Escrevi a crónica The U.S. Supreme Court Vomiting the Pátria durante a minha estadia no Pavilhão dos Estados Unidos da América na Bienal de Veneza. Ao lê-la, o meu pai riu-se: estás a aguentar firme a tarefa de zelar pelos Estados Unidos? - mal ele sabia que tocava num ponto sensível: eu sentia-me em constante contradição por os criticar enquanto ali trabalhava.
Respondi-lhe que este era o pavilhão da artista Simone Leigh e que, quando questionada na conferência de imprensa sobre o que significava representar os Estados Unidos, ela dissera “One idea intellectually — that's really important to me — is that we need to get rid of the idea of nationalism if we're going to go forward”. Se ela não representava o nacionalismo do país, quem era eu para me sentir a ele subjugada? - ainda que continuasse a fazer-me uma certa comichão na cabeça.
Nasci numa família de classe média portuguesa e foi neste contexto que aprendi o que são os opostos: o grande e o pequeno, o preto e o branco, a direita e a esquerda. Na escola, ouvi muitas vezes que os opostos são incompatíveis pelo simples facto de serem opostos (como se se tratasse de uma verdade universal): há caixinhas que se misturam e outras que não, disseram-me, ao misturarmos as caixas erradas perdemos o sentido.
Hoje estou ainda envolta neste sistema e por causa dele demorei muito tempo a conseguir escrever sobre Simone Leigh. Leigh - primeira mulher negra a ser apresentada a solo no pavilhão americano - nasceu numa família de classe média de imigrantes jamaicanos e habituou-se, desde nova, a alternar diariamente “between worlds — West Indian, African American, white”, como explica numa entrevista ao New York Times.
Ao contrário de mim, neste outro contexto, a artista não aprendeu o que são opostos, mas antes o que são ambiguidades; mais importante ainda, aprendeu a apreciá-las: “During visits to Jamaica she grasped how colonialism and resistance, rather than contradictory, produced complex, continually renewing, social values and aesthetics. ‘I think like someone from the Caribbean, I like how complicated it is, seeing beauty in something that was horrifying at the same time.’”
Trabalhei durante dois meses na sua exposição Sovereignty (Soberania) e quando lá cheguei sabia muito pouco sobre a artista. O que descobri sobre as suas esculturas descobri-o à medida que fui vendo a forma como os visitantes - dois, três mil por dia - com elas interagiam: aproximavam-se, tocavam-lhes, tiravam fotografias, sorriam e estavam felizes e isso irritava-me.
Irritava-me porque as obras falavam de colonialismo, racismo, feminismo - temas complexos, que eu pensava terem de ser visualmente pesados - e a artista tinha escolhido usar porcelanas brancas, formas arredondadas, rostos tranquilos, salas iluminadas pelo sol para comunicar. Irritava-me que os visitantes olhassem para as esculturas como se fossem apenas algo bonito. Mais que tudo, irritava-me que também eu, por vezes, as visse assim, por não conseguir misturar a caixa do bonito e a caixa do feio e processar que uma obra bonita não tem que ter uma história bonita por detrás.
Os meus nervos só se acalmaram ao descobrir a história da escultura Anonymous. Para a conhecer tive - temos - de recuar até ao ano de 1882: quando Oscar Wilde chegou aos Estados Unidos da América e se fizeram mil caricaturas da sua pessoa.
“Dressed as probably no grown man in the world was ever dressed before”, como reportado pelo New York Times na altura, Wilde pregou The Aesthetic Movement (teoria estética que dita que all art is quite useless e que tudo pode ser belo) pela América do Norte - e fê-la tremer. Como resposta, explica Victoria Dailey no artigo The Wilde Woman and the Sunflower Apostle: Oscar Wilde in the United States, surgiu uma “avalanche of derogatory, disdainful, and satiric images” do poeta.
Porém, “while most of the printed messages are obvious in their attempts at broad humor and satire, many mocked Wilde in ways that today seem unthinkable, especially those that began to emerge portraying him as a black man”. O racismo, homofobia, xenofobia enraizados na sociedade americana levaram a que Wilde fosse retratado como um macaco, como um homem negro, até como uma mulher negra.
Foi a partir desta última imagem, feita por James A. Palmer e intitulada The Wilde Woman of Aiken, que a artista Simone Leigh criou a escultura Anonymous, para nos falar da modelo fotografada, pois Palmer não pretendia apenas insultar Wilde, mas ela também - aliás, todas as mulheres negras: “A viewer in 1882, especially one in Aiken, most likely would have laughed at it, understanding the vicious iconography that portrayed someone as lowly as a black woman as being a part of the Aesthetic Movement”. Usá-la como troça era vê-la como indigna de respeito, despi-la de humanidade.
Anonymous encontra-se imponente (com os seus 184 centímetros) no meio da segunda galeria do pavilhão americano. Ao olhá-la - para a sua expressão pacífica - somos atraídos até ela, e isso era a última coisa que Palmer poderia prever: que ela reuniria em si as condições to be sovereign. Se as reuniu, foi porque Leigh viu beauty in the horrifying e não se limitou a seguir caixinhas do que é, do que foi, do que será mas a misturá-las: “in order to tell the truth, you need to invent what might be missing from the archive, to collapse time, to concern yourself with issues of scale, to formally move things around in a way that reveals something more true than fact”.
Podemos contar uma história e seguir as regras dos opostos: teremos uma única personagem e tudo será como ele a sente e vê - é uma teoria e fica por aí. Na prática, os opostos misturam-se e são compatíveis, as histórias são compostas por muitas personagens e aquilo que uma sente e vê, será diferente do que as outras vêem e sentem e é impossível fazer uma escala indubitável de tudo aquilo que existe. Regermo-nos pelos opostos é estarmos bem com a História que tem sido contada, porque a perspetiva única nos satisfaz e não precisamos de outras.
Para contar o lado de Anonymous, Leigh reconstruiu a História - e a minha visão binária impediu-me de o ver. Eu pensava que não compreendia os visitantes e que não compreendia Leigh, mas na verdade eu só não conseguia reconhecer que Anonymous era alguém por si só: não é, nem deve ser apenas representada, como a personagem secundária que sofre às custas daquela que eu assumi ser a personagem principal.
Queria começar este texto com o final do vídeo Conspiracy de Leigh e Madeleine Hunt-Ehrlich em que a artista queima um modelo, feito de papier-mâché e rafia, da escultura Anonymous e senta-se a vê-lo arder: “the ritual of burning the effigy was therapeutic”: “It gave me so much relief”. Dei muitas voltas a este texto, escrevi-o muitas vezes e acabei por falar do vídeo no final - talvez ainda o mude; não foi uma viagem fácil de digerir e não sei se tenho estômago para isto. Como a Sophia de Mello Breyner Andersen escreveu, e não me sai da cabeça, “Mas por mais bela que seja cada coisa / Tem um monstro em si suspenso[1]”.
[1] Sophia de Mello Breyner Andersen, Poesia (Assírio & Alvim, novembro de 2019)
-Sobre a Noa Brighenti-
Noa Brighenti começou por colecionar conchas e cromos aos 6 anos. Com 9 recitou o seu primeiro poema, teve o seu primeiro amor e deu o seu primeiro concerto no pátio da escola. Fartou-se dos museus aos 13, jurou que nunca mais pintaria aos 14 e quando fez 17 desfez este juramento. Com 20 anos, coleciona gatos e perguntas. Pelo meio, estuda Direito na Faculdade de Direito de Lisboa, anda, pinta e lê. De vez em quando escreve — escreve sempre de pé.