fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Opinião de João Teixeira Lopes

Queixa e teimosia de um poeta fracassado

Sempre gostei da escola e tive a sorte de me cruzar com excelentes professoras de…

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Sempre gostei da escola e tive a sorte de me cruzar com excelentes professoras de português. Em casa faltava dinheiro, mas havia livros e um pai que fazia da leitura (e mais tarde da escrita) a sua frágil tábua de salvação. Talvez por isso, fui bom aluno e gostava de escrever e de obter reconhecimento pela escrita, compondo poemas (alguns horríveis) e redações, mais ou menos grandiloquentes, mas apreciadas, até por mimetizarem alguma da mundividência dos adultos, que tanto me estimulavam. Em casa, a família habituou-se a ouvir-me ler em voz alta o que escrevia, aplaudindo com furor. Os amigos mais velhos das minhas vizinhas (que tinham a minha idade e não ligavam nenhuma aos versos) colocavam-me num banco e incentivam-me à récita excitada dos textos. Os únicos críticos credíveis eram o meu pai, o meu tio e sua mulher de então, a cineasta Noémia Delgado, que me apontavam os lugares-comuns e me incitavam a melhorar. O resto do parentesco profetizava (ainda bem que as profecias falham) um menino-prodígio, encanto de qualquer salão.

Certa vez, escrevi uma crónica sobre a prostituição, como se disso percebesse alguma coisa, virgem que era e confinado ao saber livresco. A Noémia não perdoou e, com bons modos, mas impaciência, advertiu-me para o cenário idílico que ali traçava, romanceando a prostituição como angelical atividade de mulheres ora vitimizadas, ora possuídas de encantos mil, completamente alheado das suas dificuldades concretas, da violência da rua e das pensões sórdidas por onde andavam (felizmente, para uma parte das e dos trabalhadores do sexo, a situação melhorou consideravelmente). Abriam-se as portas para a compreensão da difícil ligação entre a arte e a vida, jogo de espelhos com muitos biombos e sombras pelo meio (quem inventa quem – a arte ou a vida?; amigo, a sua vida pela arte ou a sua arte pela vida?).

Outra ocasião, aproveitando a proximidade com o poeta Manuel António Pina, meu professor de jornalismo no ensino secundário, levei-lhe uns poemas ao Orpheuzinho, café de uma certa tertúlia do Porto. O poeta, que até então sempre fora generoso comigo (franqueando as portas de sua casa, deixando-me folhear os livros, mostrando-me a sua coleção de brinquedos e oferecendo-me serigrafias de pintores seus amigos), não teve desta feita a mesma candura, pois os poemas, além de tresandarem à Mensagem do Pessoa, tinham um erro ortográfico. Levantou-se e foi comigo até ao centro comercial Brasília, a poucos metros do café, onde havia uma livraria que importava livros estrangeiros. Perguntou-me qual era o meu poeta preferido. Respondi-lhe: «António Gedeão». Ele disse-me que o seu era o Eugénio de Andrade, que vivia na Foz, gostava da companhia de gatos e de beber chá com os amigos, coberto com uma mantinha. Ofereceu-me, então, o ABC da literatura, de Ezra Pound. Desde essa altura, passei a comprar todos os livros de capa branca que o Eugénio editava com um ritmo certo e abri-me a muitas outras leituras. Mas continuo a gostar de António Gedeão.

Tentei uma terceira e quarta vez, com o Arnaldo Saraiva e a Ana Luísa Amaral, que me responderam com enorme simpatia e alguma vergonha, pois são meus amigos. Disse-me o Arnaldo: «ouço o mar nos seus poemas», mas nada acrescentou sobre uma possível publicação. Disse-me a Ana Luísa: «João, são tão bonitos os teus poemas». Mas percebi que por ali ficavam.

Poeta falhado, em suma, mas ainda assim reincidente. Creio que foi Borges quem escreveu que, mesmo o poeta menos afortunado pela graça da escrita, terá alguma vez escrito o mais belo verso. Para isso, acrescento, convém ler muito, ter tempo para desprezar a aceleração frenética que nos aliena e abrir as veias da imaginação.

Sabem, ainda procuro esse verso e não sou de desistir.

-Sobre João Teixeira Lopes-

Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade  de  Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997).  É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a  29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.

Texto de João Teixeira Lopes
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

9 Julho 2025

Humor de condenação

2 Julho 2025

Não há liberdade pelo consumo e pelas redes sociais

25 Junho 2025

Gaza Perante a História

18 Junho 2025

Segurança Humana, um pouco de esperança

11 Junho 2025

Genocídio televisionado

4 Junho 2025

Já não basta cantar o Grândola

28 Maio 2025

Às Indiferentes

21 Maio 2025

A saúde mental sob o peso da ordem neoliberal

14 Maio 2025

O grande fantasma do género

7 Maio 2025

Chimamanda p’ra branco ver…mas não ler! 

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Gestão de livrarias independentes e produção de eventos literários [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Patrimónios Contestados [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Artes Performativas: Estratégias de venda e comunicação de um projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Escrita para intérpretes e criadores [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

02 JUNHO 2025

15 anos de casamento igualitário

Em 2010, em Portugal, o casamento perdeu a conotação heteronormativa. A Assembleia da República votou positivamente a proposta de lei que reconheceu as uniões LGBTQI+ como legítimas. O casamento entre pessoas do mesmo género tornou-se legal. A legitimidade trazida pela união civil contribuiu para desmistificar preconceitos e combater a homofobia. Para muitos casais, ainda é uma afirmação política necessária. A luta não está concluída, dizem, já que a discriminação ainda não desapareceu.

12 MAIO 2025

Ativismo climático sob julgamento: repressão legal desafia protestos na Europa e em Portugal

Nos últimos anos, observa-se na Europa uma tendência crescente de criminalização do ativismo climático, com autoridades a recorrerem a novas leis e processos judiciais para travar protestos ambientais​. Portugal não está imune a este fenómeno: de ações simbólicas nas ruas de Lisboa a bloqueios de infraestruturas, vários ativistas climáticos portugueses enfrentaram detenções e acusações formais – incluindo multas pesadas – por exercerem o direito à manifestação.

Shopping cart0
There are no products in the cart!
Continue shopping
0