O encontro entre Ophiussa, deusa e rainha que era metade mulher, metade serpente, e Ulisses, a quem foi atribuída a fundação da cidade de Lisboa, é narrado até aos dias de hoje. No entanto, o destaque concedido à perspetiva do herói da Odisseia nesta história, que faz com que “as pessoas que já cá viviam antes de ele chegar não tivessem relevância”, sempre incomodou Samuel F. Pimenta, lê-se na nota de imprensa. Assim, foi no ponto de vista dos “conquistados” que o escritor se decidiu centrar ao escrever este novo romance.
O livro é descrito pelo autor como um “exercício de reflexão sobre os primórdios do patriarcado” e de como “sociedades governadas por mulheres, num tempo em que a humanidade ainda cultuava a Deusa, se tornaram reféns de novos deuses e dos seus heróis”. Em entrevista ao Gerador, Samuel F. Pimenta explica que a procura de diferentes versões e ângulos de histórias constitui um dos seus temas de interesse e tem vindo a explorá-lo nas suas obras.
Através de Ophiussa, o autor apresenta uma versão diferente do mito da fundação da capital e demonstra que a história que é hoje narrada “evidencia a forma como os impérios elevam os seus heróis e reduzem, simplificam e diabolizam os povos conquistados e as terras ocupadas”. Para o escritor, natural de Santarém, as “versões comummente aceites” das mais variadas histórias e mitos, “por norma, só contam a versão de quem venceu” e que, “na maioria das vezes, matou, violou e oprimiu [os vencidos]”.
Apesar de se centrar numa narrativa mitológica do fim da Idade do Bronze, Samuel F. Pimenta acredita que o seu novo romance propõe “uma reflexão sobre o nosso tempo”, na medida em que “olha para os primórdios do patriarcado e do culto dos impérios”, explica o autor. “Foram os deuses masculinos e os seus heróis que usurparam o poder das deusas e das mulheres, violando-as, subjugando-as, matando-as”, reitera, e “as nossas sociedades são herdeiras desse legado de violência e opressão”.
As desigualdades que encontra na sociedade constituem para Pimenta uma fonte de inspiração para as suas obras e Ophiussa não é o primeiro romance em que privilegia versões subalternas de histórias. O artista conta que os livros Os números que venceram os nomes (2015) e Iluminações de Uma Mulher Livre (2017) surgiram, em parte, do desejo de dar destaque às vozes dos oprimidos. “Se a escrita puder, pelo menos, dar testemunho dessas desigualdades, já é bom, e confesso que há nisto uma certa pretensão poética de fazer justiça por essas vozes”, conta.
Samuel F. Pimenta começou a escrever Ophiussa em julho de 2020 e terminou a obra este ano. Ao Gerador, o escritor revela que o seu processo criativo se altera com cada livro que escreve. “Este [livro] teve uma fase intensiva de passar toda a história para o papel e, depois, de melhoramento, cortar, reescrever, quase como um exercício de escultura”, explica.
Sempre acompanhado por música e, de preferência, isolado, o autor dedicou-se também a um profundo trabalho de investigação. “Li textos tão antigos quanto a Odisseia e Ora Maritima, [para] ter um contexto do modo de vida do tempo, perceber como o mito da fundação de Lisboa foi sendo contado e escrito” e de forma a “recuperar alguns dos primeiros nomes do nosso território”, atesta.
A maturação da escrita e o papel social dos artistas
Samuel F. Pimenta escreve desde os dez anos de idade e conta ao Gerador que, desde que escreveu o seu primeiro conto, soube que queria dedicar a sua vida à escrita. “Era uma criança com muita imaginação e começar a escrever foi uma forma de dar corpo a todos os mundos, ideias, personagens e vozes que trazia comigo”, descreve o autor.
Ophiussa é o seu oitavo livro publicado e o artista acredita que a sua escrita “amadureceu” ao longo dos anos, apesar dos temas sobre os quais se debruça terem permanecido os mesmos.“Os temas que me interessam, que me estimulam, mantêm-se, e por isso há um certo fio condutor entre todas as obras, há temas recorrentes”, explica.
Para o autor, a valorização da sua cultura e tradição literária assumem uma grande importância, pois crê que é a partir delas que se expressa. “Ninguém cria a partir do nada e essa é uma noção basilar para mim: com um sentido de ofício, dar continuidade aos fios que outras pessoas começaram a tecer antes de mim”, declara, “são o chão sobre o qual me ergo”.
Sobre o papel do artista na sociedade, Samuel F. Pimenta revê-se na citação atribuída à cantora Nina Simone: “o dever de um artista (…) é refletir os tempos”. Apesar de acreditar ser mais “confortável” e “favorável” distanciar-se dessa tarefa de reflexão, Pimenta não quer ser “um autor alienado” do seu tempo. “Há que dizer o que tem de ser dito”, assevera, “não faria sentido de outra forma”.
A par da literatura, Pimenta dedica-se também à promoção dos direitos LGBTI+, dos direitos humanos e dos direitos da Terra. Para o artista, escrever afigura-se a uma forma de ativismo. “É sobretudo através da escrita que defendo todas essas causas”, conta, “escrever artigos, poemas, contos, romances sobre essas temáticas é outra forma de as tornar visíveis e de ocupar o espaço público”.
O escritor de 32 anos integra também diversas associações e coletivos, como o PEN Clube Português, a Academia Galega da Língua Portuguesa e o coletivoPROMETEU. Em 2012, venceu o Prémio Jovens Criadores (Portugal), ganhou a Comenda Luís Vaz de Camões 2014 (Brasil) e o Prémio Liberdade de Expressão 2014 (Brasil). Em 2015, foi um dos vencedores das Bolsas Jovens Criadores, do Centro Nacional de Cultura e, em 2016, ganhou o IV Prémio Literário Glória de Sant’Anna, com o livro Ágora (2015).
Para o lançamento do novo romance, o escritor espera que os leitores fiquem a conhecer a figura enigmática de Ophiussa e que “se debrucem sobre a ideia de que as versões ‘oficiais’ das histórias que lhes foram narradas não correspondem ipsis verbis à realidade”.
A apresentação da obra, no dia 2 de novembro, vai ser feita pela autora e oradora, Sofia Batalha, e pela atriz Inês Oneto.