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42: Na sombra da revolução

A crónica ficcional 42 trata de mudanças climáticas, avanços tecnológicos, e transformações sociais, políticas e científicas, centrando-se em Lisboa, na Europa e no mundo no ano de 2042.
No 18.º episódio, Alex visita Bogotá e Manaus, onde reflete sobre a influência do movimento ecomunista e a luta contra o crime organizado, enquanto descobre mais sobre o impacto da sua mãe nas revoluções latino-americanas.

Texto de Redação

©Nuno Saraiva

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Bogotá era diferente de todos os sítios que eu já tinha visto. Tinha passado muito rapidamente pela cidade colombiana de Medellín antes de ali chegar. Aí, tinha chegado e entrevistado ecomunistas mesmo na estação de comboio. Tinha ficado impressionado pelas encostas negras das montanhas que rodeavam Medellín, que tinha perdido muitos habitantes ao longo das últimas décadas. O contrário tinha-se passado com Bogotá, que era agora a segunda maior cidade da América, com 11 milhões de habitantes. A viagem de Medellín a Bogotá atravessava uma zona montanhosa muito florestada, tão húmida que mesmo as janelas do comboio tinham ficado cheias de orvalho. Demorámos vários horas da escuridão da noite até a paisagem mudar. Pela manhã abriu-se uma planície e surgiu a cidade, vermelha, branca e brilhante, no fundo da qual se levantavam grande montanhas verdes cobertas de nuvens muito brancas.

Toda a cidade oscilava entre o vermelho dos prédios, o verde das plantas, o branco dos telhados, e a reflexão do sol a partir dos painéis solares nos telhados. Enquanto nos aproximávamos, deu para perceber que na verdade, a maior parte dos telhados estava coberta de vegetais de todo o tipo. Mais tarde explicaram-me as enormes vantagens de Bogotá para resistir ao novo clima. Situada entre cordilheiras andinas, a cidade estava rodeada por zonas húmidas e de retenção, até de “produção” de água - os famosos “páramos” de Sumapaz, Chingaza, Guacheneque e Cruz Verde. Graças a estes factores, o clima era muito estável e, mesmo nos piores momentos do ano 1.8 e em anos de El Niño, a situação nunca chegou a condições letais para a população. Os maiores riscos da cidade eram as cheias e as ilhas de calor, que foram drasticamente reduzidas em poucos anos. A melhoria das casas e seu isolamento térmico foi essencial para quase eliminar o risco, tornando as casas de Bogotá seguras e confortáveis. Perguntei-se se seria por isso que as pessoas eram tão simpáticas. E bonitas. Era um sítio verdadeiramente diferente de todos aqueles em que eu já tinha vivido ao longo da minha viagem.

À chegada à magnífica estação de comboio de La Sabana, fui recebido por uma mulher com cerca de cinquenta anos, de pele escura e olhar profundo, com um elegante vestido branco, segurando um pad eletrónico na mão. Tinha um ar familiar, mas eu nunca fui muito bom com caras. Eu tinha reparado nela à distância, e ela olhava-me enquanto me aproximava, sorrindo. Quando estava próximo o suficiente para conseguir sentir o cheiro suave do seu perfume e reparar como era baixa, ela apresentou-se:

- Olá, Alex. O meu nome é Elizandra Marquez. - Tive de baixar-me ligeiramente para cumprimentá-la, numa vénia involuntária que coincidia com a minha surpresa.
- Liz Marquéz?
- Sim. - sorriu. Era claro quem ela era: Liz Marquéz, a presidente do Tratado Mundial do Clima, talvez a maior celebridade políticas da nossa era.
- É um enorme prazer. Não sabia que viria alguém tão importante receber-me. - comecei a pentear o meu cabelo desgrenhado. - Estou todo desarranjado, já não sei há quantas semanas ando em comboios e barcos…
- Não se preocupe. Este é o Andres Zerega, do partido ecomunista colombiano. - Um homem alto, muito moreno, de traços finos, olhos pretos, calças militares e camisa de branca estendeu-me a mão.
- Buenos dias, compañero! - disse-me, com o cantado sotaque colombiano. Eu tinha começado a abandonar o uso do meu Babel para o espanhol, e só agora começava a apreciar as diferenças entre os sotaques dos diferentes países. Liz segurou-me pela mão.
- Alex, temos muito gosto em receber-te e ajudar-te com as tuas pesquisas. Conheci ambos os teus pais, particularmente a tua mãe, imprescindível na Grande Mudança aqui na América. Espero que possas ficar connosco alguns dias antes de continuares para Caracas.
- Posso, claro! - respondi, sem pensar. Eu ia ficar, mesmo que isso interferisse com o calendário apertado que Gianni me tinha dado. Não só podia saber mais sobre o que se tinha passado com a minha mãe, mas podia mesmo falar com a Liz Márquez!

©Nuno Saraiva

Embarcámos no novíssimo metro de Bogotá, uma estrutura suspensa que atravessava a cidade por cima dos extensos jardins e hortas plantados onde antes havia estradas de oito faixas cheias de carros, camiões e motas. Dentro do metro, decorria uma exposição sobre Bogotá antes da Grande Transformação, que permitia ver pelas janelas digitais a cidade há trinta anos e compará-la com aquele momento. E que diferença! A cidade que no passado já parecia bonita agora era uma espécie de quadro de solarpunk, com integração perfeita de tecnologia e natureza. Liz apontou-me o famoso bairro da Candelaria, o parque dos Periodistas, e disse a Andres que tinha de me levar lá a passear. Saímos na estação de metro do Parque Central, onde estava a Sede do Tratado Mundial do Clima, uma enorme torre de tijolo vermelho, antiga sede de uma empresa de seguros, um dos últimos arranha-céus da cidade. Eram visíveis ao lado as ruínas da antiga sede, destruída num atentado da Muralha. Liz explicou-me que tinha preservado o edifício assim, com os estragos visíveis em memória do massacre.

- Queremos que as pessoas continuam a lembrar-se do que é a Muralha, que não há nada de bom que eles tenham feito em nenhum momento. A Muralha é uma organização medieval, mistura tanto a violência religiosa dos Yunques como a violência criminosa do Clã do Golfo.
- Quem são Yunques?
- Na América Latina, a Muralha construiu-se pela uma coligação de criminosos reaccionários: Cruzados de Cristo, Igreja Universal, Yunques, Autodefensas Unidas, Esquadrões Bukele, Tren de Aragua, Clã do Golfo, os cartéis de Sinaloa e Cali… E muitos mais. Importaram da Europa o programa político conservador contra mulheres e contra ecomunistas, e aplicaram este programa com a violência extrema das máfias. É uma aliança natural, na verdade. Com o desmantelamento do capitalismo, o crime organizado começou a tentar ocupar espaços vazios, criar novos negócios e novos territórios para explorar as pessoas. Em muitos locais, ainda antes das revoluções começarem a acontecer, eles já eram parte efetiva do sistema capitalista e até do aparelho de Estado. - Liz abriu a porta da sede do tratado - Vamos entrar? - Acenei que sim e fomos os três até a um elevador que nos levou ao último andar, onde saímos para um enorme terraço.
- Que achas desta vista?
- Incrível, Liz. - De um lado viam-se as montanhas verde escuras com a sua cobertura branca de nuvens, do outro lado, a cidade brilhante. Mesmo ao lado do prédio onde estávamos, erguia-se uma espécie de coliseu romano. - O que é?
- É a antiga praça de toiros. Acreditas que até há poucos anos ainda se faziam touradas aqui? Agora é um magnífico anfiteatro onde se fazem grandes peças de teatro e concertos internacionais por holograma. - A cidade durava até perder de vista.
- Do lado das montanhas fez-se uma grande intervenção - disse Andres - retiraram-se as espécies florestais mais propensas ao fogo, e foram plantadas várias faixas de proteção e contenção de terras. Um risco importante das cordilheiras que rodeiam Bogotá eram os deslizamentos de terras durante as grandes chuvadas. Desde a intervenção não houve qualquer desastre.

No escritório de Liz havia paredes inteiras cobertas com mapas do mundo, assinalados com pionaises e autocolantes. Explicou-me que apesar de toda a digitalização de informação, devido às falhas e sabotagem, cada vez mais confiava em papel para não perder informação essencial - sobre tendências do clima, sobre melhorias de infraestruturas, sobre produção alimentar. Andres fez-me a melhor proposta que eu poderia desejar: ofereceu-se para tratar dos meus inquéritos enquanto eu ficava com a presidente. Aceitei.

Passeámos pela parte ocidental da cidade, pelos bairros reconstruídos depois das cheias na década passada - Suba, Kennedy e Fontibón - e fomos até à sede do partido ecomunista, no bairro Ciudad Bolívar. Esta zona popular de Bogotá, que no passado tinha sido um dos centros de crime e miséria na cidade, mantida sob o controlo de gangues, tinha visto uma mudança profunda depois do golpe falhado em ’29. Uma aliança de forças do Exército Verde e de guerrilheiros do GAOR expulsou a estrutura criminosa do território e em tempo recorde começou a estabilização das encostas e reconstrução do bairro. A sede ecomunista foi instalada aí para impedir o regresso do crime organizado. Durante anos, as gangues tentaram voltar e sabotaram a construção do bairro, pegaram fogo às zonas arborizadas, cortaram a água e as ligações elétricas, mas o bairro persistiu, explicou-me Liz. Os enormes cabos que víamos por cima de nós pareciam-se estranhos, até ser surpreendido com um ruidoso teleférico passando por cima das casas coloridas. Uma vez na sede, fui levado para um quarto simples para descansar. Liz despediu-se.

Depois de jantar, bateram-me à porta. Era Andres, trazia os inquéritos já preenchidos. Que alívio, não ter que me preocupar mais com aquilo! Perguntou-me se podia entrar. Eu disse-lhe que sim, e passámos a noite juntos.

Na manhã seguinte li as mensagens da Lia. Pensava que me sentiria mal pelo que se tinha passado essa noite, mas não. Nem sentia ciúmes de ela ter ido para casa da sua antiga namorada, a Mei. Ela tinha razão. Não éramos crianças nem donos um do outro. Respondi-lhe, pedi-lhe desculpa e falámos ainda essa manhã. Não lhe contar sobre o Andres porque ela podia achar que tinha sido uma vingança. Além disso, eu não estava apaixonado por ele e iria embora de Bogotá em breve. Precisava parar de pensar naquilo que tinha acontecido entre ela e o Ettore, ou o que tinha acontecido entre mim e o Andres, como se fossem bichos de sete cabeças.

Esse dia passeei novamente pelos bairros próximos com Andres. Ele tinha 27 anos e era membro do partido desde os 14. Contou-me como se tinha tornado ecomunista aquando da tentativa de golpe de Estado. Muitos evangélicos e católicos progressistas tinham entrado nas fileiras dos ecomunistas e do Mundo Novo durante a Grande Fome. Os pais de Andres, evangélicos, só se decidiram quando ouviram dos púlpitos da Igreja Universal do Reino de Deus o apelo a um golpe de estado. Juntaram a família toda - Andres e os seus quatro irmãos e irmãs - e inscreveram-se no partido. Enquanto os pais faziam principalmente trabalho administrativo para o movimento, Andres foi para a segurança, tendo desde novo participado em combates no contra-golpe que restaurara a democracia na Colômbia. Passeando pela cidade, explicou-me como Bogotá conseguia suster tanta gente: tinha uma enorme quantidade de água, agora gerida exemplarmente, quase 70% de toda a comida que a cidade necessitava era produzida dentro localmente. Uma parte da comida era produzida em hidroponia nos penúltimos andares da cidade, debaixo dos telhados verdes que cobriam a cidade quase toda. Havia um novíssimo sistema de tratamento e reciclagem de águas residuais e a energia era toda produzida na cidade, à base de sol e vento. Algum tempo depois, Andres deixou-me à porta de uma casa modesta, pintada de amarelo. Despediu-se quando um senhor idoso abriu a porta. O velhote, com uma longa barba e vestido com uma roupa cinzenta até aos pés, acompanhou-me até uma escadas. No cimo destas, Elizandra estava sentada numa mesa à janela, lendo algo no seu pad. A mesa estava posta para almoço.

- Olá, Alex. Espero que tenhas tido um bom passeio. O Andres é excelente companhia. Ainda bem que ele estava disponível para ajudar-te. - disse-me ela, e eu não percebi se havia ali um segundo sentido.
- Sim, ele tem sido óptimo. Já tenho todos os relatórios de Bogotá prontos. É uma tarefa muito repetitiva. Acho, sinceramente, que a informação que sairá daqueles relatórios é limitada para fazer grandes avaliações.
- Há outras avaliações a serem feitas, não te preocupes.
- Tu és do movimento?
- Oficialmente, não. Mas conheço muita gente da liderança. Tenho de conhecer, não é? A minha posição implica que eu tenho de perceber muito do que se passa no mundo hoje e o movimento ecomunista, em muitos países, é a principal força a fazer cumprir o Tratado Mundial do Clima.
- Mas o tratado é apoiado por outras organizações.
- Sim, claro. E idealmente não precisaria de ser apoiado por nenhuma organização. Mas sabes que gerimos muitas coisas. E há muitas organizações com as quais temos de lidar diariamente. As novas nações, as cidades livres, as rotas do futuro, com agendas próprias e tempos diferentes, tudo isso cria enorme confusão não só a nível da organização, a quem temos de apoiar e pedir contas, e também perceber onde há falhas. E sabes que falhar com vários dos termos do Tratado significa milhões de mortes, significa comunidades inteiras exterminadas, territórios em colapso. Nós precisamos de força porque a nossa tarefa não está acabada. Houve a Grande Mudança, é certo, mas há vários sítios onde ela foi incompleta e também muitos locais onde as coisas estão a piorar. Estamos particularmente preocupados com a previsão de mais um El Niño no próximo ano. E há sempre novidades a acontecerem. Precisamos de começar a arrefecer o planeta.
- E quais são os planos para baixar a temperatura?
- Não há nenhuma fórmula mágica, as tecnologias que podem funcionar consomem uma quantidade absurda de energia e recursos, que na maior parte dos casos não temos.
- Estás a falar de geoengenharia?
- No passado já houve propostas no Tratado para se fazer geoengenharia. Foram derrotadas de forma clara. Isso não quer dizer que cada vez que a temperatura começa a aumentar, não voltem novamente com essas propostas. Já houve tentativas em grande escala fora do Tratado. Os governos ingénuos do chamado “Setembro Vermelho” na Europa tentaram no fim dos anos 20. O que conseguiram foi quebrar o que sobrava das colheitas no Vale do Pó, na Andaluzia e da Sicília. Claro que assim que pararam, a temperatura disparou localmente.
- E as experiências no Irão?
- Foram mais graves do que os primeiros. Essa aventura do Irão e da Turquia foi feita completamente à revelia do Tratado, quando nós já tínhamos avisado para todos os perigos. Eles não avisaram ninguém, simplesmente lançaram aerossóis na estratosfera para controlar a entrada de energia solar. Claro que ssso baixou imediatamente a temperatura, mas não ficou localizado, como eles pretendiam. A radiação do sol que chegava ao solo caiu 30%. Esse ano os cereais na Ucrânia e na Rússia basicamente não nasceram. Foi o início de mais uma fome regional. Claro que quando os vários países à volta ameaçaram atacá-los se não parassem, eles pararam e a temperatura global disparou. As ondas de calor nesse ano mataram centenas de milhares de pessoas. Pffff.

De repente, reparei que do outro do lado da rua, várias pessoas escalavam um prédio alto.

- Que é que eles estão a fazer?
- Ah! São escaladores de prédios. É um desporto que se tem popularizado muito por aqui. Não se faz em Portugal.
- Nunca tinha visto ninguém fazer isto. Mas não é perigoso?
- É, claro que é perigoso. Mas tem regras definidas. Não é mais perigoso que escalada em montanhas. Aliás, é menos perigoso que escalada em montanhas, que com o degelo de glaciares nas últimas décadas tem feito do montanhismo um desporto mortal.
- E como se chama este “desporto”?
- Edificismo ou escala urbana? Já ouvi das duas maneiras.

De repente, Liz deixou de olhar para fora, fixando os seus olhos negros nos meus.

- Olha, queria falar sobre a tua mãe.
- Sim, claro. Era óptimo que pudesses contar o que sabes.
- OK. Na verdade, seria bom que me dissesses primeiro o que sabes tu. Eu conhecia-a e ao teu pai de antes do movimento ecomunista existir, mas não estivemos juntas muitas vezes.
- Então, a minha mãe saiu de Portugal logo a seguir ao ano 1.8. Pelo que percebi ela entrou para a Descarbonária e partiu para a Nigéria. Não sei o que ela fez lá, se participou ou não na revolução. Ainda antes da Guerra Civil Americana terminar, ela já tinha abandonado África e chegado aos Estados Unidos. Lá, sei que ela recrutava equipas de descarbonárias. Depois, ela foi para o Exército Verde e fez parte das primeiras rotas do futuro na América Central. Ficou ferida aí e mais tarde veio para a América do Sul. Depois, só sei que foi morta pela Muralha no México, há seis anos.
- Ela não voltou a Portugal Quando foi a última vez que a viste?
- Vi-a uma vez desde que ela entrou para a Descarbonária. Ela esteve em casa três dias depois de sete anos ausente. - Senti a minha voz embargada.
- Oh, pobre Alex. - Elizandra aproximou-se de mim e abraçou-me. E o que podia ter sido só um soluço começou a tornar-se um choro. Tentei afastar-me mas ela apertou-me mais forte. - Deixa sair.

Deixei. Uma torrente de lágrimas e sentimentos saiu de mim naquele momento: tristeza, abandono, raiva, orgulho. Eu queria abraçar a minha mãe que foi morrer longe de mim, que tinha deixado a sua família para ir salvar as outras famílias, para ir salvar o futuro. Oh mãe, foda-se! Porque não me abraçaste assim quando te vi da última vez? Porque é que te afastei e não te ouvi? Fiquei longos minutos ali, nos braços daquela mulher que podia ser a minha mãe. O destino da minha mãe podia ter sido continuar viva, continuar a consolidar o mundo que ajudou a construir, mas tinha morrido enquanto lutava por outros. Que justiça era esta? Porque é que o futuro precisava de tanto sacrifício, porque tinha levado a minha mãe? Quando finalmente comecei a acalmar-me, a Liz afastou-se, limpando-me as lágrimas do rosto.

- Lamento muito. Estás melhor?
- Sim, obrigado. Desculpa. - Sorri, ainda com lágrimas no rosto.
- Não há nada a desculpar. Teremos lutos a fazer até ao dia em que partimos. Tanta gente perdeu família e amigos nas últimas décadas, uns para catástrofes, outros para fomes, outras para travar o monstro que se erguia sobre nós. Espero que saibas que a tua mãe foi imprescindível para o movimento aqui na América do Sul. Mas sabes que ela não era a fila da frente, odiava ser figura pública. Ela era uma mestre para os quadros revolucionários, uma mulher de teoria e de ação, uma grande estratega, e defensora inflexível do fim da monstruosidade capitalista. Treinou muitos dos revolucionários que fizeram a Revolução Brasileira. Além disso, que eu saiba ela também tinha excelentes contactos com as assembleias indígenas. Se ela fosse uma pessoa menos tímida e reservada, seria recordada como uma nova Che Guevara. Mas ela não queria, preferia ficar sempre mais atrás, ajudando as outras a liderar o futuro.
- Então a minha mãe ajudou a fazer a Revolução Brasileira?
- Sim. Ela nessa altura estava no Brasil com o Exército Verde, não te sei dizer exatamente o que ela fez no terreno, porque como te expliquei ela nunca foi de fazer alarido sobre o seu papel. Não sei se ela fazia parte da Lança Climática, mas fazia parte do conselho que preparou a revolução. E ficou por lá depois, ajudando tanto na reforma agrária como no combate aos incendiários e ao PCC.
- O PCC?
- Partido do Comando da Capital, um dos maiores grupos de crime organizado do mundo da altura. Depois das revoluções, e em particular quando a Muralha foi formada, houve uma reorientação do movimento ecomunista para deter os grupos criminosos que tentavam relançar o capitalismo com extrema violência. A tua mãe pertencia à liderança do Exército Verde e mesmo depois de sair do Brasil ficou ligada a essas tarefas a nível internacional.
- Pelo que eu sei, ela teve experiências terríveis com criminosos na América Central.
- Toda a gente teve. Eles eram as pessoas mais violentas e cruéis que a Humanidade tinha na altura. E aplicavam a sua crueldade de forma permanente - tortura, violações, roubos em massa.
- Sabes alguma coisa sobre a morte da minha mãe?
- Sei que ela morreu no massacre dos 400 no México, como tu também sabes. Descobriste alguma coisa sobre isso lá?
- Não consegui descobrir ninguém que me contasse nada de útil.
- Não vais voltar lá, ao México?
- Acho que é impossível agora voltar para trás.
- Eu posso tentar fazer uns contactos e pedir mais informação. Mas entretanto, tu ainda vais ao Brasil, não?
- Vou.
- Deves procurar saber mais sobre ela por lá. De certeza que mais gente te pode contar o que ela fez em concreto. Sei que ela é muito celebrada por vários dirigentes. É mesmo uma referência.

Já na sobremesa, continuámos a falar sobre a situação na América Latina, com as novas nações indígenas, erigidas pela Federação Indígena Internacional e com o ressurgimento frequente, sob várias formas, do crime organizado.

- Notícia -

Clã do Golfo ocupa região de Barranquilla na Colômbia.

A associação criminosa Clã do Golfo continua a desafiar o governo de Bogotá, declarando o distrito de Barranquilla como “zona autónoma”. Depois do grupo criminoso ter sido expulso de vários territórios durante a última década, e depois da extinção da versão latino-americana da Muralha, o recente anúncio de “cidade livre” apanhou de surpresa dirigentes colombianos. Vera Albudazor, membro do conselho bolivariano ecomunista, anunciou que “o Exército Verde está neste momento a desenhar os planos para terminar de vez com a presença desta gangue na região”, enquanto Victor Galán, do Mundo Novo, defende que “deve haver uma negociação com os grupos criminosos, que devem baixar as armas e dissolver-se, havendo para tal contrapartidas que já estão garantidas pela legislação do desencarceramento, aplicada neste momento na maior dos países do continente americano, com excepção do Texas, do Mississippi, do Arkansas e do Tennessee.”. O Clã do Golfo acumulou experiência durante os anos antes da Grande Transformação, operando como verdadeira multinacional de logística, gerindo regiões da Colômbia, regulamentando o tráfico de drogas, de contrabando e de transporte de pessoas, cobrando impostos e gerindo, entre outros, os transportes e energia de várias cidades.

Essa tarde, Liz levou-me a visitar o grande lago de Bogotá e as zonas húmidas próximas da cidade. Os “páramos”, ecossistemas ribeirinhos da América Latina, têm sido protegidos para aumentar a capacidade de retenção de água e também para absorverem carbono, baixando a concentração de carbono na atmosfera e reduzindo a temperatura. Bastou percorrer poucos quilómetros na direção das montanhas e já não se via ou ouvia a cidade, tal era a densidade da floresta pré-amazónica. Liz contou-me que durante anos a temperatura de Bogotá baixou por causa dos incêndios florestais que devastaram a Amazónia, que tapavam o céu de amarelo e faziam chover cinza durante semanas a fio.

Essa noite, já na sede do movimento, esperei que Andres me voltasse a bater à porta, mas não aconteceu. Liguei ao Gianni (sem referir Lia e Ettore - será que ele sabia?) e questionei-o sobre a repetição dos inquéritos cidade após cidade. Ele insistiu que era necessária toda essa documentação extensa. Explicou-me que eu poderia demorar um pouco mais de tempo, mas que nesse caso teria que coordenar com o movimento ecomunista a nível regional as datas das minhas viagens. Perguntou-me finalmente como ia a minha “História da Grande Transformação” como ele lhe chamava. Eu insisti que os inquéritos me tiravam demasiado tempo de pesquisa, energia e leitura. Como solução, propôs-me que eu tentasse fazer fazer um acordo para as secções locais do movimento organizarem os inquéritos por mim. Nesse caso, explicou-me, eu precisava de lhe dar a minha opinião do que se passava no movimento em cada um dos sítios, o que acabaria por dar tanto ou mais trabalho do que os inquéritos. A conversa acabou onde tinha começado - continuaria com os inquéritos, e frustrado com o tempo que eles consumiam.

No dia seguinte, foi Liz a bater-me muito cedo à porta do quarto. Ela ia viajar de emergência para uma grande cheia que tinha começado dois dias antes no Paraguai. Ofereceu-se para me levar até Manaus. Saltaria as duas paragens na Venezuela, mas tentaria rapidamente que Liz me desse alguma informação. Sem consultar Gianni, e apesar da nossa conversa da noite anterior, aceitei. Andres ainda apareceu para se despedir, mas fê-lo de forma muito despachada, com um simples aperto de mão. Confesso que me senti um pouco magoado, mas a viagem continuava. Arrumei as coisas e juntei-me a Liz.

- Como vamos?
- Há um helicóptero elétrico para estas emergências.

©Nuno Saraiva

Sobrevoámos os Andes enquanto Elizandra me informava sobre o movimento ecomunista na Venezuela, bastante fraco num país ainda traumatizado pela independência violenta de Zulia e pela força do Tren de Aragua, um grupo criminoso que tentava uma e outra vez atacar o poder em Caracas. Começámos a atravessar a Amazónia e ficou visível a enorme extensão de área ardida, a perder de vista, com pequenos incêndios ardendo em vários sítios, normalmente rodeados por equipas de bombeiros sapadores. Estávamos fora da época de incêndios, mas ainda assim, a Amazónia ardia. A devastação era enorme, consequência de anos de queimadas e de incêndios provocados, muitas vezes por motivos políticos, mas que impactavam todo o continente. Centenas de quilómetros depois de voarmos por cima daquela devastação de áreas ardidas pontuadas a espaço por zonas milagrosamente ainda verdes, comecei a ver as longas linhas de replantação de jovens árvores, acompanhando o relevo e destacando-se no meio do cinzento e do negro. E depois, finalmente a Amazónia verde apareceu. Como era gigante! Tinha muita água e todo o lado, vários tons de verde entrecortados por castanho claro. E o rio Amazonas, castanho-amarelado, serpenteava entre a massa das árvores. Que maravilha. Parecia nunca mais acabar. Ninguém diria que mais de metade da área da Amazónia tinha desaparecido nos últimos 30 anos.

- Estamos finalmente a conseguir expandir a área da Amazónia. Para ser realista, estamos finalmente a conseguir estancar a expansão da área ardida. Mas todos os anos há incêndios, é muito difícil. - explicou-me Liz. - Décadas atrás, na Europa, lembro-me de ouvir uma conversa idiota sobre florestar tudo para absorver carbono e resolver a crise climática. Mesmo na altura, não compreendia como alguém podia subir a um palco e dizer algo tão estúpido como isso. E mais grave, pouca gente que assistia respondia. Como se o aumento da temperatura não fosse aumentar os incêndios e fazer perder todo o carbono e matéria orgânica absorvido com o crescimento das florestas. Enfim… - suspirou - Agora tentamos expandir florestas onde é possível, mas têm de ser as florestas certas, nos terrenos certos, têm de ter água, e não tornar-se um perigo para outras árvores mais velhas. Como vês, mais um problema.
- Em Portugal houve uma grande reflorestação, e substituição de eucaliptal e outras espécies invasoras, centenas de milhares de hectares.
- Sim, conheço o processo. Devo confessar que era muito céptica da proposta. Mas até agora está a correr bem. Mas lá é uma floresta com muitas pessoas, não é? E tem a vantagem de ser uma zona pequena, um país pequeno.
- Mas antes tinha muito poucas pessoas a viver nas áreas florestais. Foi preciso criar comunidades para ir viver nessa área em transformação. Claro que é verdade, só nesta viagem já atravessámos uma área várias vezes o tamanho de Portugal, não foi?
- Exactamente.
- Liz, a minha mãe não esteve na Colômbia?
- Não sei. Sabes que eu não sou colombiana, mas do Chile. A tua mãe esteve em recuperação em algum país daqui quando houve os golpes de Estado no Brasil e na Colômbia. Os golpes começaram com manifestações contra o aborto e os pecados LGBT, em “defesa da família”, como eles diziam. Eles culpavam as fomes e as cheias no que chamavam de “traições às leis de Deus”. Ainda havia seitas dos niños profetas. Na América Latina, a grande força por trás da Muralha foram os evangélicos, mas como te contei ganharam o apoio das gangues, das milícias e dos liberais, que respondiam a tudo com mais saque, mais ataque à natureza, mais destruição. Na Colômbia, houve grandes mobilizações de esquerda, durante semanas. Duraram tanto tempo e foram tão fortes que o governo saído do golpe não conseguia governar. As forças armadas não lhes obedeciam. Quando uma aliança de camponeses, Exército Verde e até paramilitares se juntaram ao processo, os golpistas fugiram para o Panamá.
- E a minha mãe participou nisto.
- Não conheço o seu papel nesta altura.
- E o que se passou no Brasil?
- No Brasil o golpe durou mais tempo, e desembocou na revolução.
- Onde estavas tu nesta altura, Liz?
- Eu? Ahahah. Eu estava na Argentina a acabar com a exploração de gás em Vaca Muerta. Estava já a fazer as negociações para fechar poços. Eu, como tantas outras pessoas, estava a garantir que o Tratado não andava para trás e que travávamos as emissões nos seus pontos de origem. Algumas vezes isso levava a conflitos. Só anos mais tarde, e muitos poços fechados depois, é que fui eleita presidente do Tratado.
- Cada um com as suas tarefas, não é?

O piloto, um homem loiro, com os seus quarenta anos, pele enrugada e olhos claros, que tinha estado em silêncio toda a viagem avisou: íamos aterrar dentro de minutos. Quando desembarcámos no heliporto estavam duas raparigas jovens à espera.

- São as tuas camaradas, Alex. Nós temos de continuar para o Paraguai.
- Obrigado pela boleia. Volto a ver-te?
- Nunca se sabe, Alex. Penso que sim. Eu gostava. Sabes, eu acho que estás a fazer algo que nós precisamos muito. Já deves ter pensado nisso.
- Jornalismo? Já pensei. Não sei se quando voltar a casa conseguirei simplesmente voltar à minha vida normal.
- Talvez tu sejas a pessoa para organizar algo.
- O quê?
- Trazer o jornalismo de volta.
- OK?...

Liz aproximou-se de mim e abraçou-me. Sussurou-me ao ouvido que estava na hora de eu me juntar ao movimento, que já não estava de fora. Despediu-se com um beijo na bochecha.

Enquanto o helicóptero levantava voo, eu já caminhava com as duas mulheres que me tinham vindo buscar - Sueli e Ana - na direção de um edifício próximo. Era uma antiga fábrica, a sede do movimento em Manaus. Levaram-me a uma sala onde estava um retrato da minha mãe, perto de um grande mural sobre a Revolução Brasileira.

- Bem vindo, Alex Águas. Conhecemos a história da tua mãe, uma das sombras da revolução. - disse Sueli, muito séria.

Texto de João Camargo

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Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online e presencial]

Duração: 15h

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Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

16 Dezembro 2024

Decrescer para evitar o colapso

O crescimento económico tem sido o mantra da economia global. Pensar em desenvolvimento e em prosperidade tem significado produzir mais e, consequentemente, consumir mais. No entanto, académicos e ativistas pugnam por uma mudança de paradigma.

Saber mais

22 Julho 2024

A nuvem cinzenta dos crimes de ódio

Apesar do aumento das denúncias de crimes motivados por ódio, o número de acusações mantém-se baixo. A maioria dos casos são arquivados, mas a avaliação do contexto torna-se difícil face à dispersão de informação. A realidade dos crimes está envolta numa nuvem cinzenta. Nesta série escrutinamos o que está em causa no enquadramento jurídico dos crimes de ódio e quais os contextos que ajudam a explicar o aumento das queixas.

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