Sempre gostei da escola e tive a sorte de me cruzar com excelentes professoras de português. Em casa faltava dinheiro, mas havia livros e um pai que fazia da leitura (e mais tarde da escrita) a sua frágil tábua de salvação. Talvez por isso, fui bom aluno e gostava de escrever e de obter reconhecimento pela escrita, compondo poemas (alguns horríveis) e redações, mais ou menos grandiloquentes, mas apreciadas, até por mimetizarem alguma da mundividência dos adultos, que tanto me estimulavam. Em casa, a família habituou-se a ouvir-me ler em voz alta o que escrevia, aplaudindo com furor. Os amigos mais velhos das minhas vizinhas (que tinham a minha idade e não ligavam nenhuma aos versos) colocavam-me num banco e incentivam-me à récita excitada dos textos. Os únicos críticos credíveis eram o meu pai, o meu tio e sua mulher de então, a cineasta Noémia Delgado, que me apontavam os lugares-comuns e me incitavam a melhorar. O resto do parentesco profetizava (ainda bem que as profecias falham) um menino-prodígio, encanto de qualquer salão.
Certa vez, escrevi uma crónica sobre a prostituição, como se disso percebesse alguma coisa, virgem que era e confinado ao saber livresco. A Noémia não perdoou e, com bons modos, mas impaciência, advertiu-me para o cenário idílico que ali traçava, romanceando a prostituição como angelical atividade de mulheres ora vitimizadas, ora possuídas de encantos mil, completamente alheado das suas dificuldades concretas, da violência da rua e das pensões sórdidas por onde andavam (felizmente, para uma parte das e dos trabalhadores do sexo, a situação melhorou consideravelmente). Abriam-se as portas para a compreensão da difícil ligação entre a arte e a vida, jogo de espelhos com muitos biombos e sombras pelo meio (quem inventa quem – a arte ou a vida?; amigo, a sua vida pela arte ou a sua arte pela vida?).
Outra ocasião, aproveitando a proximidade com o poeta Manuel António Pina, meu professor de jornalismo no ensino secundário, levei-lhe uns poemas ao Orpheuzinho, café de uma certa tertúlia do Porto. O poeta, que até então sempre fora generoso comigo (franqueando as portas de sua casa, deixando-me folhear os livros, mostrando-me a sua coleção de brinquedos e oferecendo-me serigrafias de pintores seus amigos), não teve desta feita a mesma candura, pois os poemas, além de tresandarem à Mensagem do Pessoa, tinham um erro ortográfico. Levantou-se e foi comigo até ao centro comercial Brasília, a poucos metros do café, onde havia uma livraria que importava livros estrangeiros. Perguntou-me qual era o meu poeta preferido. Respondi-lhe: «António Gedeão». Ele disse-me que o seu era o Eugénio de Andrade, que vivia na Foz, gostava da companhia de gatos e de beber chá com os amigos, coberto com uma mantinha. Ofereceu-me, então, o ABC da literatura, de Ezra Pound. Desde essa altura, passei a comprar todos os livros de capa branca que o Eugénio editava com um ritmo certo e abri-me a muitas outras leituras. Mas continuo a gostar de António Gedeão.
Tentei uma terceira e quarta vez, com o Arnaldo Saraiva e a Ana Luísa Amaral, que me responderam com enorme simpatia e alguma vergonha, pois são meus amigos. Disse-me o Arnaldo: «ouço o mar nos seus poemas», mas nada acrescentou sobre uma possível publicação. Disse-me a Ana Luísa: «João, são tão bonitos os teus poemas». Mas percebi que por ali ficavam.
Poeta falhado, em suma, mas ainda assim reincidente. Creio que foi Borges quem escreveu que, mesmo o poeta menos afortunado pela graça da escrita, terá alguma vez escrito o mais belo verso. Para isso, acrescento, convém ler muito, ter tempo para desprezar a aceleração frenética que nos aliena e abrir as veias da imaginação.
Sabem, ainda procuro esse verso e não sou de desistir.
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.