Em 18 de agosto de 1969 aconteceu o icónico festival de música de Woodstock, famoso por diversos motivos.
Um dos menos conhecidos é que teria sido planeado para durar três dias, mas como no final do último dia a malta não debandava (estariam todos um bocado “anestesiados”) houve necessidade de arranjar mais música para o quarto dia.
E não é que o último artista a atuar e a mandar embora aquelas melgas todas para casa foi o grande Jimi Hendrix? Só por isso já mereceria estátua.
Quem lá esteve - por entre os “fumos” da lembrança difusa – achará que foi tudo uma grande e boa “caldeirada”.
Recorro a um dos meus livros essenciais - “Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas de José João Almeida” – para referir que ali “caldeirada” se define como uma situação anárquica e de muita confusão.
Terá sido o espelho do que se passou por aqueles dias de 1969 naquela quinta de gado leiteiro do Sr. Max Yasgur (pobres vacas, que o leite nunca mais foi o mesmo) ao lado da vila de Woodstock.
Enfim, tudo isto é pretexto para falar aqui da receita de “caldeirada”.
Das que se comem.
Uma Caldeirada de Peixe, não das outras que também se comem, mas não levam barbatanas. E mesmo das que têm barbatanas não falarei das de bacalhau, nem das que são feitas com peixes de rio, ou ainda das típicas da Murtosa, com enguias.
Esta caldeirada é feita com peixe fresco de mar. Receita que aprendi com alguns mestres da cozinha, embora - como bons artistas que variam a performance conforme a audiência - às vezes faziam uma puxadinha (refogado), das outras vezes metiam tudo no tacho em cru, "dependendo dos peixes” (isso ainda compreendo) e "da companhia que estava sentada à mesa” (isso é que é um mistério…)
O termo “caldeirada” deve vir de "caldeiro”, a antiga panela de ferro onde se cozinhava. E a génese da receita tem a ver com a atividade piscatória.
Os pescadores saíam para a faina e tinham que comer a bordo. Levariam alhos, cebolas, algumas boas batatas, tomate e o resto seria dado pelo mar.
Ainda hoje existe a mania que uma boa caldeirada "à pescador" deve ser feita com água do mar. Não acreditem nisso!
Com a poluição ao pé da praia teríamos que ir para o limite das 200 milhas náuticas para recolher água limpa salgada...
Na dúvida tire-se mas é a águazinha da torneira e ponha-se-lhe sal.
O tacho tem de ser de fundo espesso, preferencialmente de ferro ou de alumínio fundido.
No fundo colocam-se sempre ameijoas ou berbigão com as cascas, para que o leve guisado não pegue. Por cima deles a cebola velha, pimentos verdes, tomate maduro e alhos picados grosseiramente. Azeite, sal, pimenta e salsa. Uma malagueta desfeita para quem aprecia.
As quantidades do tempero são a gosto. Normalmente e em relação ao sal (que é o mais importante) deita-se uma mão-cheia num tacho grande.
Estando o tacho neste preparo, das duas uma: ou refoga-se, introduzindo a meio da puxada o vinho branco (ou moscatel), e só depois o resto dos ingredientes, ou faz-se tudo em cru, às camadas alternadas.
Num caso ou no outro é a teoria das camadas que prevalece. Mas esta teoria é científica, como veremos.
Se preferimos a caldeirada com molho grosso e a batata meia desfeita, esta deve ser posta por baixo e começamos a cozinhar sem o peixe por uns 15 minutos.
Se apreciamos a batata mais rija então colocamos tudo ao mesmo tempo: camada de batata, camada de peixe (os mais rijos em baixo), intercalando com pimento e tomate e terminando sempre com duas gordas sardinhas para dar gosto.
Peixes e moluscos que entram obriatoriamente: pata roxa, safio de posta aberta, lulas. Peixes de que mais gosto para juntar a esses: corvina e tamboril (com os fígados postos por cima).
As lulas frescas por baixo, tamboril por cima e o resto mais ou menos "ao molho", respeitando a teoria das camadas e terminando com as sardinhas e o fígado do tamboril.
Tempo de lume quando se faz tudo em cru: cerca de uma hora nos fogões das nossas casas, começando com o fogo espevitado e acabando a nossa faina a apurar lentamente. Nunca mexemos com colher, mas abanamos de vez em quando o tacho.
E provamos para ver como está o sal e o picante, tendo em atenção que o odor forte tem influência no paladar.
O vinho para a caldeirada tanto pode ser branco como tinto.
Se lhes apetecer um branco, seja ele gordo, estagiado, branco "de Inverno". Qualquer bom Dão de Encruzado vai às mil maravilhas. Ou então um Bairrada, Luis Pato Vinha Formal, por exemplo. E porque não um Alvarinho? Soalheiro Primeiras Vinhas é excelente. Para tintos escolham-se os novos e adstringentes. Bairrada de novo, Quinta da Dona, Casa de Saima, feitos sem desengaço - vinhos com viço e taninos.
-Sobre Manuel Luar-
Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.