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Opinião de Paula Cardoso

Fui acusada de ser negra!

Bem acompanhada da leitura do “Pequeno manual antirracista”, da filósofa brasileira Djamila Ribeiro, tropecei numa…

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Bem acompanhada da leitura do “Pequeno manual antirracista”, da filósofa brasileira Djamila Ribeiro, tropecei numa citação da arquitecta e urbanista Joice Berth: “Não me descobri negra, fui acusada de sê-lo”.

Li e reli a frase, percorri os múltiplos julgamentos sumários que enfrentei ao longo da vida, e demorei a recuperar o equilíbrio.

Agora, cerca de um ano depois do embate, regresso a Joice, e volto a deter-me na mesma palavra: “Acusada”. Ela transporta, na minha história, o sentimento de crescer com uma sociedade de dedos apontados contra mim, sempre à espera da minha ‘culpa’. A ‘culpa’ de ser uma pessoa negra, comprovada, desde cedo, na cobertura noticiosa.

Lembro-me perfeitamente que, estava eu ainda a anos de me imaginar jornalista – hipótese que só considerei a partir do momento em que vi José Mussuaili apresentar um telejornal (haja mais representatividade!) – e já identificava os inúmeros vieses racistas propagados pelos media.

A ofensiva dirigida a pessoas como eu era de tal ordem, que, a determinada altura, fazia apostas com as minhas irmãs de cada vez que ouvíamos uma notícia negativa, na maioria das vezes sobre criminalidade. “Se disserem a origem é porque é black”, repetíamos. Sempre que não era celebrávamos.

No nosso olhar ainda infanto-juvenil do mundo, já era notória a associação entre pele negra e crime. Mas, como pessoas negras e não criminosas que somos, sempre tivemos consciência desse enviesamento, e, por isso, nunca tivemos dificuldade de esvaziar essa narrativa.

A cobertura jornalística enquanto fundação do sistema estruturalmente racista

Podemos escrever o mesmo das pessoas brancas? Não, a avaliar pelos preconceitos que, consciente ou inconscientemente, mantêm em relação a pessoas negras, repetidamente representadas nos media de forma desumanizada e criminosa. A cobertura do assassinato bárbaro de Bruno Candé demonstra-o: nos dias que se seguiram ao crime, as notícias encheram-se de agravantes sobre o falecido actor, e de atenuantes em relação ao homicida confesso.

Sabendo nós que os media são formadores de opinião por excelência, não nos deveria surpreender que a cobertura jornalística seja uma das grandes fundações do sistema estruturalmente racista em que vivemos.

Choquei de frente com ela não apenas como leitora, mas sobretudo como jornalista. E o problema começa na ausência de pessoas não brancas nas redacções e cargos de chefia, traduzida numa agenda que perpetua privilégios brancos, e numa linguagem que normaliza discriminações. Depois estende-se às fontes, ou seja, às vozes consideradas para a construção dos artigos (quem importa para a narrativa?); acentua-se nas colunas de opinião, que se tornaram palcos para amplificar vieses racistas; e amplifica-se entre publicações nas redes sociais, cada vez mais intoxicadas de distorções noticiosas, construídas para polarizar e polemizar reacções.

E depois ainda se simula espanto e indignação diante da escala online – e offline – de discurso de ódio contra pessoas negras e de outras minorias.

Assim desanda a comunicação social e, com ela e como ela, a sociedade. Por isso não me surpreende encontrar Portugal entre os países com maior preconceito racial do globo.

Parece excessivo? Leia-se o estudo “Racial Bias Around the World”, da autoria de Alexander Coutts, professor auxiliar na NOVA SBE, onde se observa que mais de 70% dos portugueses mostraram um enviesamento pró-branco, atirando o país para a 26.º pior posição do mundo nesta matéria.

A conclusão, explicou o especialista à revista Exame, resulta da aplicação do Teste de Associação Implícita (IAT, na sigla em inglês), que tenta medir quão rápida é a nossa associação de palavras negativas ou positivas a rostos de pessoas brancas e negras, exercício indissociável da nossa dieta noticiosa.

Um tabu à portuguesa

“Em Portugal discutir racismo parece ser tabu”, constata Coutts, defendendo que os media têm um papel a desempenhar no aprofundamento desta discussão.

O professor, que vive no país desde 2015, dá como exemplo a cobertura dos protestos Black Lives Matter. “Eu imaginaria que os media se esforçassem mais para entrevistar manifestantes e ouvir o seu lado da história, partilhar as suas experiências em Portugal. Quando milhares de pessoas marcham por todo o país, seria importante tentar perceber porquê. Em vez disso, parte da cobertura foi muito literal, descrevendo simplesmente que houve um protesto. Outro tipo de cobertura noticiosa focou-se em outros temas, como cartazes ofensivos empunhados por manifestantes brancos”, nota o investigador.

Na crítica aos media, Coutts alerta para os efeitos prejudiciais dessa superficialidade. “Alguns na extrema-direita usam essa negatividade a seu favor”, nota, explicitando: “Quando os media não investigam os motivos de queixa dos manifestantes e até seguem as narrativas que o deslegitimam, não está a ser dado a quem está em casa um racional forte para justificar os protestos”.

Às observações deixadas pelo professor canadiano, acrescento o meu olhar de “acusada”, abreviado numa reflexão: se passarmos a vida toda expostos à representação negativa de uma realidade, conseguiremos, algum dia, olhar para ela de forma positiva?

Dificilmente, arrisco escrever, embora acredite que a viragem é possível. Ela começa no reconhecimento dos inúmeros preconceitos que a sociedade planta em todos nós, desde os currículos escolares à cobertura mediática. Está preparado para confrontar os seus? Basta querer.

-Sobre Paula Cardoso-

Paula Cardoso é a fundadora do “Afrolink”. Uma comunidade digital que dá visibilidade a profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país. É também autora da série de livros infantis “Força Africana”, faz parte da equipa do talk-show online “O Lado Negro da Força”, e apresenta a segunda temporada do “Black Excellence Talk Series”, projetos desenvolvidos com o objetivo de promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa.  Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforShe Lisboa.
Paula Cardoso é formadora do curso "Filtros étnico-raciais nos media" que decorre nos dias 19, 20 e 21 de julho na Academia de Verão Gerador 2021.

Texto de Paula Cardoso
Fotografia de Aline Macedo

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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