Com 26 anos, sem se limitar a uma só ocupação, Nuna recorre à sua criatividade para resistir às desigualdades com as quais se vai cruzando. Apesar de já ter escrito profissionalmente para o teatro e na academia, a literatura infantil era o seu maior sonho. “[Quando criança] eu agarrava nos lápis de cor, pintava por cima das personagens e criava os meus mundos, para eu também estar colorida e, finalmente, fazer parte”, diz, em videochamada com o Gerador.
A escritora conta-nos que, mesmo adulta, está atenta aos lançamentos e lê cerca de mil publicações do género por ano, admitindo a sua paixão como consequência do acolhimento que encontrou nos livros durante a sua desafiante fase escolar. Por ser disléxica, ter dispraxia e discalculia, o que define como um trio “aniquilador” no ensino, e não encontrar apoio no sistema de educação, Nuna devorava os livros de imagem com mais facilidade.
“Não via escritores negros em Portugal, não via diversidade em Portugal e [ainda havia] a minha dislexia. Parecia um universo impossível de faz de conta dentro do meu quarto e dos meus cadernos”, relata, sobre a falta de representatividade no contexto nacional e as opressões sociais – o capacitismo, o racismo e o machismo –, que muitas vezes foram um travão para os seus objetivos. Este ano, no entanto, Nuna apresentou a Aventureira Marielle ao público com o intuito de mudar o cenário.
Em três meses, num feito raro na história da literatura infantil em Portugal, “Aventureira Marielle e o Dia da Fotografia” já tem uma segunda edição prevista, além de uma continuação em formato de saga confirmada. Ao longo da conversa sobre o mundo que agora chega às livrarias, Nuna fala-nos sobre as suas influências, o sentimento de pertença e a coragem de ser melhor.


Gerador (G.) – Em que momento decides que o teu sonho não pode mais ser posto de lado e que é a hora de escrever um livro?
Nuna (N.) – Quando Marley Dias, uma rapariga americana com descendência cabo-verdiana, fez a lista de mil livros infantis com raparigas negras como protagonistas, isso inspirou-me muito. Comecei a ver o que ela está a fazer nos Estados Unidos e o que, noutros sítios da Europa, estão a fazer à volta de diversidade – há países que estão a dez anos-luz de Portugal. Vi cada vez mais livros serem publicados e conheci o movimento #ownvoices, [que defende as] nossas próprias vozes, porque, muitas vezes, os poucos livros de pessoas racializadas eram escritos por pessoas brancas e nunca sequer podíamos contar as nossas histórias. Percebi que todo aquele universo que vivia dentro do meu quarto e dos meus cadernos estava a ser feito por outros lá fora.
No verão de 2020, depois de todas as coisas que tinham acontecido no mundo e em Portugal, eu senti que não dava mais e que todas aquelas histórias tinham de começar a sair da gaveta e explodir para o mundo. Foi aí que eu escrevi o livro. Sempre foi um dos meus maiores sonhos, mas o mundo à minha volta sempre me disse que só podiam ser sonhos. Hoje eu penso que tudo pode ser, e é, uma realidade.
G. – O que achas que é mais desafiante no processo de comunicar às crianças?
N. – Depende muito da personalidade [do autor]. Como eu nunca parei de ler livros infantis, essa linguagem continua presente na minha mentalidade. O universo de livros que eu estive sempre à procura e hoje consumo já tem uma linguagem de inclusão, diversidade e empoderamento, e a forma do que eu gostaria de escrever foi sempre evoluindo com aquilo que eu lia, então nunca houve muito este choque.
Isso de fazer uma linguagem acessível às crianças foi das coisas que, antes de ter começado a escrever a Marielle, eu pensei que ia ser um choque brutal, mas foi a coisa menos difícil. É muito importante perceber que as crianças não são tolinhas e conseguem compreender muito mais coisas do que nós pensamos. Elas não são simplesmente uma imagem dos pais ou um fantoche dos adultos, também são pessoas com autonomia, ainda que em crescimento, consoante a idade. Às vezes, simplificar é difícil e o que nós não somos capazes de fazer com os adultos, mas a verdade é que o mais difícil é ter coragem. Se nós não temos certas conversas com os adultos, é muito importante tê-las logo nas primeiras idades, para, depois, quando estas crianças forem adultas, a coragem já estar instaurada.


G. – Consideras, então, que o teu livro também é válido para os adultos?
N. – Sim, completamente. Uma das coisas que eu senti, que foi uma surpresa, foi a quantidade de pessoas adultas que compraram o livro. Muitos pessoas com crianças nas suas vidas, claro, foram comprar, mas também muitos adultos, que também tinham estes sonhos, que nunca se viam representados nos desenhos animados, nos livros, nos jogos e que tinham essa sensação de não pertença e de minimização de existência.
Quando eu estava a escrever, eu tinha este bichinho lá atrás, de que é um livro para crianças, mas também para a nossa criança interior e para as crianças que uma vez foram a nossa realidade, que não tiveram direito a esta diversidade. Hoje, como adultos, temos o direito de ser amados, de ler este tipo de histórias e de ter algo que não vai sarar a ferida – porque esse momento da vida já foi – mas que dá este conforto no presente.
Voltando àquela questão da simplicidade, às vezes, quando as coisas são simplificadas para as crianças, é mais fácil elas serem introduzidas com os adultos. Talvez, se fosse um livro de adulto, não haveria tanta liberdade ou tanta disponibilidade para estas conversas assim, tão direto ao assunto. A partir do momento em que o livro é infantil, quase que voltamos a um ensinamento que não houve na infância, mas que está pronto a ser recebido.
G. – Se não a linguagem, qual foi o maior desafio durante a criação da Marielle?
N. – Se calhar, a questão de passar pela primeira experiência de edição de um livro. O livro era muito maior e foi muito comido, o que doeu muito, na altura. Tu queres todos os detalhes, nem que seja "havia uma moeda no chão", e eu não estava à espera daqueles golpes de samurai que aconteceram. Mas, na verdade, fica melhor assim, porque as pessoas que editam têm muito mais visão, é o trabalho delas.


G. – O que o marco de publicar o primeiro livro infantil português escrito e protagonizado por uma mulher negra portuguesa significa para ti?
N. – É muito importante esta conversa começar a acontecer. Temos de ser muito específicas no que dizemos que este livro é o primeiro, pelo facto de eliminarem palavras por não perceberem as diferentes camadas de multiplicidade das pessoas. Uma pessoa pode ser negra, mas não significa que seja negra portuguesa. As questões de nacionalidade e etnia são muito importantes. Já há vários livros com as personagens negras, mas africanas; ou que, mesmo com a história passada em Portugal, não se está a referir que [a personagem] é portuguesa; ou até é portuguesa, mas escrita por pessoas brancas. Para as questões de pertença, ser negra portuguesa é diferente do que ser negra cabo-verdiana, negra angolana ou negra luso-brasileira. Foi uma escolha específica, porque nós não falamos da realidade de ser negro português, de crescer negro em Portugal. Estou a ocupar o espaço de fala que eu quero e as histórias estão a ser contadas da forma que precisam ser contadas.
Fui específica em todo o mundo que eu criei para ser a realidade de cá. Eu tive livros onde havia personagens principais negras – felizmente, a minha mãe, na [minha] infância, procurou dar alguma da representatividade que se encontrava na altura, que não era muita – mas, por exemplo, era um livro brasileiro, africano, britânico ou americano. Ver as ruas de Brooklyn não é a mesma coisa que ver a calçada portuguesa e ver a Chinatown de Londres não é a mesma coisa do que ver uma paragem da CP.
A opressão, o silenciamento, o lusotropicalismo, a normalização do bom racista, do bom colonizador, do país acolhedor que nos tolera em vez de respeitar – era isto que eu tinha que, em honra de mim própria, da minha infância, do meu presente e do meu futuro, começar a desconstruir. Fazer história neste sentido é, por um lado, incrível e o que eu sempre sonhei, mas, por outro lado, [estamos] 2022 e eu ainda estou a fazer história. Isso já fala de tudo o que é Portugal, da romantização da racialização e do racismo estrutural neste país.
G. – Uma vez que já tinhas o livro escrito, ainda enfrentaste algo que te impedia de seguir com a ideia?
N. – Tive a coragem de escrever o livro, mas eu estava com muito medo de ouvir um não. Durante a minha vida, muitas vezes, eu não apostei em certas coisas, não fiz certas audições como atriz, não escrevi o livro mais cedo, não me candidatei a certos trabalhos como dramaturga ou retirei o meu trabalho de ativista com medo do não, algo que eu tento sempre combater.
Sempre quis que o meu livro fosse publicado pela Penguin, mas parecia muito inatingível, tipo cozinhar um suflê que não vá abaixo, impossível (risos). Eu estava a ver como é que podia fazer self-publishing e fiz uma lista de editoras em Portugal a quem eu podia enviar, mas nem sequer pus a Penguin. Escrevi o livro em julho de 2020 e decidi pôr dentro da gaveta dos sonhos outra vez.
Em janeiro de 2021, com aquela cena "ano novo, vida nova", que eu gosto muito, como escorpiana dramática e intensa, eu estava a ganhar coragem, mas ainda não estava a ir. Até que, em fevereiro, a Penguin entrou em contato comigo para escrever um livro. Eu disse "tenho este livro infantil, antes de qualquer outra coisa que possamos fazer, que tem de ser publicado em Portugal, é a hora". Enfim, Penguin, o que eu penso? Espaços brancos, limitação de conhecimento de diversidade, de inclusão, de empoderamento, de tudo e mais alguma coisa. Quando não se tem a voz lá dentro, fica muito difícil [combater] o racismo institucional estrutural e o mercado editorial extremamente racista e limitado. A minha fala não é vamos dar as mãos e somos todos iguais – não há tempo para isso ou então não avançamos daqui –, nem sequer faço isso no livro infantil, então a proposta foi para toda a equipa e eu estava muito sem saber se ia dar certo. Finalmente, quando veio o positivo de que tinham adorado o meu livro, foi das coisas mais surreais.
G. – A ilustração, no teu livro, é uma parte muito relevante da narrativa. Também já sabias quem o ia ilustrar?
N. – Não, isso foi depois da fase de edição e eu fiz uma open call. Entretanto, eu participei numa palestra da qual Lala Berekai também fazia parte e eu fiquei a conhecer o seu trabalho. Quando eu vi as ilustrações de Lala foi completamente “this is it”. A decisão final foi ao ver uma ilustração que elu fez, com tanto amor, da mãe delu, um trabalho de amor que realmente mostrava o melhor que poderia lá estar presente. Lala é luso-timorense, portanto também há aqui questões de diáspora e de racialização, e elu, desde o início, estava super entusiasmade de fazer parte do projeto.
Eu sabia que o meu livro ia ser publicado algum dia, sabia que ia ser saga e que queria falar de diferentes temas, e isso influenciou muito a forma como eu construí as personagens. Mesmo que não tenham aparecido neste livro, eu já tenho desenhadas uma data de crianças, os pais, o estilo de cada uma, a personalidade, a etnia, nacionalidade, grupo cultural, religioso, etc., também para ter bem definidas as características de cada personagem para as crianças e não ser confuso. Procurei ter a maior diversidade possível. Para mim era muito importante, por exemplo, ter uma professora negra com rastas, sendo as rastas ainda consideradas um cabelo sujo e levar a tantos tipos de opressão. Devido a já ter pensado na localização das outras histórias, já sabia como a aldeia, a Vila Esperança, devia estar montada – ter a escola ali, a praia aqui, etc. Ilustrei tudo e defini toda a liberdade que Lala poderia ter.
No processo, estivemos lado a lado. Se se tirou, por exemplo, um monólogo, uma frase ou uma descrição, pensámos em como adicionar isto ou se guardávamos para outro livro. Há muita coisa que esses livros não têm ou não falam, mas que nós já sabemos, em termos de maquete. Na minha cabeça, já há bastantes livros à frente e já sei os próximos temas.


G. – E porquê a escolha de começar pela discriminação ligada ao cabelo?
N. – Eu estive algum tempo a decidir qual seria a primeira história. Primeiro, eu fiz uma lista gigante de todos os temas que eu queria, depois reduzi para os primeiros dez, depois para os primeiros cinco e, por fim, para os três.
O cabelo é uma coisa que muita gente tem e é bastante visível. É algo tão simples e, no entanto, que sofre de tanta opressão. Se eu queria, ao longo do meu processo de trabalho e da minha carreira, ter esta simplificação e exposição de opressão, fazia todo o sentido começar por algo como o cabelo, que nós vemos, cheiramos e sentimos diariamente. O racismo é bastante complexo e o texturismo é mais palpável, de forma literal e simbólica. Dentro de todas estas questões interseccionais, de ser negra e ser rapariga, algo que impacta de uma forma muito mais forte as raparigas e as mulheres negras é o cabelo – além do colorismo, que é muito mais complexo de explicar e mais pesado, normalmente. Antes de qualquer outro tema, para começarmos esta simplificação de compreender o ódio e depois combatê-lo com amor, quis fazer uma ode e um voto de amor, uma homenagem a ser criança, a ser rapariga e mulher negra.
G. – O nome da personagem tem que ver com a ativista brasileira Marielle Franco?
N. – Claro. O Brasil tem uma influência muito grande na minha vida e informa muito o meu trabalho, principalmente como atriz, ativista e revisionista. Em termos de ativismo e de empoderamento da mulher negra, Marielle Franco influenciou-me muito ao crescer. Eu gostava, admirava e aprendi muito com o trabalho dela em vida e continuo a aprender hoje. Para mim, Marielle Franco é amor, esperança, visão no futuro e veracidade sobre o passado. Ela é a superação das diversidades: uma mulher, negra, periférica, lésbica – tudo o que não se quer ouvir falar, nem mexer ou ser. Ela desafiava ser por completo em todos os sítios onde ela estava, para que todas as outras mulheres, pessoas não binárias, toda a comunidade queer e todo o brasileiro periférico pudesse ser, estar e pertencer.
No primeiro livro que eu publicasse, ainda que a personagem principal fosse negra portuguesa e escrita por uma negra portuguesa, queria fazer homenagem para um dos meus maiores ídolos. Esta criança é a Aventureira Marielle, ela vai nestas aventuras e a maior de todas é acreditar no amor. Eu quero que ela, as crianças que aí vêm e os adultos que ainda cá estão continuem a beber desta ancestralidade de amor em grupo e em união.
Outra coisa difícil foi conseguir vender o título do livro, porque, para muita gente, não fazia sentido ser aventureira se estamos a falar de texturismo ou de racismo em geral. É uma aventura, neste mundo, lutarmos pelo amor e pela mudança e acreditarmos que podemos ser mais. Ela está nessa aventura que é a vida, uma que pode ser bem melhor se tivermos a coragem de dizer o que a faz bem pior.
G. – E a Vila Esperança existe ou é um lugar onde tudo é melhor?
N. – A Vila Esperança é um lugar fictício. Algo que tem acontecido é o facto das pessoas do Alentejo, da margem sul e do Algarve virem agradecer-me por eu ter feito a vila na zona delas. Eu sei onde a vila é localizada, Lala também sabe e a nossa editora também, só. É muito interessante a forma como as pessoas, principalmente raparigas negras, se leem naquilo e tentam criar aquela realidade, são as questões de pertença. O livro diz que é sul de Portugal, portanto nós sabemos que é para lá da Ponte 25 de Abril, mas a vila não existe.
Também achei interessante dizeres que é um sítio melhor, porque não, é um sítio igual aos outros. Eu queria realmente um Portugal muito Portugal. Não queria Lisboa, por uma questão de descentralização, já que toda a história é em Lisboa, e também não queria ser o diferente que é no Porto. Queria um sítio fictício exatamente para não estar a apontar o dedo a um sítio específico, porque eu posso apontar o dedo a todo o lado, o racismo está de norte a sul e nas ilhas. O nome Vila Esperança vem do tipo de ação que acontece na luta contra as segregações, onde sempre há esperança.


G. – O que nos podes avançar sobre as próximas aventuras de Marielle?
N. – Isto é sempre tão divertido (risos). Eu estou muito melhor agora, mas houve uma altura que alguns colegas do teatro me chamavam de Tom Holland, porque ele é conhecido por dizer todos os spoilers. Eu tenho treinado ao longo dos anos e agora sou uma aliada do silêncio (risos).
Do segundo livro, eu já tenho o título há dois anos e posso dizer que vai chegar no próximo ano. Inicialmente, pensámos ser dois por ano, mas decidimos que era bom dar mais tempo para respirar o primeiro livro de uma saga. [O próximo] terá muita magia – isso já é um spoiler em primeira mão – e vai ser outra energia completamente diferente, que eu queria também introduzir logo. Passa-se, claro, na Vila Esperança, e a Marielle é sempre a personagem principal, mas isso não significa que todas as ações discriminatórias sejam feitas sobre ela. Acho que vai ser muito interessante vermos a Marielle numa consciencialização de tudo à sua volta e não só de si própria – isso já é outro grande spoiler!