É hoje frequente, na esfera pública, sermos confrontados com o nosso “lugar de fala”. Tal interpelação transporta ganhos significativos. Em primeiro lugar, o lugar que ocupamos na linguagem e no discurso não é neutro nem imaculado, funcionando, ao invés, como uma moldura das nossas práticas. Falamos a partir de um ponto que delimita um campo de possíveis do que vemos. Assim, as tentativas de universalização de pontos de vista particulares (uma espécie de metadiscurso legitimador) são confrontadas com a elucidação dos pressupostos de que partem os discursos e das condições sociais da sua produção, nomeadamente no campo da distribuição de poder. Em segundo lugar, o questionamento do lugar de fala pode constituir-se como oportunidade para os subalternos se imiscuírem nas “regras do jogo” que os excluem, denunciando essa violência tão dissimulada quanto eficaz de ocupar um centro e de instituir um monopólio da situação de fala. Tantas vezes, quando a mulher, o/a racializado/a, o/a pobre dizem “eu”, essa identidade parece ser a de outro/a, criando uma dissociação autoflageladora e causadora de enorme sofrimento. Tal sensação de não ser o sujeito da própria frase e de viver alienado num mundo de outros, que se produz e reproduz como o conhecimento dos outros, reclama uma política da diferença que politiza a linguagem pois não há neutralidade possível num mundo desigual. As regras do jogo são o jogo, não um mero epifenómeno sem importância.
Contudo, gostaria de contribuir para a discussão do conceito e da prática que lhe está subjacente, distinguindo entre a visão atomista e liberal e a visão compreensiva e socialista.
A primeira concebe a irredutibilidade das diferenças (e, por conseguinte, dos “lugares de fala”) como um ponto de partida e um ponto de chegada. A sua representação temporal é, pois, de ordem circular e não admite a tensão dialética da negatividade e da superação. Em boa medida assenta numa conceção atomista do indivíduo, tido como tábua rasa onde se inscrevem as propriedades estruturais que o definem e aprisionam (classe, género, etnia, orientação sexual, idade…). O “lugar de fala” é um contentor sem conteúdo ativo, uma jaula perversa que aprisiona quem está de um lado e do outro, quem vê e quem é visto. Os percursos dentro da jaula são vividos como únicos e trabalhados como experiência de emancipação baseados na autenticidade das narrativas purificadas das contaminações do pensamento hegemónico, isto é, do conhecimento dominado pelo outro. Não raras vezes, a emancipação é disseminada como assunto psicanalítico e terapêutico, a crítica social confunde-se com autocrítica, ascese pessoal, autopromoção, trabalho de si, culto do Eu e estilização das singularidades. O estruturalismo encontra, paradoxalmente, o mais puro individualismo. A lógica do mercado imiscui-se, sorrateira, e estabelece os seus parâmetros. Oblitera-se a dissonância, a contradição, a heterogeneidade e a complexidade e reifica-se a ilusão biográfica de um indivíduo-atómo, ensimesmado na glorificação solitária da sua vivência ou dos que o replicam. Um indivíduo pronto a consumir o retrato-robot de si mesmo, em versão unidimensional (sou essencialmente uma mulher, um negro, um excluído; etc.).
A outra visão, que apelidei de compreensiva e socialista, repudia o lugar de fala como lugar do morto. Sendo inegável que somos constituídos por condicionantes de classe, género e etnia, entre outros, não é menos certo que podemos trabalhar pessoal e politicamente tais molduras, acrescentando-lhe sentido. Dentro de certos limites, temos competências reflexivas que permitem analisarmo-nos contextualmente, bem como capacidade, ainda que finita, de transformamos esses contextos ao mesmo tempo que nos modificamos. Compreender implica percorrer o caminho até ao outro, atravessando (transgredindo) as margens que nos oprimem. Por outras palavras, trata-se de resgatar a teia de relações sociais em que estamos inseridos e que nos definem como indivíduos em sociedade e em rede. Articula-se, então, o individual e o coletivo. Cada experiência é um cruzamento com outras experiências (dentro de mim mesmo, que não sou uníssono, e com os outros, na sua pluralidade intrínseca), acumulando patrimónios partilhados de emancipação.
A linguagem não é apenas um lugar de sinalização e de localização da singularidade incomunicante. É uma ferramenta crítica de inter(re)conhecimento, um instrumento de reinvenção permanente, de partilha e de construção de propostas, ainda que provisórias, incompletas e polémicas. Criar espaços democráticos que sejam experiências de troca linguística entre iguais, onde é possível vencer a vergonha cultural e encontrar patamares de entendimento, (processo indissociável de políticas que conciliem a identidade e a classe), eis um desiderato socialista.
A visão liberal do mundo não consegue ir além da denúncia do lugar de fala. A perspetiva compreensiva e socialista acrescenta-lhe o lugar de fala comum.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.