Ninguém lê programas eleitorais. Entende-se. Ao invés de manifestos mobilizadores, são meras listagens de intenções, de baixa ou nenhuma qualidade literária. Mas eu li, pelo menos na parte onde referem as propostas para a cultura.
O panorama é desolador. Não existe um único partido que apresente uma visão atualizada do que é a cultura nos nossos dias. Pelo contrário, da extrema-esquerda à extrema-direita todos os programas, sem exceção, são conservadores e tradicionalistas, focando-se sobretudo na defesa do património, banalidades sobre a promoção da criação contemporânea e, com exceção dos mais à direita, propondo um aumento do funcionalismo e da burocracia.
O programa do PS, o partido que está em melhores condições para voltar a governar, elenca as mesmas ideias generalistas seguidas pelos sucessivos ministros da cultura dos seus governos, muito politicamente corretas, mas que na realidade não têm representado o sobressalto que a cultura precisa. Configurado, à maneira do discurso serial, em “seis prioridades fundamentais: a promoção do livro e da leitura; o património cultural; a criação artística; a promoção do cinema e do audiovisual; a descentralização; e a internacionalização”, o PS promete sobretudo continuidade. O que é pouco.
O programa do PSD, o segundo partido com possibilidade de aceder ao governo, não é melhor. Embora, numa linha solta, proponha a “digitalização sistemática das obras musealizadas e dos fundos arquivísticos”, no geral, repete a mesma sucessão de verbos, “preservar e valorizar o legado, promover a criação, potenciar a comunicação e democratizar a fruição”, sem que isso represente uma visão alternativa. Diria mesmo, uma qualquer visão.
O CDS quer mais touradas, o Iniciativa Liberal quer mais mecenato, o Chega não quer nada.
À esquerda do PS a cultura é funcionalista e conservadora. Tanto Bloco como PC, tratam sobretudo dos direitos laborais, o que é legítimo, mas não entram no domínio cultural propriamente dito. A cultura é reduzida a mais um Serviço Público, vista como um apêndice da Educação. O Livre quer “incentivar a digitalização da Cultura”, mas através da RTP, o que não se entende e levanta a suspeita de que não sabem do que falam. O PAN trata o assunto ao nível do rodapé.
Enfim, em 2022 seria de esperar mais. A cultura do nosso tempo define-se pela preponderância das tecnologias digitais em todos os domínios, desde a preservação, arquivo e divulgação do património, quanto na produção contemporânea e na forma como se dissemina. Não se entende como ninguém propõe a urgência óbvia, ou seja, um vasto programa de digitalização de tudo. E, quando refiro tudo, é mesmo tudo, registos, objetos, processos, realizações. Vivendo nós num online permanente, a caminho dos metaversos, a cultura do nosso tempo é na verdade uma cultura digital, tanto na criação quanto na difusão. O que não está digitalizado não existe, ou só existe para um número muito limitado de pessoas. Por isso, o grande projeto cultural do momento, na perspetiva das entidades públicas, e, já agora, das privadas também, deveria ser o de empreender um vasto e ambicioso programa de digitalização. Sem isso, para quem tanto se preocupa com o património e a identidade, não existimos. Por outro lado, a criação contemporânea ou é digital ou é rudimentar, artesanal, separada do mundo real, não cumprindo o principal objetivo da criatividade artística, ou seja, o de ser um motor do conhecimento e da evolução civilizacional. Nestas eleições, nenhum programa partidário o anuncia.
-Sobre Leonel Moura-
Leonel Moura é pioneiro na aplicação da Robótica e da Inteligência Artificial à arte. Desde o princípio do século criou vários robôs pintores. As primeiras pinturas realizadas em 2002 com um braço robótico foram capa da revista do MIT dedicada à Vida Artificial. RAP, Robotic Action Painter, foi criado em 2006 para o Museu de História Natural de Nova Iorque onde se encontra na exposição permanente. Outras obras incluem instalações interativas, pinturas e esculturas de “enxame”, a peça RUR de Karel Capek, estreada em São Paulo em 2010, esculturas em impressão 3D e Realidade Aumentada. É autor de vários textos e livros de reflexão, artística e filosófica, sobre a relação Arte e Ciência e as implicações, culturais e sociais, da Inteligência Artificial. Recentemente, esteve presente nas exposições “Artistes & Robots”, Astana, Cazaquistão, 2017, no Grand Palais, Paris, 2018, na exposição “Cérebro” na Gulbenkian, 2019 e no Museu UCCA de Pequim, 2020. Em 2009 foi nomeado Embaixador Europeu da Criatividade e Inovação pela Comissão Europeia.