Quarenta e nove poemas de 49 autores, oriundos de nove países, compõem “Volta Para Tua Terra: Uma Antologia Antiracista/ Antifascista de Poetas Estrangeirxs em Portugal”, lançada, este mês, pela Editora Urutau, uma obra, concomitantemente política, onde a literatura é usada como uma ferramenta de disputa de narrativas.
O título declara aquilo que mobilizou os brasileiros Wladimir Vaz, editor da Urutau, e Manuella Bezerra de Melo, escritora e investigadora, a criarem este projecto. “O Wladimir comentou comigo, com informalidade, que estava com muita vontade de fazer uma antologia que tivesse um caráter obviamente literário, mas um caráter político também. Porque se estava sentindo muito incomodado, com o rumo que as coisas estavam tomando, as coisas feias que ele ouvia”, conta Manuella.
O crescimento da extrema-direita em todo mundo, com fortes reflexos também em Portugal, impeliu-os a fazer algo. Mas uma antologia de poetas estrangeiros no país – como outras que existem – não bastava. Era preciso vincar a intenção política por detrás da publicação. Surgiu então a ideia de organizar “uma antologia, cujos poemas tratassem a questão do racismo, a questão da xenofobia, a questão do crescimento dessa lógica fascista no mundo” – um movimento, na opinião da investigadora, legitimado por acontecimentos como a eleição de Donald Trump, em 2016. “As pessoas que estavam escondidas, ou estavam fingindo que não estavam incomodadas com a diversidade, ou com todas essas coisas que representam uma sociedade minimamente democrática, igualitária, saudável, elas ganham a dignidade, através daquela voz, daquele homem tão poderoso, que fica à frente de um país tão poderoso como os Estados Unidos e acho que isso reverbera. Tem os reflexos no mundo. Então, surgem vários pequenos ‘Trumps’, para dar voz a essas pessoas, nos países, e pelo mundo”.
Em Portugal, essa lógica fascista e racista, acredita a escritora, surge relacionada com a narrativa colonial. “Temos esse imaginário tão grande do conquistador, do navegador. E Portugal inteiro vibra com esse imaginário que constitui, de alguma forma, a identidade do povo português, e que é uma identidade constituída em cima da dor dos outros.”
Nesta antologia, a literatura é utilizada para criar novas narrativas e dar voz a essas subjetividades, “desses autores, que são espelhos de todos nós”, porque, como diz Manuella, “são vivências e subjetividades que todos os estrangeiros passam e comungam entre eles”, mas também para dizer “algo que precisa de ser dito”.
“As pessoas dizem que a gente quer meter o dedo na ferida, mas acho que queremos olhar para a ferida, para conseguir tratá-la”, garante. “Porque se trata mesmo de uma ferida aberta, de uma memória colonial viva, que não se quer resolver, de que não se quer falar, para a qual não se quer olhar e, para se curar uma ferida, precisa olhar para ela, drenar, tirar o pus, passar o remédio, trocar o curativo, fazer isso muitas vezes, quando a ferida é uma ferida profunda.” É a isso que se propõem os curadores, juntamente com todos os poetas que participam nesta obra, “contribuir para tratar dessa ferida”, enquanto residentes num país que escolheram para viver.
“Volta Pra Tua Terra”, um dos ataques racistas e xenófobos mais recorrentes em Portugal, dá nome a esta antologia, que luta também contra aquela que é, para a investigadora, uma confusão recorrente, nos nossos dias: “As pessoas acham que ofender é ter liberdade de expressão. Tenho liberdade de expressão para te ofender, para te matar, para aniquilar a tua existência, enquanto outro diferente de mim. A minha liberdade de expressão é que você não exista.”
O título escolhido foi óbvio, mas “meio indigesto”, partilha Manuella. “Parecia muito evidente que era isso que queríamos dizer, que precisávamos de ser diretos e de falar sobre o quão problemático era a gente ter de conviver, enquanto estrangeiro, com essa expulsão diária”, continua. “A gente está, todo o dia, sendo expulso de onde escolhemos viver. E expulso aleatoriamente. Então, acho que foi mais constrangedor, sabe, meio torturante, mas, sim, era óbvio que tinha de ser isso.”
Democratizar o ato literário
O livro é resultado de uma chamada pública, lançada pela Urutau, editora com raízes no Brasil, em Portugal e na Galiza, e que recebeu, no total, 160 textos de poetas provenientes de mais de duas dezenas de países. Destes foram escolhidos 48, para além de um poema de Manuella e outro de Wladimir, para integrar a obra, que conta com a publicação bilingue dos textos que não foram escritos originalmente em português.
Não se vão livrar de mim tão depressa
Estrangeira: nunca.
Cidadã de nenhures
alma de toda a parte
maldita bruxa,
tormento.
Não se vão livrar de mim tão depressa.
**
Non vi libererete di me così in fretta
Straniera: mai.
Cittadina di nessun luogo
anima di ogni dove
maledetta strega, tormento.
Non vi libererete di me così in fretta.
Noemi Alfieri
Contam-se poetas experientes, com livros editados – como o poeta e músico Luca Argel, o escritor, ensaísta e crítico brasileiro Ronaldo Cagiano ou o músico e compositor moçambicano Costa Neto –, mas, maioritariamente, autores que estão fora do círculo habitual da produção artística. Pelo menos metade, tem, nesta antologia, o primeiro texto publicado, destaca a curadora. “Isso foi uma coincidência. A curadoria foi feita através da qualidade do poema.” Ser uma pessoa estrangeira, residente em Portugal, e o poema tratar a questão do racismo, expresso na subjetividade de cada um, eram os únicos critérios da chamada.
Contribuir para uma maior democratização do ato literário, amplificando “as vozes estrangeiras” e as oportunidades de publicação num país estrangeiro era também um dos objetivos deste projeto. “Quando as pessoas escrevem bem, às vezes, não têm nem uma oportunidade de conseguir publicar um texto, porque o mercado já é complicado”, explica Manuella, concluindo a tarefa se dificulta ainda mais, quando se é estrangeiro num país. “Já é difícil conseguir publicar, se estiver no seu país, na sua zona de conforto. Para um autor que é imigrante, é muito mais.”
Residentes em vários pontos do país, como Braga, Porto, Coimbra ou Lisboa, os autores reunidos nesta obra são naturais de nove países distintos, em que a maioria partilha a língua portuguesa como língua-mãe. Há poetas do Brasil, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Colômbia, Itália, Espanha e Guadalupe – “que ainda hoje é colónia de França. Pensar que ainda hoje existem colónias…” Todavia, há uma vontade de quebrar barreiras linguísticas e alcançar outras comunidades muito presentes no país, como a indiana ou árabe. “Sabemos que existem muitas comunidades imigrantes, em Portugal. Fizemos a chamada em outras línguas, em espanhol e inglês, para tentar alcançar outras comunidades, mas ainda não foi desta vez.” Talvez num segundo volume da antologia, uma ideia que já está a ser equacionada pela editora.
“O pessoal é político”
A obra “Volta Para Tua Terra” pretende, em primeiro lugar, combater as narrativas hegemónicas. “A literatura dá conta de uma parte que a historiografia não dá. A história conta do ponto de vista da totalidade, o que é que acontece na linha do tempo, e a literatura dá conta dessas subjetividades, ou seja, como é que essa dor se expressa em cada um, e isso é mais amplo.” O propósito dos curadores foi, portanto, o de utilizar a literatura como “uma ferramenta de disputa de narrativa, que expresse que também existiam pessoas, naquele momento, na História, que colocaram as suas subjetividades a favor de disputar um outro pensamento, um pensamento diferente.”
Ao Gerador, a escritora explica que, mais do que refletir as vivências dos autores, enquanto imigrantes em Portugal, cada poema remete à subjetividade também do leitor. “Tem poema de que gosto muito, de um autor brasileiro, que fala assim – não me vou lembrar agora exatamente como é, mas… – «O poema que você lê é o poema que você tem em você também». Então, às vezes, vou ler um poema e vou interpretar aquilo de uma maneira e, se você ler, vai interpretar de outra. Porque isso tudo depende das referências que temos, das nossas vivências pessoais.”
Contudo, nota, esta não deixa de ser uma antologia com o cunho de que “o pessoal é político”. “As nossas vivências, a nossa questão biográfica, sim, é política e transforma-se muito em literatura, nesse sentido do pessoal é político, e acaba também se convertendo à linguagem.”
SMOOTHIE
ela cresceu numa favela de Bagdá
na primeira década deste século.
pelo menos uma vez por semana
era acordada em plena madrugada
pelo som ensurdecedor dos rotores
de um enorme helicóptero americano
dando vôos rasantes sobre sua casa
sem objetivo
para além
da intimidação.
hoje vive num subúrbio sossegado de Lisboa
traduzindo para o árabe novelas brasileiras.
quase morre de susto
toda vez que eu uso o liquidificador.
Luca Argel
"Tenho muitos poemas onde o poeta é a própria voz, ele está lá", clarifica Manuella, que, para dar-nos um outro exemplo, nos lê um poema de Luca Argel, que vive em Portugal há cerca de uma década. "Nesse caso, vê que já é completamente diferente. É o poeta que se desloca. O poeta trata da dor de outro imigrante, que não a dele, que também é imigrante. O poeta observa, é um observador de um outro que passou por uma situação, que vivenciou uma história de dor, que tem um trauma. E ele só aparece, aqui, no último verso: «Toda a vez que eu uso o liquidificador»”.