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Latitude 40: “Com as práticas artísticas participativas, o que se propõe é ampliar vozes”

Como pode o teatro comunitário ser uma ferramenta de resistência ao sistema capitalista? Qual é…

Texto de Clara Amante

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Como pode o teatro comunitário ser uma ferramenta de resistência ao sistema capitalista? Qual é a importância dos objetos para a memória e para a identidade coletiva de uma comunidade? Como é que se estabelecem vínculos profundos que vão para além das conexões sociais superficiais? São questões como estas que têm vindo a ser debatidas no Latitude 40, um novo festival digital que pretende fomentar o diálogo sobre práticas artísticas participativas, desenvolvido numa parceria entre Portugal e a Argentina.

Tendo iniciado a 4 de setembro, irá prolongar-se até 21 de novembro e conta, no seu programa, com variadas conversas, produções artísticas e um seminário internacional. O festival propõe-se, através destas iniciativas, a criar um espaço para partilha de metodologias, experiências e boas práticas entre profissionais de diferentes partes do mundo, bem como a pensar o papel essencial que a cultura e a criatividade têm no desenvolvimento social e humano.

Trata-se de uma produção que une Lisboa e Buenos Aires, e é justamente dessa união que surge o seu nome, uma vez que, ambas as cidades, estando em hemisférios diferentes, partilham a mesma latitude: 40º.

Foi após passar algum tempo em Buenos Aires que a atriz e criadora, Cláudia Andrade, fundadora da Associação Cultural A Caravana, regressou a Portugal com um fascínio pelas práticas artísticas comunitárias e uma grande vontade de desenvolver trabalho nesta área e no seu país. Foi também nesse período que conheceu Agustina Ruiz Barrea, diretora artística e pedagógica do grupo de teatro comunitário Los Pompapetriyasos (Los Pompas). Após muito trabalho conjunto, nomeadamente na organização do Laboratório de Práticas Performativas na Comunidade, que decorreu em Lisboa, em 2018, ambas as criadoras e respetivas organizações se juntaram para fazer nascer o Latitude 40, numa primeira edição totalmente digital.

Estivemos à conversa com a Cláudia e a Agustina para sabermos um pouco mais sobre o que as motivou a desenvolver esta iniciativa, mas também para compreendermos a importância das práticas artísticas participativas e descobrirmos um pouco da sua história, em particular a do teatro comunitário argentino.

Gerador (G.) – Podem contar-nos um pouco sobre como surgiu o Latitude 40 e sobre o que tinham em mente quando concetualizaram o festival?

Agustina Ruiz Barrea (A. B.) – O festival é sobretudo fruto de se acreditar em algo. Há uma crença profunda na importância da relação com os outros e em quão isso nos nutre. Fez-nos sempre bem encontrarmo-nos para conversar, partilhar as nossas dúvidas, as nossas conquistas, as nossas angústias… Nesse sentido é muito interessante para nós gerar este espaço no qual nos possamos encontrar com outras pessoas para compartilhar e questionar como criamos dentro das nossas comunidades, e para o que criamos. Por alguma razão se chamam práticas artísticas participativas, porque acreditamos no participativo. Acreditamos em gerar espaços de partilha entre diferentes territórios, com as singularidades de cada lugar, para a partir daí conseguirmos entender o todo. É ótimo poder confrontar diferentes perspetivas e percebermos que isto traz vantagens até para entenderes o teu próprio lugar. Por isso parece-me que é bonito podermos construir este espaço, onde o relacional acontece a sério com tudo o que implica. E por vezes não é fácil, é conflituoso, não é uma harmonia completa, é preciso levar adiante o desafio de discutir e questionar diferentes formas de compreender o mundo. Creio que é muito nutritivo, porque é uma forma de construir e pensar o global.

Cláudia Andrade (C. A.) – Acho que o Latitude 40 surge da nossa vontade, enquanto criadoras, de continuarmos a estabelecer um vínculo e uma comunicação entre nós, mas que, ao mesmo tempo, sentimos que seria produtivo partilhar com o mundo. Ou seja, há aqui uma relação de amizade e de empatia profundas, que se junta ao facto de valorizarmos que existam estes espaços que nos permitem questionarmos as nossas próprias verdades. Eu acredito sempre que é nisso que está o crescimento, nesta vontade de expandir, no encontro com as realidades diferentes. Vivemos de facto num tempo em que parece que estamos todos conectados, mas será que estamos mesmo? Nós queríamos aprofundar esta conexão e começámos com esta ideia de semente. Não queremos criar logo um produto final e imediato. Fazemos isto como um investimento, acreditamos que o Latitude 40 é uma pontinha daquilo que pode ser uma relação estrutural entre pessoas que estão unidas por determinados assuntos, por determinados interesses, e, ao mesmo tempo, que estão separadas por diferentes metodologias e diferentes perspetivas de ver o que é a prática artística, o que é um coletivo. Então, no fundo para mim, este festival é esta proposta de articulação entre várias práticas, entre vários sujeitos que por acaso se encontram em diferentes latitudes, e que estão envolvidos em várias dimensões artísticas. E este artístico é cada vez mais um artístico polissemântico, multidisciplinar. É este encontro do teatral, do estético, do político, do sociológico, do psicológico, do ontológico.

(G.) – Para quem não está tão familiarizado com o tema, o que são práticas artísticas comunitárias e participativas?

(A. B.) – As práticas artísticas sempre foram comunitárias, o que acontece é que o advento do capitalismo as transformou noutra coisa e, durante muitos anos, permaneceram nas mãos de um certo setor de poder. Portanto, com as práticas artísticas participativas, o que se propõe é ampliar vozes, desmonopolizar histórias, poder ouvir como, a partir de outros lugares, diferentes pessoas podem construir narrativas com outros saberes. Empoderar diversas comunidades a reconhecerem-se produtoras de significado, para que voltem a tomar consciência da capacidade que têm para produzir narrativas. E que, ao mesmo tempo que se dão conta de que as podem produzir, também se dão conta de que podem questionar as narrativas estabelecidas. É sobre promover a potência que existe num ato de criação e o lugar profundamente político e humano que tem a arte, que tem muito para nos oferecer e ensinar. E precisamente por isso mostrar que se a praticarmos não seremos iguais a se não a praticarmos. E nós acreditamos que não basta fazer-se arte sozinho nos nossos espaços encapsulados, mas é preciso ampliar, expandir e escutar os outros, também porque nos reconhecemos como parte de uma comunidade global, fazemos parte de um mundo, partilhamos um mundo. Portanto, permanecer encerrados nas nossas comunidades não tem o mesmo poder. Escutar projetos de diferentes partes do mundo e outras pessoas a proporem coisas dá muita força, muita energia e muito sentido.

(C. A.) – Eu acho que esta ideia de práticas participativas tem o foco naquilo que pode ser um processo de emancipação. Nós como seres humanos temos uma capacidade grande de nos questionarmos, de nos reinventarmos, de recriar. Então, entender que os processos artísticos são processos de transformação e que podem ir desde uma transformação interna e subtil a uma transformação da própria comunidade, que se vê no espaço. Com esta experiência comunitária, queremos chamar as pessoas a participar para despertar esta consciência e ao mesmo tempo ampliar o poder vinculativo que a arte também tem. Tem muito que ver com compromisso. Quando nós nos juntamos no processo criativo, comprometemo-nos uns com os outros. E é neste compromisso que reside o poder emancipatório. Porque se eu não me comprometo, também não vou me vincular e portanto não vai haver uma transformação. E nós vivemos em tempos em que não nos queremos vincular, e o próprio sistema aproveita-se disto muito bem, politicamente falando. Então nós partimos da ideia de que as práticas artísticas e o processo criativo são processos de produção de conhecimento. Citando a Grada Kilomba: “A produção de conhecimento está baseada numa relação de poder e violência.” E nós temos de ter em conta que “o acesso à produção de conhecimento foi negado à maior parte dos seres humanos”, o que significa que, neste momento, aquilo que é reconhecido como produção de conhecimento é mínimo, em relação à nossa humanidade e à nossa diversidade, porque apenas uma parte deste conhecimento foi considerado como aceitável nesta hierarquia. E como a Agustina também escreveu: “a arte é uma capacidade humana que nos vincula diretamente ao nosso poder transformador. Porque nos reconhecemos capazes de reinventar, de construir novos horizontes.”

(G.) – Quais as maiores diferenças entre a forma como se pensa nas práticas artísticas comunitárias em Portugal e na Argentina?

(C. A.) – As diferenças são imensas. Quando fui à Argentina pela primeira vez, aquilo tudo impressionou-me muito, sobretudo o teatro comunitário. Era um bocado uma utopia, um sonho, mas depois cheguei a Portugal a pensar: “Mas aqui como é que se faz? Porque isto é diferente, aqui não há essa rede.” E até que ponto é que quando admiramos tanto uma coisa, a queremos replicar? Mas isso não pode acontecer, porque as sociedades são fenómenos. Aquilo que nós acreditamos é que com as experiências tão distintas que temos, conseguimos alimentar a nossa diversidade, aceitando estas diferenças, sem tentar partir de dogmas. Isso às vezes é muito difícil porque os dogmas também são aquilo que nos estrutura, são as nossas verdades, as nossas seguranças. Mas eu acho que aquilo a que nós nos propomos aqui é um espaço para pensarmos juntos, e eu acho que felizmente tem sido mais aquilo que é comum do que aquilo que nos distancia. Mas eu acho que é dentro desta perspetiva, a Agustina dizia há pouco que nos nutrimos do outro, e que isso serve para nos ampliar, mesmo que não possamos replicar algo, podemos pensar como partimos daqui. Mas, sim, existem muitas diferenças, existem contextos sociais e económicos completamente diferentes. Falando mais especificamente do teatro comunitário, que é a área em os Pompas trabalham, é um fenómeno muito, muito argentino, muito particular, muito regional. Dentro do próprio fenómeno do teatro comunitário, existem várias modalidades. No caso da Argentina, adquire uma forma muito específica a que se chamou “teatro de vecinos” (teatro de vizinhos) que ocorre entre os vizinhos que vivem em determinado bairro.

(A. B.) – Exatamente. O teatro comunitário aqui surge nos subúrbios, como uma necessidade, tem que ver com o saber que a pobreza gera, com o saber que a humanidade tem quando já não tem mais nada. Porque existe um registo muito mais forte de que sem o outro não se pode continuar. Aqui as pessoas que moram em bairros muito desfavorecidos têm um saber comunitário que aqueles que têm um padrão de vida mais privilegiado não têm. Há uma comunidade que está viva e que é necessária, por exemplo, para que uns cuidem dos filhos uns dos outros. Ou, por exemplo, os avós ainda estão no centro da família, etc. Quem está urbanizado e faz parte de um sistema e tem uma vida económica estável, foi perdendo isso, temos outra configuração do coletivo. Então, o teatro comunitário aqui é uma linguagem que surge como uma necessidade. Este teatro de coro que trabalha muito sobre a identidade também não aparece aqui por acaso. Por causa da ditadura, nos anos 70, tivemos um problema de 30 mil pessoas desaparecidas. E o que isto causou foi uma crise de identidade do país. Várias organizações de direitos humanos apareceram para tentar encontrar estas pessoas e encontraram mais de 500 crianças que haviam perdido a sua identidade. Então surge este teatro que se vem questionar para a rua sobre quem somos. Surge também para contar a história de La Boca, um bairro de imigrantes italianos, e lança questões sobre quem são, sendo que estando longe de Itália, como são agora neste território? Então aqui sempre esteve muito ligado ao território e à identidade. Quem somos nós, que somos compostos por espanhóis, italianos, alemães, portugueses, mapuches? Como construímos um “nós” com esta diversidade cultural? O teatro comunitário nasce desta necessidade de restituir um sujeito coletivo. Neste sentido é muito distinto da experiência europeia, porque não tinham este problema. Tinham outros, mas não este. Por exemplo, eu trabalhei durante muito tempo com a Universidade de Utrecht (Países Baixos) e, ali, a comunidade é o “outro cultural”. Trabalhava-se com os refugiados sírios, com os libaneses, etc. Em Utrecht, havia um grupo de teatro, o STUT, que tentava cruzar então as diferentes comunidades. Mas, por exemplo, não surgiu no centro de Utrecht, surgiu também num subúrbio. Entretanto, o formato argentino começou a irradiar para o mundo, porque é muito interessante esta particularidade de que a comunidade não é o “outro cultural”, somos todos. É repensar o lugar da comunidade. No teatro comunitário argentino, convivem todos: o grande, o pequeno, o velho, o pobre, etc., todos. Não há restrições de participação, e isso é extremamente enriquecedor, porque é um campo de batalha, de conflito e de disputa enorme de significados.

(C. A.) – Esta é uma das particularidades do teatro argentino que para mim é muito rica. Esta intergeracionalidade, este interclassismo. Mas de alguma forma eu diria que o que há de comum entre todas as formas é esta ideia de dar voz. A história mostra-nos que estes projetos surgiram de comunidades periféricas e que, no fundo, aquilo que querem é ter voz. E são comunidades cujas vozes foram esquecidas e silenciadas. E então é este ajuste de contas, especialmente em períodos de crise.

(A. B.) – Ainda mais do que dar uma voz, é as pessoas tomarem a voz, fazendo-o elas próprias. Por exemplo, cá surgiu muito profundamente depois da ditadura e depois da crise de 2001, dois períodos em que as vozes foram muito silenciadas e não se podiam expressar. Então aparece este sujeito coletivo, que vem mostrar a sua opinião do mundo e a necessidade de tomar a palavra conjunta.

(G.) – Falando agora mais concretamente da programação do festival, o nome do ciclo de conversas é “Desentramando un sentido común” ou “Desvendando um sentido comum”. O que significa para vocês este título?

(A. B.) – O que estas práticas fazem é consciencializar-nos de que somos criadores de linguagem e evidenciam as relações de poder, permitindo romper com o senso comum. A ideia é começar a desmantelá-lo, a olhar para ele desde outra perspetiva e repensar o valor que têm as palavras, os sons, as imagens e as coisas que deixamos no espaço.

Põe-nos noutro lugar, de onde podemos reconhecer que as ruas por onde andamos foram construídas durante anos e anos pela mesma humanidade, e que, por isso, às vezes pensamos: “Pronto, é assim.” Quando na verdade a linguagem é dinâmica, a arquitetura é dinâmica e as relações também. É importante ter a perceção disso e repensá-lo e reconciliarmo-nos com o nosso caráter profundamente político, esse caráter de ter poder para modificar as coisas e criar novos sentidos (comuns). O caráter de implicação que temos uns com os outros é ontológico. Nós somos em conjunto com outros. Por exemplo, nos Pompas, a organização a que pertenço, por vezes alguém se dava conta: “Eu não posso fazer isto ou aquilo, não sei cantar, ou não sei pintar, ou não sei fazer uma música.” Mas felizmente há outra pessoa que pode fazê-lo. É um somatório de poderes. É incrível o que se sente quando se compreende que o teu próprio poder está associado ao do outro e à cooperação entre as várias partes. Um encenador que admiro muito, chama-se Martín Salazar, disse-me que é preciso entender que temos de substituir o conceito de competição por cooperação. Quando alguém consegue cooperar com os outros, a arte acontece. Quando alguém compete, aquilo que está a fazer é simplesmente a replicar uma forma, mas não há cooperação. A criação acontece quando um coopera com os outros, quando participamos na construção de linguagem e criamos juntos, numa multiplicidade de sentidos sonoros, visuais e táteis. Fazemo-lo na relação com outras pessoas e, quando isso acontece, é poderoso.

(G.) – Neste momento, já aconteceram três das seis conversas programadas no âmbito do ciclo. O que é que mais vos marcou nestas sessões? Há algo que gostassem de destacar?

(C. A.) – Eu acho que o que é lindo nisto é precisamente a diversidade dos oradores. Há coisas com as quais eu me identifico mais, mas haverá outras pessoas que se identificam mais com outras. Eu acho que o balanço é superpositivo, tem sido muito bom o encontro entre tantas pessoas de sítios diferentes e sobretudo a quererem também participar e falar. Nestas conversas nós próprios também estamos a tentar desmantelar um bocadinho aquilo que é uma palestra. Ou seja, a pessoa que está a falar propõe coisas, mas não queríamos que fosse uma coisa fechada. O que achamos interessante é a possibilidade das pessoas entrarem em contacto e fazerem perguntas. As pessoas são tão diferentes e cada uma traz o seu contributo, a sua verdade. Eu acho que isso é muito rico, e as pessoas também gostam dessa sensação que o online permite, de estarem todos em sítios diferentes.

(A. B.)Para mim, tem sido muito interessante no sentido de suscitar questionamentos e também por nos permitir sentir uma maior proximidade com pessoas de diferentes lugares. Há uma música de Catalinas Sur que diz “juntando pessoas daqui e dali”. E as conversas permitem isso, certo? Convidar outros a aproximarem-se, a juntarem-se. Pessoas de localizações distintas, na mesma sintonia, à procura de direções parecidas. E é impressionante haver tanta gente num Zoom, especialmente neste momento em que toda a gente já está tão cansada do digital. As conversas são às duas da tarde na Argentina, há sol, e mesmo assim as pessoas escolhem dedicar duas horas a escutar, pensar e a interagir com outros sobre estes assuntos. E pessoalmente o que acontece comigo é que cada conversa me deixa com uma sensação, como quando se vê um filme muito bom e se fica de barriga cheia [risos]. Isso acontece comigo, quando termina sinto que aquele tempo me deixou muito feliz. Além disso, neste contexto, sinto que acontece o que Cláudia disse antes: estamos realmente conectados nestas conversas. Provoca-se uma conexão real, e isso é outra forma de habitar o virtual. Não temos de vivê-lo como consumidores, mas estamos ali como singularidades, como sujeitos juntos, a ouvir, cada um a partir do seu mundo. E isso entusiasma-me muito, ver como os outros pensam noutros lugares, como abordam algo. Isso nutre-me, muda-me. Estou extremamente grata por poder fazer isto.

(G.) – Ambas irão ser coordenadoras de um seminário internacional no festival, que tem como título “Hacia El Rescate de Nosotros” ou “Resgatando o Nós”. Podem desvendar-nos um bocadinho sobre esta parte do programa e o conteúdo das sessões?

(C. A.) – A partir do momento em que eu me proponho a montar um seminário com a Agustina, estou a propor a ampliar o meu registo do “nós”. É como se este processo já tivesse começado, aquilo que nós estamos a propor aos outros é algo que estamos a infligir a nós próprias. Eu estou a propor vincular-me a ela, criar este espaço comum que é um espaço de tensão, é um espaço de estarmos perdidas, é um espaço de nos encontrarmos, de conectarmos expectativas e de definirmos intencionalidades. Esta ideia do registo do meu eu em relação com o outro. Isto, em primeira instância, nós estamos as duas a fazer como processo enquanto estruturamos o seminário.

(A. B.) – Totalmente. E é preciso fazer estes exercícios: o que é o coletivo para mim? O que é o coletivo para ti? E para o outro? É ótimo poder pensar nisso em conjunto, porque não é o mesmo para ninguém e também não é o mesmo aqui e aí. E sobretudo fazer o esforço de entender que para o outro não é igual. Isso é o mais difícil de tudo e também é algo que queremos transmitir no seminário, o entusiasmo de nos perdermos no encontro com o outro para depois nos encontrarmos e nos reconhecermos como distintos.E assim desenvolvemosestratégias para abordar o coletivo, que, lamentavelmente, não é um tema muito pensado. Aqui em Buenos Aires há muitos psicanalistas, gente que analisa sozinha, eu também me analiso sozinha [risos]. Mas o coletivo não se pratica tanto, passa-se o tempo na ilusão de que se é este ser omnipotente, neoliberal, e que consegue fazer tudo sozinho. Então aqui o que propomos é uma outra construção da humanidade nesse sentido e para isso é necessário criar uma poética. Tudo começa com a poética.Nós somos seres que aspiramos a criar símbolos e construir linguagem. Bem, aí está. A ideia é, primeiro criarmos, restituímos, reencontramos e voltamos a praticar esta linguagem coletiva. E também há muito conhecimento que ambas temos. Por exemplo, a Cláudia fez toda uma investigação de um traço histórico de como a poética coletiva é abordada no Ocidente. É ótimo pensarmos nisto em conjunto para sabermos de onde partimos. Eu penso que somos sempre atravessados pela poética coercitiva aristotélica, que afeta todas as nossas narrativas. Senós não temos consciência disto e se não pensamos o poder que tem essa política coercitiva, não a vamos poder desarmar nunca e não vamos poder pensar narrativas distintas. A história está sempre contada através do herói, a quem aconteceu alguma coisa, ou que se portou mal. Normalmente sabes o castigo que o herói sofreu, mas não sabes bem porquê, não conheces o contexto. Por quais valores lutava San Martín? E Bolívar? E Che Guevara, mataram-no na Bolívia, mas o que havia por detrás de Che Guevara? Havia um monte de gente, uma ideia nova de mundo. Então, parece-me que isto são narrativas, maneiras de narrar. A poética aristotélica atravessa-nos a vida e é uma maneira que o mundo ocidental impôs de se contar a história. E estes espaços propõe-se desmantelar isso. Chegamos e dizemos: “OK, porque é que não podemos contar a história de outra maneira? Porque é que não a podemos contar através de perguntas?” E este seminário trata de voltar a abrir essas portas e por isso também está associado a esta ideia de desconstruir o senso comum.

(G.) – Para além do ciclo de conversas e do seminário, há ainda a apresentação de duas produções artísticas, o espetáculo Callará el silencio. Historias de Cartón, criado e produzido pelos Los Pompapetriyasos durante o período de isolamento obrigatório e o documentário Ativismo afetivo ou o lugar onde vivem as memórias, produzido pel’A Caravana. Querem falar-nos um pouco desta parte do programa?

(C. A.) – Quando eu vi as Historias de Cartón, através de uma sessão online, deu-me uma vontade enorme de partilhar. Achei-o tão rico que pensei que mais pessoas deveriam ter acesso àquilo. Não só ao produto, mas também à história e ao contexto em que foi produzido, numa altura em que os Pompas estavam a passar por um momento de sobrevivência muito difícil. Nós queríamos ajudar, e este festival é também uma tentativa de pôr em prática um sistema de cooperação e de solidariedade. O mundo tem de saber destas coisas nós temos que divulgá-las. E acho que esta é uma forma de partilharmos aquilo que estamos a fazer, no fundo.

(A. B.) – Acho que estas apresentações mostram como são os processos de criação e que tudo isto de que falámos tem uma materialização real. No caso da Cláudia, tudo começou quando viu as Historias de Cartón. Esta materialização é a primeira coisa que nos toca, certo? Assim, vê-se que tudo o que falamos tem uma raiz física específica. São produtos artísticos que nos permitem conectarmo-nos, nem tudo é apenas conversa e teoria. Não estamos aqui a falar sem ter um suporte material, um suporte prático. Se não agirmos de acordo com aquilo que discutimos, isto não faz sentido. Portanto, parece-me que é também uma forma de mostrar que é possível fazerem-se as coisas.

(G.) – Este é o primeiro ano do festival. Como imaginam as próximas edições? Qual o rumo que gostariam de o ver seguir?

(C. A.) – Aideia é que isto se possa desenvolver. Ultimamente acho que me tem acontecido isto nos meus projetos pessoais: não me interessa tanto fazer coisas que têm um período curto de vida, mas sim perceber como é que elas podem evoluir. Porque senão às tantas pomos expectativas muito grandes nas coisas e elas não têm tempo de se desenvolver. No fundo é isto, quero que o Latitude 40 seja um processo que se possa desenvolver no tempo. Não sei sobre que formatos. Também não sei como é que o mundo vai fluir e nós estamos sempre a acompanhar o mundo, somos parte do mundo. As nossas realidades são provisórias, o contexto é sempre dinâmico. Então temos de acompanhar essa dinâmica, mas acho que a proposta é mantermos esta relação de continuidade de alguma forma. Quando fazemos isso, também estamos a combater a ideia do mercantilismo e do consumismo puro e duro. Por outro lado, acho que é uma forma de nos relacionarmos com a nossa individualidade, projetarmo-nos numa coisa que é maior do que nós e do que o tempo.

(A. B.) – Sim, completamente de acordo. E imagino-o como um espaço provocador de perguntas, perguntas que nos movam, que nos causem incómodo, que nos tirem da nossa zona de conforto. Neste sentido parece-me uma utopia bonita, e que só sucede graças ao encontro com a diversidade. Desta edição eu levo comigo já uma série de perguntas, uma série de novas possibilidades, e ainda nem sequer terminou.

Para o futuro, espero que consigamos juntar ainda mais gente de latitudes distintas, de outros continentes também, parece-me que pode ser interessante. Como aquilo que nós fazemos é, de certa forma, muito contra-hegemónico, por vezes acabamos a fazê-lo muito sozinhos, e, então, é muito tranquilizador sentir que, de alguma forma, formamos parte de algo maior. E parece-me que aquilo a que nos propomos com esta plataforma também é fazer-nos visíveis entre nós, gerar um espaço que nos permita ver quantos outros há, a sonhar, a escutar, a pensar.


O festival Latitude 40 decorre online até dia 21 de novembro com todas as atividades gratuitas (à exceção do seminário). O ciclo de conversas recomeça com Hugo Cruz, investigador português e diretor artístico do MEXE – Encontro Internacional de Arte e Comunidade, cujo percurso se destaca pela cocriação em espaços não convencionais como prisões, centros comunitários, escolas, bairros sociais, fábricas e lotas. Continua a 30 de outubro com Daniela Carvajal, socióloga e gestora cultural, atualmente chefe de Espaço Público e Mediação Comunitária na Fundação Museus da Cidade, no Equador. Por fim, Amir Haddad encerra o ciclo de conversas a 6 de novembro, partilhando a sua experiência enquanto um dos maiores encenadores do Brasil. Por último, as duas produções artísticas,Callará el silencio. Historias de Cartón e Ativismo afetivo ou o lugar onde vivem as memórias, têm apresentações marcadas para o mês de novembro.

Fica a conhecer toda a programação e inscreve-te em latitude40.org.

Texto de Clara Amante
Fotografia cedida pelo grupo Los Pompapetriyasos

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