Elas pediram-se em casamento. Uma primeiro, nervosa que estava, o anel já fugindo-lhe da mão, a pandemia a assustá-las tanto - qualquer coisa que não se sabia que vinha, e o desejo por isso mais forte de tudo viver. O anel era da avó que um dia o tinha dado para a neta oferecer a quem viesse a amar muito. A outra esperou, foi comprar um anel que fosse bling-bling mas não em demasia. Queria pedir-lhe em noivado de volta. Também ela, nervosa, entre risos, fazendo o ritual da pergunta aguardando o sim.
Demorou tempo até partilharem a ideia com o mundo - estava tudo demasiado de ponta-cabeça para contar notícias boas. Elas foram felizes só com o vislumbre do que poderia vir a ser e com o quanto isso lhes alimentava o romance, o futuro, o sonho. Contaram, na verdade, mais tarde, a muito poucas pessoas, as outras acabaram por saber porque receberam um convite. Mas, entretanto - o choque. Mais do que uma vez depois de dizerem que iam casar, lhes perguntaram: “porquê?”. Outras, imprimindo os seus próprios medos perguntavam se elas tinham a certeza, se já tinham conhecido todas as pessoas que queriam, se sabiam o grande passo que estavam a dar. Que mundo, hã? Para elas o seu gesto não era nada daquilo. Nem sobre o medo, nem sobre o fim de nada, nem sobre os vestidos de noiva, os bouquets, o arroz atirado aos céus. Não era religioso, não era sobre interesses financeiros, nem sobre ser a ordem natural das coisas. Elas espantavam-se com os comentários que seriam incapazes de tecer perante outras pessoas que lhes dessem a mesma notícia.
Será que, sendo elas mulheres, as achavam traidoras da sua comunidade - como se se fossem vender à heteronormatividade? Será que o casamento era visto como coisa burguesa de gente rica que quer partilhar os bens? Ou de gente brega que quer que o paizinho leve a noiva ao altar? Será assim tão ofensiva a ideia? Ou será demasiado romântica? Seriam elas vistas como ingénuas demais? Ou estariam elas fora de moda, perpetuando uma tradição vista como destrutiva e aborrecidamente monogâmica?
Elas amavam-se. Queriam celebrar o verbo com as suas pessoas. Queriam exercer o seu direito, negado por tantos anos, e ainda hoje proibido e punido irremediavelmente em tantos locais do mundo a outros casais como elas. Elas queriam o gesto do amor como a salvação possível, a atitude mais radical, a maior revolução.
Elas vão-se casar e tudo em redor rebenta, tudo estremece. A família, os bichos-filhos, os vizinhos de cima, os fogos aproximando-se, a exaustão tremenda, o coração tremendo. Tentam que o peso que os outros dão à cerimónia não as esmague por completo. Escrevem os seus votos aos bocadinhos, com amor, sabendo que as palavras não chegam. Dizem “te amo” todos os dias e tentam relembrar-se de quem são - as mulheres primeiras que imaginavam tudo e riam.
Há uma parte delas que quer fugir para longe. Outra que fica feliz de proporcionar um dia bonito às pessoas que puderam convidar. Há uma parte delas que tem um pouco de asco às empresas-máquina-manjedoura por trás de cada cadeira, cada bebida, luzinha e bolinho, os IVAs, os transportes e a guerra na Ucrânia que não pára nunca. E é aí que elas querem ainda fugir. Fazer uma hortinha e viver em comunidade, onde os cães, os avós, os amigos e as crianças são uma família só. Onde a partilha é de verdade e com respeito.
Elas vão-se casar e vão precisar dessa comunidade imensa, aprenderam que nada tem que ver com egoísmo, bens materiais, sede de pertença. Elas vão-se casar e sabem do privilégio, sabem mesmo do ridículo, vão precisar de se agarrar com força uma a outra para não perder o que as fez querer casar. Elas vão casar e não há dia em que não pensem que consigo transportam todas as mulheres que se esconderam, que se puniram, que não puderam das as mãos, que não puderam dar um beijo, que nem cartas de amor conseguiram escrever. Consigam transportam as amantes que eram vistas como amigas, as que ainda hoje fogem juntas temendo serem mortas, as que mesmo casadas continuam a ser maltratadas nas maternidades, nos jardins, nos tribunais, nos filmes que se fazem sobre elas. Elas vão casar e querem acreditar que a lei as possa defender aparentemente de algumas situações mas sabem que o que muda é só por dentro delas. E que se alguma vez se apresentarem uma à outra como “a minha mulher” a frase não lhes vai soar bem - elas querem-se uma à outra mas ninguém é de ninguém. Elas não são uma, não pretendem ser. Elas são duas, e nelas tantas histórias dentro.
Desejo-lhes sempre a mesma resistência que têm bravamente tido até agora. Desejo-lhes sempre curiosidade, generosidade, afecto puro. Desejo que tenham por perto quem verdadeiramente as celebra. Que conversem muito uma com a outra sobre tudo, que se deixem deslumbrar, que se admirem mutuamente, que façam a outra crescer. E que continuem a estender-se em direcção aos outros, em direcção ao infinito, em direcção àquela palavra tão temida, tão gozada, tão a última - amor.
-Sobre Sara Carinhas-
Nasceu em Lisboa, em 1987. Estuda com a Professora Polina Klimovitskaya, desde 2009, entre Lisboa, Nova Iorque e Paris. É licenciada em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Estreando-se como actriz em 2003 trabalhou em Teatro com Adriano Luz, Ana Tamen, Beatriz Batarda, Cristina Carvalhal, Fernanda Lapa, Isabel Medina, João Mota, Luís Castro, Marco Martins, Nuno Cardoso, Nuno M. Cardoso, Nuno Carinhas, Olga Roriz, Ricardo Aibéo, e Ricardo Pais. Em 2015 é premiada pela Sociedade Portuguesa de Autores de melhor actriz de teatro, recebe a Menção Honrosa da Associação Portuguesa de Críticos de teatro e o Globo de Ouro de melhor actriz pela sua interpretação em A farsa de Luís Castro (2015). Em cinema trabalhou com os realizados Alberto Seixas Santos, Manoel de Oliveira, Pedro Marques, Rui Simões, Tiago Guedes e Frederico Serra, Valeria Sarmiento, Manuel Mozos, Patrícia Sequeira, João Mário Grilo, entre outros. Foi responsável pela dramaturgia, direcção de casting e direcção de actores do filme Snu de Patrícia Sequeira. Foi distinguida com o prémio Jovem Talento L’Oreal Paris, do Estoril Film Festival, pela sua interpretação no filme Coisa Ruim (2008). Em televisão participou em séries como Mulheres Assim, Madre Paula e 3 Mulheres, tendo sido directora de actores, junto com Cristina Carvalhal, de Terapia, realizada por Patrícia Sequeira. Como encenadora destaca “As Ondas” (2013) a partir da obra homónima de Virginia Woolf, autora a que regressa em “Orlando” (2015), uma co-criação com Victor Hugo Pontes. Em 2019 estreia “Limbo” com sua encenação, espectáculo ainda em digressão pelo país, tendo sido recentemente apresentado em Londres. Assina pela segunda vez o “Ciclo de Leituras Encenadas” no Jardim de Inverno do São Luiz Teatro Municipal.