No seu Livro Da Dança, Gonçalo M. Tavares tem uma passagem que nos evoca a ideia de um corpo que massaja a realidade: “Massajar o Corpo com pedaços da Realidade. Massajar a Realidade com Pedaços do Corpo”. Se a realidade muitas vezes nos embate, é também no corpo que deixa as suas marcas. E é através do corpo que essa realidade pode ser traduzida, digerida, massajada e repensada. Foi precisamente sobre as marcas do corpo como instrumento de intervenção que falei com Ana Clara Guerra Marques, diretora artística da Companhia de Dança Contemporânea de Angola. Pioneira da dança contemporânea no país, Ana Clara recorda-nos que a dança deve incomodar, e que a missão da Companhia continuará a ser sempre a mesma: alertar para a necessidade de mudança.
A bailarina, coreógrafa e investigadora iniciou os seus estudos em dança na Academia de Bailado de Luanda, em 1970. Com apenas dezasseis anos, o Ministério da Cultura confia-lhe a direção da única Escola de Dança existente no país. Desde então, Ana Clara luta por um ensino artístico profissional em Angola, combinando os seus esforços na educação com um percurso académico dividido entre África e Europa, e ainda mais de três décadas de trabalho no Ministério da Cultura angolano, onde foi autora das primeiras ações para a criação de um ensino profissional artístico. A fundação da Companhia de Dança Contemporânea de Angola, em 1991, foi o resultado inevitável das fontes de inspiração que foi trazendo de outros lugares do mundo. Trazendo o primeiro contacto do público angolano com a dança contemporânea, a Companhia propõe novas formas e conceitos de espetáculo, dividindo a sua estética entre a intervenção, crítica social e investigação sobre danças patrimoniais angolanas, com maior incidência na cultura cokwe. Hoje, é a única companhia profissional de dança no ativo no país, com programação regular nacional e internacional. A ela se deve um novo olhar sobre a dança angolana e a transformação da estética do movimento.


Gerador: Como era o contexto da dança contemporânea em Angola na década de 1990, no período em que a Companhia de Dança Contemporânea de Angola foi criada?
Ana Clara: Nessa altura, não havia qualquer manifestação de dança cénica em Angola, muito menos de dança contemporânea. A Escola havia fechado e o panorama era dominado pelas danças populares e de inspiração tradicional. O contacto do público com a dança contemporânea era totalmente novo. Embora na Europa e na América a dança contemporânea já estivesse por todo o lado, aqui fui a primeira pessoa a trazê-la. Quando saí do país, também só conhecia a dança clássica russa e a dança moderna cubana e pouco mais, porque aqui não tínhamos acesso a mais nada. Portanto, foi uma janela enorme que se abriu para mim e decidi trazer esse conhecimento. E nada do género havia sido visto em Angola até à criação da Companhia, em dezembro de 1991.
G: Como é que a Companhia foi recebida pelo público angolano? Algo foi mudando ao longo das últimas décadas?
AC: As pessoas reagiram de forma bastante distinta. De repente, aparece uma nova proposta em que o corpo contava as histórias de uma outra maneira. Muitos achavam aquela forma de mexer um bocado grotesca, era tudo muito metafórico e as pessoas não estavam preparadas. Mas havia ao mesmo tempo um público jovem que gostava, que se identificava com as mensagens que passávamos. Naturalmente, as coisas foram mudando. Mas, às vezes, tenho a impressão de que a resistência ao progresso nas áreas das artes é cada vez maior. Temos público, mas temos dirigentes que não possuem o mínimo de sensibilidade ou conhecimento sobre estas linguagens, encarando as artes apenas como entretenimento. Continuamos sem uma formação profissional de qualidade em Angola. Ou seja, não conseguimos evoluir como gostaríamos, pois sozinhos não temos poder para mudar.
Apesar de tudo, mantemos a mesma missão desde o início: olhar para as coisas de uma forma crítica. Portanto, a nossa companhia é muito incómoda. Mas, para mim, a arte não é entretenimento. Acho que a arte tem mesmo que dar propostas para pôr as pessoas a pensar, para provocar a mudança. Não queremos fazer arte para entreter, para pôr as pessoas a descansar. Eu quero é que as pessoas não descansem!
Mas voltando ao público... O público existe e adere. E é bastante diverso. Nós continuamos a ser a única companhia profissional de dança contemporânea com atividade regular em Angola. Por isso, uma só companhia a fazer trabalho de sensibilização para a dança contemporânea é difícil. Mesmo assim, fazemos sempre as nossas temporadas, vamos todos os anos ao estrangeiro. Não apresentamos muito em Angola além de Luanda pois não temos meios e apoios - o trabalho que fazemos é o trabalho possível.


G: Podemos considerar que a CDCA foi pioneira na definição da estética da dança contemporânea em Angola Como tem sido o processo de criar uma linguagem de movimento nova, inspirada na raiz tradicional e popular?
AC: Os nossos processos criativos são sempre distintos e nem sempre seguem os mesmos caminhos. Já que a CDC Angola tem de formar os seus próprios bailarinos, que nos chegam já em idade adulta, trabalhamos muito com base naquilo que cada corpo pode dar ao tema a desenvolver. Criamos assim linguagens que vão dos movimentos pessoais aos movimentos culturais encerrados em cada um de nós. Assim que comecei a trabalhar com o atual elenco da companhia, percebi de imediato que tinha que receber o que eles me traziam e o que me podiam dar. Confesso que foi um desafio inicialmente, ter que negociar o movimento deles com as minhas propostas. Todos têm uma forma de se mover que eu respeito, e não queria impor nada que não lhes seja natural. Neste momento, não estou tão preocupada em criar uma estética definida. Preocupo-me em falar através do espetáculo, e por isso presto mais atenção à qualidade do movimento - se é mais fluído, mais pesado... Isto tem-nos conduzido a propostas muito interessantes e originais, já que cada um de nós é um universo motor. Claro que os aspetos estéticos da dança contemporânea estão sempre presentes e os bailarinos adquiriram, entretanto, uma sólida preparação técnica.
G: Qual o impacto da Companhia no contexto da dança contemporânea no continente africano?
AC: Infelizmente, não é o continente para onde viajamos mais, uma vez que não estamos ligados por via aérea direta para a maioria dos países africanos. No entanto, somos muito bem recebidos naqueles onde temos ido. Also que surpreende sempre é o nível técnico dos bailarinos da nossa companhia. Há pouco tempo, estive num festival internacional de dança no Burquina Faso, onde mostrei um documentário retrospetivo sobre o trabalho da companhia. Havia pessoas de todas as nacionalidades e muitos bailarinos africanos. Todos se emocionaram ao ver as imagens!


G: Como é que a Companhia tem sido recebida internacionalmente? Considera que abrem portas ao público para compreender melhor o contexto angolano?
AC: A companhia tem sido muitíssimo bem recebida. Sempre que vamos a outros países, as pessoas costumam aplaudir-nos de pé, manifestam-se efusivamente. Quando fomos ao Brasil, fizemos dois espetáculos de sala cheia - e, na segunda data, a fila para assistir à companhia dava a volta ao quarteirão e metade das pessoas não conseguiram bilhete. Em Cuba, tivemos uma crítica muito favorável de uma crítica especializada em dança e artes cénicas. Estivemos também na Expo em Xangai com um público não se levantou dos lugares mesmo após o fim do espetáculo. Eu acho que as pessoas gostam mesmo. O que eu acho é que não têm a mínima noção do que passamos para chegar àquele produto final. As pessoas não sabem o que se passa em Angola e acham que aqui as coisas estão resolvidas como nos países europeus, por exemplo. Não sabem que não temos água, nem luz, nem transportes, nem dinheiro para produzir e pagar de forma justa a todos os que se envolvem no trabalho da companhia. Por outro lado, achamos importante que a CDC contribua para dar uma boa imagem de Angola no estrangeiro pois a fama do nosso país pouco tem ido além da fome e dos escândalos de corrupção.
Os bailarinos da CDC Angola têm muita presença em palco, têm muita força. Lá fora, penso que o público percebe que os bailarinos têm um movimento diferente, um corpo diferente e que a coreografia é inspirada naqueles corpos. É engraçado ver que muitos workshops que fazemos na Europa, os bailarinos vêm-se aflitos para se moverem como os nossos (risos).


G: A dança continua a ser um poderoso instrumento de comunicação e intervenção social?
AC: Nós achamos que sim e essa é a orientação da companhia, que desenvolve esse trabalho com exclusividade. Infelizmente, a maioria das atividades de dança em Angola é amadora e situa-se na esfera do entretenimento. Estou a excluir deste cenário as danças patrimoniais que, obviamente, possuem um contexto muito específico. Mas para mim - e para nós na CDC Angola - a dança é sem dúvida intervenção. É um megafone. Nós nunca preparamos um espetáculo para distrair, mas para incomodar, fazer o público pensar.
Sem uma sala de teatro onde se possa apresentar atualmente, a Companhia de Dança Contemporânea de Angola irá estrear em abril uma nova peça de co-criação entre Ana Clara Guerra Marques e a coreógrafa Irène Tassembédo, do Burquina Faso. Com datas marcadas para a Europa, a companhia espera que este ano traga mais apoios para que visite mais cidades em Angola.
-Sobre Inês Carvalho-
Inês é bailarina e professora, gestora de comunicação cultural e escreve regularmente sobre o que mais gosta: dança. A mente inquieta levou-a a criar a agência de comunicação Diagonal Dance. O corpo inquieto levou-a a dividir o seu tempo entre Portugal e o Reino Unido.