Demorei quatro dias de Pequim a Ho Chi Minh. Na fronteira entre a China e o Vietname, a polícia vietnamita não ficou muito satisfeita com o meu passaporte e mandou-me esperar mais várias horas numa sala imunda da estação, com água escorrendo pelas paredes e baratas passando por cima dos meus pés. Já sabia que não devia mostrar as minhas credenciais ecomunistas por causa do conflito diplomático entre o Vietname e os ecomunistas da Malásia e das Filipinas. Acabei por conseguir usar o meu telefone no WC, recorrendo novamente ao contato com Deng Ming, que uma vez mais me disse que “ia ver o que era possível fazer”. E uma vez mais, em pouco tempo o problema estava resolvido: podia continuar a minha viagem, abandonando a sala húmida.
Embarquei no antigo comboio de Hanói, pintado a vermelho e a verde, viajando como de costume numa carruagem-cama. Como não podia utilizar as minhas credenciais normais, tive de pagar a viagem com carbos pela primeira vez desde que tinha saído da Europa. Custou 4 carbos, que me pareceu muito pouco. O carbo tinha sido criado para equilibrar exportações e importações a nível internacional, através de trocas entre o Banco Mundial do Clima, as suas sedes nacionais e os bancos centrais que ainda sobravam. Mesmo os países fora do Tratado Mundial do Clima aceitavam os carbos, depois do colapso do dólar, do euro, do renmibi e das criptos. Além do comércio internacional, há uma pequena quantidade de carbos em circulação aceite para pequeno comércio. Era assim que eu conseguia continuar a movimentar-me mesmo fora do espaço do Tratado.
Na plataforma de onde o comboio saía, ao fim do dia, havia grande movimento com venda de comidas, doces, brinquedos, roupas, sapatos e várias coisas amontoadas em bancas como eu não via há muito. Centenas de pessoas andavam por ali a tentar vender coisas, enquanto outras, em particular homens, sentavam-se em mesas e cadeiras de plástico, com chinelas no pé, fumando e tomando café ou cerveja. Além de música, ouviam-se ruídos muito altos, e reparei que eram velhas motas. Pelo barulho, ainda deviam ter motores a combustão interna. O cheiro era tão intenso que fiquei com náuseas. Notava-se que o Vietname não fazia parte do Tratado Mundial do Clima. As relações entre vizinhos nesta zona do mundo deviam ser complicadas, já que havia combinações de diferentes regimes, guerras que ainda continuavam e uma série de novos territórios que se afirmavam como países. A devastação provocada por tufões e tempestades tropicais ano após ano também deixara fortes marcas, principalmente nas Filipinas e na Indonésia. Tinha de reler a entrevista que a Lia tinha feito à Mei.
Estava à espera de problemas para conseguir chegar ao Sul do Vietname, mas felizmente a guerra entre Myanmar e a Tailândia limitava-se naquele momento ao território dos dois países, após o Laos ter-se unido ao Camboja numa federação defensiva. Ainda assim, eram perceptíveis as mobilizações militares, em particular nas estações em que parávamos, com tanques, peças de artilharia e jipes camuflados, embora quem os pilotasse estivesse vestido à civil. As ruas, ainda maioritariamente asfaltas, permitiam ver grande quantidade de bicicletas e motas, veículos militares e uma enorme quantidade de autocarros. Observando os prédios velhos, eram notáveis os ares condicionados pendurados em todos os andares. No topo, pontuavam pequenas turbinas eólicas e painéis solares, embora muito menos que em todos os países que eu vira até ali. Perguntava-me qual seria a rede elétrica que aguentaria o consumo durante o período do calor.
Em cada estação em que parávamos, repetia-se o cenário: grande quantidade de militares e de vendas de rua, centenas de vendedores expondo as suas pequenas mercadorias, que incluíam vegetais, frutas e pequenos animais secos ou fritos, roupas, loiças, brinquedos e uma parafernália de objetos que eu não conseguia identificar. Não me queria arriscar a ser uma vez mais interpelado pela polícia, pelo que ficava na carruagem. Em Hue baixei a janela para ver o que cheirava tão mal lá fora e uma dezena de vendedores veio imediatamente na direção da carruagem, tentando impingir-me relógios, revistas e chocolates embalados em plásticos. Acabei por comprar um cacho de bananas. Fiquei surpreendido quando o vendedor, um homem que aparentava ter uns oitenta anos, sacou de um aparelho de transferências bancárias automáticas wireless. Não via um daqueles há mais de dez anos, desde o fim do Starlink e do colapso da internet, mas pelo vistos a rede local funcionava bem.
Enquanto avançámos, observei pela janela exatamente aquilo que imaginara sobre o Sudeste Asiático: campos alagados de arroz, cada vez mais selva e búfalos de água com um fundo montanhoso, de um lado, o antigo Mar da China, agora rebatizado “Mar da Concórdia”, com lindas praias, ilhéus e pequenos deltas de espaço a espaço, da janela oposta. Via-se vários projetos de barreiras de proteção junto ao mar, a maior parte dos quais abandonados. As tempestades castigavam bastante esta zona. Apesar de estarmos na época das monções, não chovera durante toda a viagem. Algumas aldeias do lado do mar estavam aparentemente vazias, parcialmente submersas, enquanto áreas de palmeiras e vegetação caídas estendiam-se numa extensão de centenas de quilómetros, acompanhando a linha. Perguntei a pessoas que encontrei no comboio se tinha sido alguma tempestade ou tufão recente, e responderam-me que aquele cenário não se devia a nada daquele ano, mas sim a uma sucessão de anos com tufões, o mais famoso dos quais o tufão Petrovietnam, quatro anos antes.
- A linha da Reconciliação - era assim que chamavam ao comboio de Norte a Sul do país - esteve dois anos parada para reparar-se o estrago. - disse-me uma jovem no comboio - e depois do Petrovietnam, já se decidiu que a linha terá de ser mudada em vários locais, tem de ir mais para o interior. Como a própria cidade de Ho Chi Minh.
Quando o comboio atravessava pela escarpas e desfiladeiros do litoral, imaginei o pior, em particular quando os carris pareciam estar assentes em quase nada. Era sublime mas também assustador. Por vezes parecia que estávamos a voar sob as nuvens baixas no meio das florestas. Ao contrário do que acontecia na maior parte dos países que eu atravessara, aqui os fios elétricos mantinham-se em grandes extensões, frequentemente acompanhando o comboio, o que indicava que ainda existia um sistema de produção centralizada de eletricidade, possivelmente ainda os arcaicos gás e carvão.
Chegado a Ho Chi Minh, a antiga Saigão, deparei-me com táxis e tuktuks, algo que me deixou nostálgico. Precisava tomar uma decisão de como ir até Jakarta. As opções desagradavam-me igualmente: voar ou navegar. A travessia terrestre até Singapura estava cortada pela guerra entre Tailândia e Myanmar, mas eu teria sempre que apanhar um barco até ao meu destino final. Na estação, dirigi-me ao único apoio que encontrei: uma agência de viagens. Uma senhora muito bem vestida, com o cabelo preto num carrapito no topo da cabeça e um apertado vestido vermelho de cetim, fumando o tempo todo, explicou-me que esta era uma boa altura para viajar de qualquer uma das maneiras. Mas - acrescentou - por vezes havia ventos fortes no Mar de Java, afetando os aviões. Esta informação, a memória recente no final da viagem no Pacífico e uma apreciação - não posso dizer que não sem preconceito - sobre a qualidade da manutenção dos aviões vietnamitas, acabaram por levar-me a decidir pelo mar. Longe estava o meu justificado trauma da viagem no Hopp Winnen no Atlântico. A memória e o medo são coisas esquisitas e difíceis de desafiar.
A viagem até Jakarta num navio de carga demoraria também quatro dias. No entanto, desde a mudança da capital para Nusantara, cada vez menos navios partiam rumo à ilha de Java, devastada por cheias, tufões e até terramotos. Isso significou ficar ainda dois dias em Ho Chi Minh à espera de navio. Já estava em contacto com o Dewi, que me esperava. Felizmente tinha o que ler.
Relato de tornado em Sumedang, Java
Foi nesta casa, nestas ruas, que eu criei as minhas crianças. Nunca tive nostalgia de objetos ou casas, mas vê-la assim arrasada arrasou comigo. Para onde vou viver? Foi a rua toda, não foi só a minha casa. Foi a rua e quase o bairro todo. Não sei como sobrevivi, na verdade. Lembro-me das buzinas, dos veículos e motas a acelerar, das pessoas atropeladas e do vento a levantar. Lembro-me de não saber onde ir. Aqui não há tornados, não há abrigos subterrâneos, não sabia para onde fugir. Quando vi o tornado, nem acreditei que fosse possível algo deste tamanho em Java. Ocupava tudo o que os meus olhos podiam ver, não sei se não teria 100 ou 1000 metros na base. Objetos voavam em todas as direções, como que fugindo daquela massa escura que descia do céu até à terra. Agarrei nas crianças e corremos para casa. Escondemo-nos no meu quarto, em baixo da cama, enquanto as janelas se iam partindo porque eu não tinha tido conseguido por nada a protegê-las. Tinha medo de olhar, medo de que as coisas que estavam a ser disparadas me entrassem nos olhos. Era nisso que pensava, em vidros voadores, porque os sentia bater nas minhas pernas nuas. Também os ouvia a voar por todo o lado, quebrando-se quando batiam nas paredes. Senti um grande abanão, puxei as crianças para mim e apertei-as. O telhado estava a cair sobre nós. Senti-me esmagada e, imediatamente de seguida, atirada pelos ares. A casa toda foi atirada pelos ares. De repente já não tinha uma cama por cima. Senti que a Diep já não estava comigo. Caí algures no meio do entulho e da lama, com o bebé no meu peito, a berrar. Sentia a minha perna esmagada e não conseguia sentir o pé. Coisas continuaram a cair-nos em cima. Ouvia Diep a chamar por mim, mas não me conseguia mexer, só gritar pelo seu nome e pedir ajuda. Não sei quantas horas foram, mas os gritos dela foram ficando mais fracos até desaparecerem. Outras vozes choravam e gritavam nos escombros. Um coro de choros e fracos gritos durou toda a noite. Ouvia pessoas caminhar, mas ninguém me veio acudir. Eu adormecia e acordava, chamava por Diep, chorava. Tinha medo de esmagar o bebé. Não me lembro de quantas horas foram, só de manhã é que ouvi os helicópteros. Quando os militares e os bombeiros finalmente chegaram, contaram-me que com todos os destroços não tinha sido possível viaturas nem camiões aproximarem-se pela estrada ou pelo rio. Eles não conseguiam chegar a nós. E eu não conseguia chegar à minha filha.
Acordo todas as noites a lembrar-me de ser atirada pelo ar e de largar a mão da Diep. Oiço a voz dela a gritar por mim todas as manhãs quando acordo. A dormir neste ginásio há seis meses, não aguento mais os gritos durante a noite, o nosso trauma coletivo que não está a ser ultrapassado, por mais médicos que aqui venham ou conversas de grupo que tenhamos. Assim que eu oiço chuva no telhado entro em pânico.
De: liavgoms@voo.com
Para: alexaguas@voo.com
Data: 30 de nov. de 2042, 00:20
Assunto: Relatos Mei Ásia
Olá, Alex
Tal como tínhamos falado, envio-te um resumo do que falei com a Mei e a sua família e amigos.
A Mei é de Can Tho, no Vietname, mas também há aqui no Sudoeste Alentejano pessoas das Filipinas e da Malásia a quem ela me apresentou. Mei contou-me acerca das caravanas do futuro que no início da década passada aconteceram no Sudeste Asiático. Só da região de onde ela era, o delta do Rio Mekong, mais de dez milhões de pessoas tiveram de ser deslocadas em três anos. A Mei e a sua família vieram até à Europa, mas cidades inteiras foram distribuídas. A maior parte dos refugiados ficou no Vietname, levados para Norte. Ela contou-me das enormes dificuldades sentidas por quem foi para países vizinhos como Myanmar, Laos, Tailândia e até para a China. Os recém-chegados foram em muitos casos tratados abaixo de cão, com o nacionalismo selvagem em ascensão nessa altura. Ela chorou enquanto me contava como tantos acabaram por morrer em campos de refugiados depois de anos ali presos, mas também me como tantos se rebelaram e foram reprimidos. Muitas das guerras que existem hoje na região ainda têm que ver com estas grandes migrações. Apesar dos governos apoiarem a rota do futuro, as tensões múltiplas, tanto antigas como novas, criaram demasiadas contradições. Do ocidente, milhões de pessoas do Bangladesh fugiram em todas as direções, incluindo para o recém-independente Tibete e para Myanmar. A Mei está convencida de que a China simplesmente permitiu que o Tibete e Xinjiang se tornassem independentes para serem uma zona tampão de deserto, para evitar a entrada de refugiados por ali. Deu para perceber que ela não gosta da China. Outras pessoas, em particular os filipinos, acharam que a China se portou bastante bem ao desistir das suas reivindicações no Mar da China, mas que o fim do que antes era “a ameaça chinesa” tinha criado novas tensões entre os países mais pequenos. A China tinha abdicado de explorar as águas, mas as Filipinas e o Vietname não. Nas Filipinas, essa tensão resultou na independência de Mindanao, liderada pelos dutertistas, que recusavam abandonar os mares. A secessão sangrenta produziu mais milhões de refugiados. A Indonésia, muito destruída por uma década de tufões e tempestades tropicais incessantes viu, com o surgimento da podridão da palma, a destruição de mais de 80% das plantações de palmeiras. A economia caiu e a pobreza explodiu. Depois, a produção de arroz da região despencou-se a pique por causa de uma nova variedade de um fungo chamado magnaporthe. Segundo me contaram, os governos locais acusaram a multinacional Baygenta - e portanto, a China - de ser a produtora deste organismo genomicamente modificado. Segundo me explicaram, o objetivo era usar o fungo transformado em laboratório para travar o original, mas acabou por sofrer mutações na natureza, criando um monstro quase imparável. E assim começou mais um período de fome e migrações regionais. Segundo me contou Aditya, da Malásia, as coisas entretanto melhoraram e ele considera a possibilidade de regressar a Kota Bharu, a sua cidade. Desde que os ecomunistas tomaram o poder em Kuala Lumpur, Manila e Jakarta, a situação está melhor,, disseram-me. O problema na região agora é Myanmar, que depois da guerra contra o Laos, começou uma guerra contra a Tailândia, enquanto se vai desagregando. Por outro lado, também gostam de Portugal e dos ecomunistas de cá. Penso que a maioria não quer voltar.
Como estás tu? O António tem saudades tuas. E eu também.
Beijo-te,
Lia
A minha viagem de barco até Jakarta foi uma agradável surpresa, sempre com mar tranquilo. Nem a ameaça de piratas me afligiu. O imediato do navio explicou-me que aqueles mares eram agora controlados pela Marinha Asiática, resultado da fusão das marinhas da China, Coreia, Japão, Indonésia, Filipinas, Singapura e Taiwan. Durante a viagem assisti a vários filmes que eles passavam na pequena sala de cinema. A tripulação de sete, sempre atarefada, não me ligava quase nada e, que me lembre, ninguém iniciou qualquer conversa comigo. Senti-me um pouco isolado, mas foi pouco tempo. No fim do mês, desembarquei no porto de Jakarta, a "cidade submersa”.
Enquanto nos aproximávamos, havia algo de peculiar na imagem. Alguns barcos estavam encalhados, havia muitos detritos na água, mas centenas de pequenos pesqueiros circulavam em todas as direções. Quando pisei na doca, um homem pequeno, de bigode fino e aparado, cabelo curto e muito preto, uma camisa branca às flores e uns sapatos brilhantes aproximou-se de mim e abraçou-me entusiasticamente:
- Alex, que bom que finalmente chegaste!
- Olá, Dewi! Como estás?
- És muito parecido com a Marta. Muito.
- Já me disseram. Prazer em conhecer-te. Não sabia que vocês se conheciam.
- Como não? E também conhecia o teu pai.
- A sério? Onde se conheceram? - Ele entretanto pegou nas minhas coisas e começou a caminhar na direção de uma pequena viatura com três rodas.
- Conheci-os em alturas diferentes. O teu pai no Novo Mundo, em Roma, há uns 20 anos, e a tua mãe mais tarde, em reuniões da Rota do Futuro. Ambos eram grandes camaradas, e ela era uma inspiração para toda a gente que fazia o trabalho.
Mandou-me entrar na pequena cápsula azul onde cabíamos apenas os dois, com as malas presas num receptáculo na parte de trás. O motor do veículo elétrico, silencioso, arrancou.
- Alex, sei que é a primeira vez que vens à Indonésia, a Jakarta, por isso se não estiveres muito cansado vou levar-te a dar um passeio pela cidade.
- Óptimo. - a cápsula era um pouco apertada para as minhas pernas, mas aguentava. Dentro da viatura estava uma temperatura agradável. - Que carro é este?
- É uma coisa que temos cá em Java, uma pequena fábrica produz uns destes a partir das carcaças de automóveis. Chamam-lhes Cerawat. Recebi um como condecoração do governo. Apesar do nome significar foguete, anda devagarinho, não te preocupes. Mas divirto-me a dar umas voltas.
Passeámos pelas ruas de Jakarta no “foguete”. Um pouco por todo lado havia pequenas pontes, que Dewi subia, cruzando-se com ciclistas e pessoas a pé.
- As pontes são por causa da água?
- Sim. - respondeu-me. - apesar de agora, como podes ver, não haver água em várias ruas. Há cheias três a quatro vezes por ano, o que faz com que as pontes muitas vezes sejam a única maneira de circular.
Atravessámos o que me pareceram ser vários cursos de água e perguntei a Dewi o que eram.
- Jakarta está no delta de vários rios, mas nem toda a água que estamos a passar são rios, pelo menos não os cursos originais. Há várias antigas ruas mais baixas que agora têm sempre água corrente e que basicamente se tornaram pequenos cursos de água. Mas ali não. - Fez sinal para a frente. - Este é o rio Ciliwung. - Uma massa castanha escura movia-se lentamente, parecia ser mais lama do que água. - Já subiu mais de quatro metros em cheias nos últimos anos. - Olhei para as margens e percebi que isso submergiria centenas de casas, e isso era apenas o que eu conseguia ver.
- E para onde foram as pessoas?
- A maior parte destas casas já estão abandonadas. Havia muitas mais, mas só sobram as de tijolo e pedra. Já viveram mais de dez milhões de pessoas em Jakarta. Esta zona estava coberta com mais duas ou três camadas de casas de madeira e bambu.
- Quantas pessoas vivem cá agora?
- Agora são dois milhões.
- Para onde foram as restantes?
- A maioria foi para Sumatra e para o Bornéu, para a nova capital e para outras cidades. Outras pessoas abandonaram o país. Eu participei em duas caravanas do futuro levando pessoas até à Holanda e à Califórnia. Outros não tiveram tanta sorte e migraram para a Arábia Saudita, mas não fomos nós que os levámos para lá. Olha, ali está o Batavia. - No meio da cidade, saindo do meio do sujo curso de água, estava um enorme cargueiro enferrujado e encalhado.
- Como é possível? - parecia saído de um filme, erguendo-se 20 metros acima de tudo à sua volta.
- Foi possível quando as cheias em terra se combinaram com um tufão. Há quem diga que foi a ORCA, e não digo que não fosse possível, mas parecia-me habilidade a mais conseguirem subir até aqui e estarem preparados para um nível tão alto de água. - Estávamos a mais de um quilómetro do porto.
- Mas isto tem piorado recentemente?
- Essa é uma história com centenas de anos, Alex. Estamos numa zona de cheias, treze rios desembocam na baía. Claro que há quinhentos anos o litoral estava coberto de mangais, que protegiam as pessoas do pior das cheias. E também vivia aqui muito menos gente. Quando os holandeses colonizaram Java, e rebatizaram esta cidade de Batavia, acharam que era uma boa ideia copiar o que tinham feito no seu país. Encheram a cidade de canais para controlar o nível da água, mas acabaram por cortar o fluxo de sedimentos até à costa, favorecendo a descida da altura da cidade. Isto foi um processo lento, que demorou séculos. Mas mesmo depois da independência, nós imitámos exatamente o modelo holandês: controlar os rios, construir diques, dragar e transportar areais, erguer muros.
- E porque deixou de funcionar?
- Acho que a melhor resposta é que vivia aqui um número pequeno de pessoas. Antes da independência era um milhão, ou um pouco menos. Em 2015 chegámos aos 10 milhões e ainda continuou a subir durante mais uma década. A cidade estava literalmente a afundar-se sob o peso de edifícios, indústria, estradas.
- A subsidência.
- Sim.
- Cidades por todo o mundo estão a afundar-se. Veneza, Nova Iorque.
- A ideia de abandonar a cidade começou surpreendentemente por vir das elites há mais de vinte anos. Jakarta afundava-se 20, 30 centímetros anuais. Depois de dez anos a construírem um muro para travar a água vinda do mar, que era sempre ultrapassado, perceberam que havia uma enorme hipótese de negócio de transferir a cidade, a cidade inteira, para o Bornéu. Escolheram um sítio chamado Nusantara. Os especuladores imobiliários apressaram-se a comprar terrenos por toda a região. Era como ter uma bola de cristal para ver o futuro. Ainda assim, continuavam os projetos de construir mais muros - 120 quilómetros de muros - para proteger a cidade, apesar de terem falhado sempre em conter a água.
- Mas as pessoas de Jakarta não seriam colocadas na nova capital?
- Algumas sim, outras teriam de comprar casas, terrenos. Quem vivia aqui percebeu que iria sofrer dramaticamente, não ia ser uma transferência, mas um despejo. Mas enquanto milhões continuavam a viver cá, o oportunismo não parava. Um consórcio de milionários que tinha ajudado a pagar o inútil muro de proteção, recebeu como contrapartida a gestão das águas de beber dentro da cidade.
- A água era gerida por milionários?
- Sim, a receita do sucesso! A extração de água subterrânea era outra das principais razões para a cidade afundar-se. No fim, a muralha não travou as cheias, o preço da água disparou e as pessoas acabaram a fazer mais furos ilegais, aumentando a velocidade da subsidência em vez de reduzi-la. Mesmo a água comercializada não era potável, então mais valia tentar furar para obtê-la mais fundo. Então, aumentava-se a pressão nos sistemas de transporte de água vinda de longe, mais água estragada e perdida, em tubos velhos, podres e rotos.
Já tínhamos viajado uns vinte minutos quando passámos pelo que claramente tinha sido uma zona financeira central, submersa sob alguns metros de água, da qual se erguiam edifícios decrépitos, alguns dos quais bastante altos.
- E como é que as pessoas ficavam, mesmo assim?
- Porque Jakarta era dos sítios com mais emprego, era um círculo vicioso terrível. Achavam que com mais dinheiro conseguiam comprar água de qualidade, mas havia doenças e a cidade estava cada vez mais poluída, com um cheiro pútrido. As cheias cada vez mais frequentes começaram a fazer a população da cidade parar de aumentar e finalmente começar descer. No entanto, chegaram os ventos políticos de outros países.
- O que aconteceu?
- Dois fortes movimentos políticos em direções contrárias: em Aceh e Maluku o separatismo islamista conservador levou à secessão, enquanto em Java e no Bornéu a religião abraçou vários dos princípios ecomunistas. Felizmente nunca começou uma guerra civil, mas não é de descartar que possa acontecer.
- E porque ficaste aqui, Dewi?
- Para ajudar as pessoas. Vivem mais de 90 milhões nesta ilha, e mais de um milhão aqui em Jakarta. Já visitei Nusantara várias vezes, especialmente durante a construção, e parece que não estão a ser repetidos os erros históricos e de planeamento daqui, agora que os ecomunistas estão a governar lá. É uma cidade esponja, sem alcatrões e outras loucuras, integrada com floresta e mangal. Acho que vai dar certo. Espero que dê certo.
- Como assim?
- Desde que se abandonaram os projetos megalómanos, com a redução da população, da extração de água e com a reflorestação dos mangais, as coisas estão melhores. Jakarta era a metáfora perfeita do capitalismo: Enquanto não o abandonámos, não parámos de afundar. Agora que parámos de fazer coisas estúpidas, não estamos mais a afundar-nos.
Subíamos uma colina há alguns minutos, chegando à zona sul da cidade, mais alta. A maior parte da população agora concentrava-se ali, menos exposta às águas. Parámos o “foguete” à porta de uma casa.
- Chegámos.
Dewi deixou-me descansar até finalmente fazermos a nossa entrevista oficial. Ele tinha falado com Elizandra e com Sukumar. Tinha sido jornalista há muito anos, até se ter tornado um membro do Mundo Novo e um dos primeiros ecomunistas na Indonésia. No entanto, sempre preferiu ficar longe da liderança, sendo principalmente um organizador na base. Hoje continuava a fazer caravanas do futuro em pequena escala. Descobri que também conhecia Josephine e contou-me mais histórias acerca da Grande Transformação naquela região do mundo. As coisas estavam a melhorar, mas havia grande tensão para mudar mais gente para fora das ilhas de Sumatra e Java. Os ecomunistas na Austrália já tinham recebido 15 milhões de pessoas, mas a China vinha reduzindo as entradas há vários anos. Então, a situação agravava-se sempre que era necessário deslocar pessoas para o continente. A península indochinesa, em particular Myanmar, Tailândia e Laos, estava atualmente no centro desses conflitos, pressionada pelo Bangladesh de um lado e pelos ilhéus e mekongs do outro. Dewi acreditava que era possível resolver o conflito, mas que era necessário muito mais apoio chinês.
- Esta questão não é menor, Alex. Há outros problemas no mundo, mas aqui há milhões de pessoas a deslocar-se todos os anos, em busca de salvação. Não sei se a Josephine te explicou, mas vários países estão a sabotar a Rota do Futuro. Incluindo ecomunistas.
- Como assim?
- É preciso um enorme esforço para continuar a movimentar as pessoas, Alex. Há zonas em que ainda vivem centenas de milhões mas que não vão aguentar muito mais tempo. Para o ecomunismo funcionar, precisamos continuar a deslocar pessoas e distribuí-las de forma muito mais equitativa por todo o globo.
- O que está a impedir que isso aconteça?
- As máfias têm-se organizado cada vez mais para bloquear as caravanas. Por vezes com a complacência e até com a cumplicidade do próprio movimento. Apesar dos nossos esforços, não estamos a conseguir resolver esta situação. Ainda há muito medo por parte das pessoas de se deslocarem, mesmo apesar de aparentemente a Muralha já não existir mais. A tua mãe sabia muito bem disto. Ela era das principais dirigentes empenhada em garantir que a Rota do Futuro continuava. Por isso é que ela foi parada. - Intuí porque tinha sido levado até ali.
- O que tens para me dizer, Dewi? - Ele baixou a cabeça, inspirou uma vez e quando voltou a expirar olhou-me nos olhos.
- A questão da migração e da rota criou uma divisão dentro do movimento. No início toda a gente era a favor, mas há anos que se criou uma resistência política organizada contra a Rota do Futuro, disfarçada de divergência política sobre alianças.
- Eu já tinha percebido isso. Mas o que é que isso significa?
- Significa que a Marta não foi só morta pela máfia. Ela foi traída por pessoas do movimento.
Texto de João Camargo