticas a apoiar no regulamento de apoios financeiros então criados pelo Ministério da Cultura, como instrumento maior da política setorial de desenvolvimento das artes do espetáculo.
Há quase 30 anos o desenvolvimento cultural português iniciou um processo rumo à sua maturidade, processo sempre inacabado, polémico, ainda insuficiente. É urgente refletir, olhar para trás, sem que temamos as estátuas de sal. O futuro é sempre um prenúncio do passado.
-Sobre Miguel Honrado-
Licenciado em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e pós-graduado em Curadoria e Organização de Exposições pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa/ Fundação Calouste Gulbenkian, exerce, desde 1989, a sua atividade nos domínios da produção e gestão cultural. O seu percurso profissional passou, nomeadamente, pela direção artística do Teatro Viriato (2003-2006), por ser membro do Conselho Consultivo do Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência – Descobrir (2012), pela presidência do Conselho de Administração da EGEAC (2007-2014), ou a presidência do Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II (2014-2016). De 2016 a 2018 foi Secretário de Estado da Cultura. Posteriormente, foi nomeado vogal do Conselho de Administração do Centro Cultural de Belém. Hoje, é o diretor executivo da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC), que tutela a Orquestra Metropolitana de Lisboa e três escolas de música.