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Opinião de Marco Mendonça

A viagem – parte 2

A minha mãe vasculhava a sua mala numa busca urgente por duas moedas de mil…

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A minha mãe vasculhava a sua mala numa busca urgente por duas moedas de mil meticais. Em poucos minutos, o autocarro ia arrancar para muito longe daquele lugar sem nome. A minha avó segurava a minha irmã nos braços e eu segurava duas metades de frango de churrasco nas mãos. Fora do autocarro, uma criança da minha idade - seis, sete anos - esperava desesperadamente que a minha mãe lhe pagasse pelo frango. Através do vidro, eu via apenas a sua cabeça rapada, que brilhava com o suor de uma manhã quente e agitada. Do lado de fora das outras janelas, mais crianças tentavam vender peixe frito, amendoins, milho assado, refrigerantes e cerveja. Os passageiros estendiam as mãos pela abertura das janelas e apressavam-se a atirar o dinheiro para a estrada enquanto gritavam os seus pedidos. Ao suor acumulado dos viajantes, juntava-se o cheiro a alho e óleo de palma. Visto que aquela paragem espontânea não passava de um pequeno favor do motorista a um grupo demasiado grande de pessoas esfomeadas, não havia tempo a perder. Assim que ele próprio conseguisse convencer um ou mais passageiros a compensá-lo pela atenção que nos fez, voltaria a pôr o pé no acelerador.

Estávamos a caminho de Pemba, vindos de Mocuba, onde tínhamos passado a noite. O pesadelo tinha acabado, mas esperava-nos ainda uma viagem de dez horas num autocarro sobrelotado, velho, cujo motor fumegante ritmava uma música tosca e bamboleante.

Na noite anterior, tivemos um acidente de carro que resultou num saque quase total dos bens que levávamos para Pemba. Na berma da estrada, esperámos durante algum tempo, talvez uma hora, talvez duas, até vermos finalmente chegar, de máximos ligados, um grande camião de carga. O condutor parou assim que nos viu, a minha mãe com a minha irmã ao colo, a minha avó com um lenço a fazer pressão sobre um corte que tinha no sobrolho, o meu pai de antebraços arranhados dos golpes que deu no pára-brisas, e eu, o narrador irritante, aspirante a cronista, em plena descarga de adrenalina. O plano, rapidamente engendrado pelo meu pai e o viajante desconhecido, era que eu, a minha mãe e irmã fossemos aconchegados na parte de trás da cabine do camião e a minha avó no lugar ao lado do condutor. O meu pai iria dentro do nosso carro, rebocado de maneira improvisada. Não podendo ligar o carro, o meu pai teria de manejar o volante de faróis apagados, guiado apenas pela luz da traseira do camião. De ambos os lados da estrada estreita e esburacada, havia valetas para onde o carro deslizaria facilmente se o meu pai não ajustasse a direção a tempo. Além do perigo de capotar novamente, havia o risco do carro ser arrastado pela valeta sem que o condutor do camião desse conta a tempo de evitar uma tragédia.

Chegados a Mocuba, instalámo-nos num motel. Incomodada com a agitação da família, a minha irmã chorava. A sua chupeta tinha desaparecido no acidente, por isso a minha mãe tentava usar o dedo indicador como um substituto temporário. O meu pai chegou mais tarde ao quarto, e a princípio foi difícil reconhecê-lo. Estava castanho e vermelho da cabeça aos pés, como uma estátua de bronze. Como viera dentro do nosso carro, sem para-brisas, levara com várias camadas de pó levantado pelo camião e lama que salpicara dos buracos na estrada. Depois de o olharmos em silêncio por uns segundos, perguntou porque estranhávamos tanto a sua chegada. A minha mãe - que tal como eu e a minha avó, não tivera oportunidade de se aperceber do seu aspeto antes de chegarmos ao motel - não querendo estragar-lhe a surpresa, sugeriu ao meu pai que se olhasse ao espelho. O seu grito de susto transformou-se instantaneamente numa série de gargalhadas longas. Estávamos finalmente em segurança.

No dia seguinte, seguimos viagem de autocarro até Pemba. O meu pai ficou em Mocuba, à espera que o carro voltasse da oficina, para depois ir ao nosso encontro.

No meio do frenesim gastronómico do autocarro parado, umas horas depois de sairmos de Mocuba, ainda com cinco ou seis horas de caminho pela frente, a minha mãe continuava à procura de algum dinheiro que estivesse perdido no fundo da carteira, cheia de objetos que conseguira recuperar do acidente. Estávamos na última fila e o meu olhar alternava entre o motorista, que dava os últimos goles numa 2M que alguém lhe oferecera, a minha mãe, que revirava a carteira uma e outra vez, e a criança, já sozinha do lado de fora, a observar os braços apressados da minha mãe. Esperava receber por tudo o que conseguira transportar em mãos da sua povoação até àquela estrada. Esperava poder correr de volta a casa, onde entregaria o dinheiro à sua família. Esperava cumprir com a tarefa que lhe tinha sido confiada. Esperava não sofrer as duras consequências de chegar a casa de mãos vazias.

Subitamente, estávamos outra vez em movimento. A criança corria ao lado do autocarro, de lágrimas nos olhos, esticando a mão em direção à nossa janela. A minha avó suspirava, a minha mãe gritava, e eu narrava. Não havia nada a fazer.

-Sobre Marco Mendonça-

Marco Mendonça nasceu em Moçambique, em 1995. É licenciado em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Estreou-se nos The Lisbon Players. Em 2014, começou a trabalhar com a companhia Os Possessos. Estagiou, entre 2015 e 2016, no Teatro Nacional D. Maria II, onde participou em espectáculos de Tiago Rodrigues, João Pedro Vaz, Miguel Fragata e Inês Barahona, entre outros. Em 2017, trabalhou numa criação de Tonan Quito e fez o seu primeiro espectáculo com a companhia Mala Voadora.  Em 2019, estreou-se como autor e co-criador em “Parlamento Elefante”, projeto vencedor da primeira edição da Bolsa Amélia Rey Colaço. Atualmente, integra o elenco de “Sopro” e “Catarina e a beleza de matar fascistas”, de Tiago Rodrigues.

Texto de Marco Mendonça
Fotografia de Joana Correia
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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