Quis a pandemia que me tornasse consumidor das séries da Netflix. Sobretudo ao fim da tarde após um dia passado no computador. Mais do que entretenimento podia chamar-lhe entretempo calmante. Uma espécie de yoga de sofá.
Vistas as boas séries, que são poucas, fui obrigado a reduzir a exigência. Um dia aterrei no Star Trek. A Netflix tem o pacote completo.
Conhecia a série original, realizada nos anos 60 que notabilizou o Vulcano Spock das orelhas pontiagudas e o Beam Me Up que introduziu a ideia do teletransporte. Ideia e título que aliás usei num projeto quando convidei uma dezena de amigos artistas, de várias partes do planeta, a enviarem-me um modelo 3D pela Internet que imprimi e expus.
Desta vez, escolhi a versão Voyager realizada entre 1995 e 2001. Vi os 172 episódios, ainda que frequentemente acelerando dada a particular irrelevância do assunto.
A ficção científica raramente é brilhante quando se trata de especular sobre o futuro da exploração espacial. 2001 Odisseia no Espaço (1968), Solaris (1972) de Tarkovsky, baseado na novela de Stanislaw Lem e Blade Runner (1982), são as exceções. Podemos ainda considerar as séries Alien e Terminator, sobretudo pelos efeitos especiais.
A maioria dos filmes e séries não consegue libertar-se do template de Hollywood, reproduzindo num futuro longínquo os mesmos estereótipos: rapaz encontra rapariga, pancadaria, muita imbecilidade e invariavelmente religião e sobrenatural.
Star Trek Voyager não se livra disto. Com ação projetada para daqui a 300 anos, a interação social entre os habitantes da nave Voyager é, em tudo, similar ao de qualquer comunidade suburbana de hoje das grandes cidades americanas. As mesmas pequenas intrigas, as mesmas pequenas vidas. Quanto aos não-residentes, os estereótipos, embora mais elaborados, remetem na mesma para a sociedade americana atual, racista, discriminatória e muito preconceituosa. Os extraterrestres são, na sua vasta maioria, maus, ou, melhor dito, péssimos, ora pela barbaridade, ora pela depravação. Passam o tempo a tentar matar ou enganar os pobres humanos. O linear conflito entre bons e maus é constante.
Para além da incongruência dos comportamentos, Star Trek reflete ainda um outro problema típico da ficção científica, sobretudo quando apresentada num suporte visual. A literatura é, neste sentido, mais aberta porque deixa ao leitor a imaginação das coisas. Na verdade, é muito difícil visualizar o futuro da estética, por exemplo nas roupas e ambientes, e já nem falo da arte. Pela simples razão de que esse é o trabalho dos criadores de hoje. Ou seja, o futurismo e o visionarismo têm uma existência contemporânea. Qualquer projeção no futuro torna-se presente. É uma espécie de paradoxo temporal.
Daí que estas séries, para tratar do futuro, regressem repetidamente ao passado. Coisas extraordinárias, pela estupidez, é a constante presença de velas de cera na nave Voyager no ano de 2370… ou comer um hambúrguer… ou pipocas para ver um filme dos anos 50… etc…
Muitos episódios ocorrem em ambientes do passado (americano), desde cidades do século 20, meios rurais e até cenas de coboiadas, com cavalos, tiros e tudo.
A maioria dos extraterrestres é humanoide, em tudo similar aos humanos com algumas protuberâncias na testa ou no nariz. Vivem em planetas muito distantes, mas em ambientes medievais, com reis e rainhas. Percebe-se. Poupa na produção, mas quanto a crédito estamos conversados.
Os dois personagens mais atraentes e com maior destaque, são o Vulcano Tuvok e a ex-Borg Seven of Nine, excelente nome, diga-se. No contexto de uma nave à deriva, no espaço e nas atitudes, são os únicos tripulantes racionais e objetivos. Pela expressão de um pensamento assente na lógica e um comportamento focado nos objetivos, estes dois personagens representam uma forte crítica à irracionalidade geral da espécie humana. Que afirmam amiúde. Nesses comentários, vindos do futuro, percebe-se porque no presente não conseguimos, coletivamente, resolver nenhum problema sério, como seja a destruição do próprio planeta onde vivemos. O que é particularmente insensato, para não dizer muito estúpido.
Agora que o marketing multimilionário reavivou a atenção pública para a exploração espacial, vai-se consolidando a ideia de que o destino da humanidade está na colonização de outros planetas, tanto mais que o nosso se tornará cada vez mais inóspito. É, para já, uma mera fantasia. Existem problemas muito difíceis de resolver. Desde logo, o nosso tempo de vida face às enormes distâncias a percorrer. Ou a quantidade de pessoas que se pode enviar. Imagine-se que só vão milionários. Fariam o quê? Por outro lado, ao contrário da visão conflituosa transmitida pela série Star Trek, e outras similares, no espaço não pode, de todo, existir violência. Qualquer conflito resultaria no extermínio imediato.
É, por isso, que nas próximas décadas, talvez séculos, a exploração espacial será feita sobretudo por máquinas e, mais tarde, por bio máquinas. Nesse sentido, a Seven of Nine é o único elemento da série Star Trek realmente do futuro. O resto é coboiada.
-Sobre Leonel Moura-
Leonel Moura é pioneiro na aplicação da Robótica e da Inteligência Artificial à arte. Desde o princípio do século criou vários robôs pintores. As primeiras pinturas realizadas em 2002 com um braço robótico foram capa da revista do MIT dedicada à Vida Artificial. RAP, Robotic Action Painter, foi criado em 2006 para o Museu de História Natural de Nova Iorque onde se encontra na exposição permanente. Outras obras incluem instalações interativas, pinturas e esculturas de “enxame”, a peça RUR de Karel Capek, estreada em São Paulo em 2010, esculturas em impressão 3D e Realidade Aumentada. É autor de vários textos e livros de reflexão, artística e filosófica, sobre a relação Arte e Ciência e as implicações, culturais e sociais, da Inteligência Artificial. Recentemente, esteve presente nas exposições “Artistes & Robots”, Astana, Cazaquistão, 2017, no Grand Palais, Paris, 2018, na exposição “Cérebro” na Gulbenkian, 2019 e no Museu UCCA de Pequim, 2020. Em 2009 foi nomeado Embaixador Europeu da Criatividade e Inovação pela Comissão Europeia.