A moral dos outros é como uma lâmina afiada apontada à tua garganta. Nunca se engana, não conhece a dúvida, sabe sempre como prosseguir. Obriga-te a falares com maneiras, a vestires o fato de acordo com a ocasião, a dançares com cerimónia e ritual. Impede-te de te suicidares, de fazeres um aborto, de pedires eutanásia, de seres sodomita ou de desafiares a existência dos deuses. O teu corpo não te pertence, é um dom que não podes usar, evitarás “a exuberância das carnes”. Sendo uma moral particular – e que beneficia interesses bem localizados – serve-se à mesa como iguaria universal: de todos para todos, com fel e bílis. Por isso, brinca às escondidas, joga nos bastidores, raramente mostra a (medonha) cara. O seu biombo é o interesse geral, o bem de todos ou a preservação dos valores sagrados. Quem a violar estará a vilipendiar a própria sociedade. Quem experimenta, questiona ou aponta o dedo deverá perecer ou ser silenciado, pois quebrou o interdito do medo. Passar “à prática todas as possibilidades do corpo” valeu a Zenão o anátema de pecador de “negros prazeres”[1]. Bruxas morreram nas fogueiras. Mulheres agonizaram nos quartos escuros. Encheram-se as prisões, os internatos e os hospitais psiquiátricos.
A moral dos outros diz que as crianças não podem cantar à mesa nem interromper os adultos. Diz-te para não bateres palmas entre andamentos, nem para te emocionares ao ponto de gritares. Recomenda-te prudência e respeitinho. A moral dos outros trata as pessoas importantes por “Professor Doutor” ou “Excelência” e banha-se todos os dias nos brandos costumes. É tão asseadinha, a moral dos outros. Nunca mostra as cuecas, como os impudicos “bonecos” de Paula Rego.
Observa. Os novos “manuais de civilidade” estão um pouco por todo lado e prescrevem-te obediência e moderação em doses regulares em casa, na rua e no trabalho. Bons modos e bom gosto. Cortesia e autocontrole. Civilização, em suma. Mas o que é a “civilização” senão esse garrote que te coloniza à moral dos outros?
Prometeu roubou o fogo aos deuses e ofereceu-o aos mortais.
Álvaro de Campos escreveu:
“Estou farto de semi-deuses!
Onde é que há gente no mundo?”
Gente: suja, insolente, sem maneiras. Dona do verbo e da pergunta.
[1] Personagem do magnífico livro A Obra ao Negro, de Marguerite Yourcenar
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.