“A pirataria configura uma utilização abusiva não autorizada que está próxima de uma relação entre o abuso de confiança e o furto.” É assim que António Paulo Santos, diretor-geral da FEVIP – Associação Portuguesa de Defesa de Obras Audiovisuais, começa por descrever a pirataria digital.
De acordo com António Santos, também presidente da Mapinet – Movimento Cívico Antipirataria na Internet, só em Portugal a indústria do audiovisual “perde, no mínimo, 200 milhões de euros” com a prática da pirataria. Ainda tendo como base a consultora britânica MUSO, só no ano de 2020 Portugal registou mais de 55 milhões de acessos a websites ilegais.


Apesar de a nova Lei n.º 82/2021, que entrou a vigor a 30 de novembro, do ano passado, ter estabelecido os procedimentos de fiscalização, controlo, remoção e impedimento do acesso em ambiente digital a conteúdos protegidos pelos direitos de autor e pelos direitos conexos, esta realidade parece não ter fim, ainda mais com a chegada da pandemia.
Para o diretor-geral da FEVIP, atualmente, existem três níveis de problemas. “Aquilo que chamamos livestream, nomeadamente, as transmissões dos jogos de futebol, que são altamente pirateadas. Depois, temos os filmes e as séries em geral, a música já não tão num grau tão elevado e, por fim, os media.”


Este fenómeno apresenta reflexos “perversos” no ecossistema do audiovisual ao afastar os anunciantes das entidades. A isto, exemplifica. “Na prática se nós tivermos umas centenas de milhares de acessos ilegítimos, e Portugal só em IPTV (Internet Protocol Television) tem mais de 200 mil utilizações e estou a ser conservador. São uns milhares muito grandes de pessoas, são menos contactos. Isto tem reflexos nos anunciantes. As televisões generalistas passam a ter menos anunciantes, e isto apresenta consequências nos orçamentos que se vão refletir na compra de conteúdos. Quem perde no final do dia somos nós todos e a cultura.”
Com isto, refuta a ideia de que não existem lesados na pirataria. “O lesado na pirataria pode ser aquele que escreveu a obra, como pode ser o artista, o técnico do som, a senhora das limpezas, as agências de publicidade, etc. O que me choca mais na pirataria é que não são as classes mais baixas que a fazem, mas sim a classe média. Primeiro, são criminosos e segundo ajudam a tornar este setor da cultura, que representa 3 % do PIB, mais frágil. E um país sem cultura é um país sem alma. Portanto, a pirataria é extremamente gravosa.”
Para António Paulo Santos, o que motiva a pirataria não é o preço, mas sim a “novidade”. “Temos 200 mil pessoas a aceder a IPTV e veem com isso os canais da NOS, da Meo, da Vodafone, dos internacionais e ainda têm acesso a videoclubes, jogos, etc. Portanto, se eu assinar todas as empresas de comunicações, a minha conta mensal nunca é inferior a 100 euros. Mas vamos pôr o valor mais baixo... 200 mil a pagar 30 euros por mês, que é o serviço mais básico, de televisão vezes 12 e veja os números a que chega. Isto peca por defeito.”
Isto “significa menos postos de trabalhos, menos séries, menos condições para os jornais, etc. E, atenção, se nós não protegermos a nossa língua portuguesa corremos o risco de daqui a uns anos só falarmos inglês. E eu também não quero isso porque a nossa identidade cultural é a nossa língua”, alerta.
Com isto, acredita que a pirataria digital se deve às “más atitudes sociais”, à “má ética social” e à “falta de solidariedade social”.
No entanto, mantém a convicção de que com o passar dos anos a questão do preço irá acabar por desaparecer.
“Com a maior oferta o preço tem tendência a baixar. Antigamente, a gente ia ao videoclube pagava 3 euros ou 3,50 euros para ver um filme. Agora, eu tenho acesso a 1000 filmes ou a 10 000 filmes por uma renda por mês de 5 euros. E mais: estas plataformas dão-nos a possibilidade de ter quatro acessos”, explica o diretor da Mapinet.
Para o responsável falta ainda fazer “um grande trabalho de literacia nesta área, de informação, de esclarecimento e um trabalho didático. Por isso, acredito que este é um caminho que se vai fazer e que temos ferramentas que permitem atacar este fenómeno”.


Em igual pé surge-nos Carlos Eugénio, diretor-executivo da Visapress, que resume a pirataria digital como o ato de “ganhar dinheiro com o trabalho dos outros”, em ambiente online.
“O digital tem a particularidade de os utilizadores acreditarem que estão a partilhar algo. Na verdade, não estão a partilhar nada, estão a multiplicar. Porquê? Partilhar significa ficar sem uma parte de um bem. No digital ninguém fica sem nada. Toda a gente fica com o ficheiro original e faz uma cópia que entrega a terceiros. Esse é que é o perigo”, realça o responsável.
Além do mais, “não é preciso ser engenheiro aeronáutico ou aeroespacial para montar um sistema desses e o lucro é muito significativo para a pessoa que faz esse tipo de atuação”, afirma.
Para Carlos Eugénio, o utilizador está sempre disponível para pagar o mínimo possível. “O consumidor vai à procura desse serviço para diminuir a despesa que tem. Não concordo, mas é a lei da oferta e da procura.”
Por exemplo, “o Disney PLUS custa 5 euros por mês; a Netflix, quando entrou no mercado, custava 10 euros por mês e dava para partilhar a conta até cinco pessoas, ou seja, ficava 2,50 euros por pessoa. Portanto, os preços não são assim tão significativos”.


A isto, admite que, nos dias de hoje, não existem consumidores desinformados. “Não posso aceitar que haja pessoas em Portugal que digam que não sabiam que aquele site era ilegal ou que aquela atuação que estavam a tomar era ilegal.”
Quem se demonstra igualmente preocupado com o aumento crescente da pirataria é Rogério Bravo, atual inspetor-chefe da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica da PJ.
Para Rogério, os números atuais revelam “a parte mais visível e objetiva, que são o dano sobre as receitas não realizadas e os impostos não cobrados”. Já na parte social, “a crua demonstração que este tipo de criminalidade não tem grande reprovação social e não faz parte da categoria ética de muitas pessoas, sejam elas singulares ou em termos de empresas”.


No que toca à atuação do papel do Governo nesta matéria, enquanto jurista, acredita que “algumas normas poderiam ser revistas para clarificar o âmbito penal, entre a Lei do Cibercrime e o Código dos Direitos do Autor e Direitos Conexos” e que o “legislador nacional podia ser mais interventivo e autónomo em todas as questões relacionadas com as matérias ciber, porque, se observarmos, tirando um ou outro caso, todos os diplomas legais portugueses constituem, ou uma transposição, ou uma lei de execução”.
Ainda contactada pelo Gerador, a plataforma Netflix admite que, apesar da evolução da “forma como consumimos conteúdo”, já existem estudos que salientam “um declínio” no consumo de conteúdos pirateados. “Isto destaca o trabalho que toda a indústria audiovisual está a fazer para oferecer um amplo catálogo de conteúdos, em alta qualidade e a um preço acessível.”
O olhar de quem vive sob e sem a pirataria
Para André Cardoso, nome fictício, o acesso ao mundo da pirataria digital começou quando tinha apenas 18 anos. Numa fase inicial para jogar e atualmente para ver filmes. “Para mim, é muito fácil sacar um filme através do torrent do que entrar num site, ver quanto custa, se o preço é justo ou não”, justifica.
Além do mais, para o jovem de nacionalidade russa os preços ainda “não são acessíveis a todos”. Por exemplo, “se o filme for bom eu vou ver o filme ao cinema e quem o fez vai receber esse dinheiro na mesma. Mas sem saber qual a review eu não vou pagar um site para ver o filme. Para mim, é esquisito pagar para uma coisa que eu nem sequer sei o que é”, completa.
A isto, admite que já tentou experimentar algumas plataformas de serviço streaming, mas que acabou por as deixar de lado, já que não gostou da experiência. “Lá, muitos filmes não têm língua russa e nós na pirataria temos.”
Assim sendo, confessa que “todo o processo da pirataria é muito mais fácil”.


Numa outra perspetiva aparece-nos Isabel Magalhães, atual utilizadora do serviço streaming, da Netflix, há pelo menos um ano. Admite que na altura o que a motivou a aderir foi o “facto de sabermos que tínhamos muitas séries e filmes disponíveis que não se arranjam facilmente”.
Para Isabel, até ao momento, não existe nenhuma desvantagem com o serviço e o preço é “super acessível”.
“Acho que as pessoas continuam a preferir gastar o mínimo possível até porque o nosso espírito português é assim. Gastar o mínimo possível e usufruir o máximo. Mas está cada vez mais difícil piratear. Mesmo os sites onde antes se fazia constantemente pirataria estão a ser bloqueados e nem há necessidade disso. Há cada vez menos necessidade. Agora as pessoas preferem não pagar, claro”, desabafa.
Com isto, acredita que um dia a pirataria digital “deixará de ter lugar”.