fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Para Nan Goldin, a fotografia “perdeu o seu significado”

Fotógrafa e cineasta esteve no Porto para um ciclo retrospetivo, um doutoramento ‘Honoris Causa’ e uma masterclass. Sessões ocorreram no âmbito do festival Multiplex, organizado pela Universidade Lusófona.

Texto de Sofia Craveiro

Fotografia de João Tuna. Cortesia TNSJ

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Seria difícil adivinhar o que se passava no Teatro Nacional São João, se apenas olhássemos o exterior. Excetuando as longas filas à entrada, nada anunciava a presença de Nan Goldin na cidade Invicta.

A consagrada fotógrafa, cineasta e ativista, conhecida pelo trabalho focado na intimidade humana, comunidade LGBTQI+ e a crise do VIH (vírus da imunodeficiência humana) nos anos 80, esteve no Porto, a propósito do festival de cinema Multiplex, organizado pela Universidade Lusófona. Dia 29 de novembro, foi ao “teatro mais bonito que já tinha visto” para dar uma masterclass. Na véspera tinha recebido um doutoramento Honoris Causa, numa cerimónia privada na referida academia. Em paralelo, foram exibidas retrospetivas da sua obra, em sessões no Rivoli.

Mesmo sem muita divulgação, a palavra passou e levou centenas ao teatro que quase não chegava para a assistência. Antes de Nan Goldin pisar o palco, todos os andares do São João efervesciam de ruído ansioso pelo início da masterclass. À espera estavam sobretudo jovens, muitos deles queer, que deixavam transparecer a admiração pela obra crua da artista. “Desde muito novo que o trabalho dela me interessou”, diz o fotógrafo Mário Silva, enquanto aguarda o início da sessão. “É uma referência que eu queria ouvir e presenciar”, acrescenta.

 “Ela é um dos maiores nomes da fotografia, tanto contemporânea como... de sempre e é uma oportunidade incrível, a de a ver, em pessoa”, diz Maria João. “Enquanto fotógrafa, é uma honra brutal poder assistir.”

Fotografia de João Tuna. Cortesia TNSJ

Fragilidade, identidade, intimidade, autenticidade e queerness estão entre os elementos mais referidos quando se questionava o motivo do respeito pelo trabalho de Nan Goldin.

“A força que ela traz e que ela tem, numa certa desinibição e numa assunção das pulsões naturais, animais dos humanos é algo que me interessa muito”, refere o escritor Valter Hugo Mãe, também ele assumidamente expectante na plateia.

Fotografia de João Tuna. Cortesia TNSJ

“Condição humana” em projeção

“Não estava preparada para todos vocês”, disse a artista, ao confessar que a sua ideia do encontro era mais académica e menos pública.

De facto – e indo de encontro a muitas expetativas –, a sessão foi sobretudo retrospetiva. Num palco onde apenas foi colocada uma secretária de madeira, Nan Goldin projetou excertos de alguns dos seus trabalhos mais icónicos. Antes de entrar, fez saber que não iria permitir a captação de quaisquer imagens, além das fotografias oficiais do evento. “Há fotografias que são sensíveis, e eu detesto que as pessoas as publiquem [nas redes sociais]”, explicaria depois. O pedido seria religiosamente respeitado pelo público, que não empunhou qualquer câmara na sua direção. 

Num teatro em silêncio, a fotógrafa foi exibindo alguns dos trabalhos que mais marcaram a sua carreira. Com o tom sereno que a caracteriza, Nan Goldin afirmou uma vez mais a importância do respeito na sua arte, que tem como imperativo a vontade dos retratados. “Não tiro fotografias a pessoas que não querem”, disse.

O carácter pessoal e autobiográfico que imprime ao seu trabalho ficou patente no discurso da artista, que frequentemente destaca a afetividade que tinha para com as pessoas que imortalizou. Nas décadas de 70 e 80, conforme explicou, a máquina fotográfica era como uma “extensão do seu próprio corpo”, estando constantemente a disparar o flash sobre as situações mais inusitadas da sua vida. “Nada disto era preparado, e as pessoas tendem a não acreditar”, conta, enquanto mostra a icónica fotografia, Nan and Brian in Bed, capa da edição em livro da sua mais famosa obra, The Ballad of Sexual Dependency. 

Fotografia de João Tuna. Cortesia TNSJ

Apesar de ser comummente referida como focada na sociedade decadente ou marginal dos anos 80, Nan Goldin rejeita essa descrição. “É difícil ver isto em poucas imagens, mas a ‘Ballad’ não é sobre drogas, sexo, a cena punk, os anos 80 ou a arte… não é sobre nada disso. É sobre a condição humana e o que torna tão difíceis as relações entre as pessoas: a luta entre autonomia e dependência”, sublinhou.

Fruto de um registo incessante do seu quotidiano, a ‘Ballad’ é frequentemente descrita por Nan Goldin como “o diário que deixa as pessoas lerem”. A necessidade de captação de memórias esteve na base deste trabalho que gerou controvérsia, mas que acabou por marcar a fotografia contemporânea. A intenção de partilha estava sempre patente, mas não da mesma forma “vazia” que hoje acontece, conforme explicou. “A outra coisa a relembrar sobre este período é que não havia telemóveis. Não havia internet. As pessoas não andavam por aí a fotografar, a fazer vídeos. Acho que eu era uma das poucas pessoas que estava constantemente a fotografar.”

Coisa que, aliás, diz já quase não fazer atualmente. Nan Goldin não fotografa, pois “muitas das pessoas que eu queria fotografar já não estão cá”. “Já não sinto necessidade de o fazer. Eu não faço coisas a não ser que me sinta compelida a fazê-lo”, disse. Hoje trabalha a partir das imagens do arquivo que construiu. Além disso, conforme explicou ao GERADOR, “a fotografia é algo diferente atualmente. Perdeu o seu significado, na verdade”. Nos últimos tempos diz ter estado completamente focada no filme que foi agora lançado sobre si, All The Beauty and the Bloodshed, de Lara Poitras, que recebeu o Leão de Ouro em Veneza.

Nesta masterclass, Nan Goldin projetou ainda excertos de The Other Side, Sisters Saints and Sibyls, Fire Leap, Schopophilia e Sirens. Mostrou ainda a obra Memory Lost, que diz ser uma das mais importantes. “É a coisa mais ambiciosa que fiz, desde a ‘Ballad’ ”, explicou. “Quis fazer uma peça sobre o aprisionamento do vício. O mundo tinha-se tornado muito estreito para mim quando eu consumia [drogas].” Confessou haver memórias que perdera, facto de que se apercebeu após estar sóbria. Decidiu, então, retratar isso mesmo nesta série de imagens de “sentimentos abstratos”.

A(r)tivismo

Durante muito tempo, Nan Goldin viveu afastada do mundo digital, por sua própria opção. Diz sempre ter tido necessidade de partilhar, mas rejeita a ideia de o fazer de forma superficial. Só recentemente se juntou ao Instagram, rede social que critica por achar que banaliza e esvazia o sentido da imagem. “É o mesmo que um diário da sua vida, mas é tão superficial. Acho que é uma necessidade constante de partilhar e ser visto”, afirmou.

Fotografia de João Tuna. Cortesia TNSJ

Apesar disso, criou uma conta em 2017. Esse foi o ano em que iniciou o grupo ativista P.A.I.N. (Prescription Addiction Intervention Now). Fê-lo após recuperar de uma severa dependência de opioides, que lhe foram inicialmente receitados como analgésicos pós-cirúrgicos. O medicamento, de nome OxyContin, foi lançado em 1995 e amplamente receitado nos Estados Unidos da América. “Era a droga mais limpa que algum dia conheci. No início, 40 miligramas eram fortes demais, mas à medida que o meu hábito crescia, nunca havia [quantidade] suficiente”, refere numa das publicações que fez no Instagram.

Este medicamento, publicitado como remédio para a dor, é altamente viciante, levando os pacientes a quem é receitado a ficar viciados em opioides. Quando deixam de conseguir receitas médicas acabam por procurar os comprimidos no mercado negro ou consumir drogas alternativas como heroína ou fentanil. Foi isso mesmo que aconteceu a Nan Goldin que, ao descobrir que o medicamento foi criado e comercializado pela Perdue Pharma, iniciou o P.A.I.N. Fê-lo para “responsabilizar” a família Sackler, proprietária da farmacêutica, por todas as overdoses e mortes que aconteceram em consequência da dependência de OxyContin. “Quando eu soube do que faziam estas pessoas disse que tinha de fazer alguma coisa, que iria envergonhá-los nos seus museus.”

Daí que as ações de protesto têm, habitualmente, lugar em museus e espaços culturais de renome cujos mecenas são a família Sackler. Uma das ações consistiu em fazer “chover” receitas médicas falsas no conceituado museu Guggenheim, em Nova Iorque. “Chamámos a atenção do mundo, basicamente, para a culpa das empresas farmacêuticas que causaram esta crise de overdoses”, afirmou. "Impactamos a narrativa em torno dos museus e da sua filantropia tóxica”, acrescentou Nan Goldin.

Fotografia de João Tuna. Cortesia TNSJ

Gratidão das pessoas queer

Na fase final da sessão, houve direito a perguntas do público. Nesta altura, ganhou voz a dúvida e a admiração de vários presentes. De entre eles, ouviram-se agradecimentos, vindos de pessoas trans, que quiseram expressar a Nan Goldin a sua gratidão por ter retratado histórias como a sua de forma tão sensível e respeitosa.

“Não o fiz politicamente. Fi-lo porque acho estas pessoas lindas”, disse Nan Goldin. A artista descreveu as fotografias de pessoas trans e queer como algo que fazia para honrar a individualidade de cada uma e elevar as suas particularidades. “As queens adoravam que eu o fizesse”, contou.

Aura Fonseca, jovem trans de 24 anos, foi quem primeiramente questionou Nan Goldin sobre o motivo de fotografar estes corpos em particular. “Estava lá em cima, no terceiro andar, e achei que era bastante urgente descer cá em baixo e falar sobre questões trans”, disse ao GERADOR, após o término da masterclass. “Surgiu-me essa questão, do porquê de ela decidir trabalhar e fotografar pessoas trans, sendo que, nos anos 70, quase ninguém que era cisgénero queria estar sequer associado a essas pessoas.” 

Aura diz quase ter adivinhado o motivo, por calcular que a fotógrafa o tenha feito por afinidade com as pessoas ou talvez empatia, “por serem outsiders da sua família e desta questão de sistema normativo”. A resposta que recebeu confirmou a suspeita e não a desiludiu.

Fotografia de João Tuna. Cortesia TNSJ

Publicidade

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

26 Maio 2025

Um dia na vida de um colecionador de garrafas no maior festival de música do norte da Europa

5 Maio 2025

Raízes urbanas carbonizadas

10 Abril 2025

A IA, a literacia mediática e a próxima geração

7 Abril 2025

Onde a mina rasga a montanha 

3 Março 2025

Onde a mina rasga a montanha

3 Fevereiro 2025

Entre 2000 e 2024 foram criados 163 sindicatos: apenas 18 se filiaram nas grandes centrais

13 Janeiro 2025

Sindicatos: um mundo envelhecido a precisar de rejuvenescimento?

2 Dezembro 2024

“Sociedades paralelas” na Dinamarca: fronteiras imaginárias em renovação

30 Outubro 2024

Ovar Expande: uma viagem da música ao cinema na 5.ª edição do festival

21 Outubro 2024

Doentes de paramiloidose passam a dispor de novo fármaco para travar a perda de autonomia

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Escrita para intérpretes e criadores [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Gestão de livrarias independentes e produção de eventos literários [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Patrimónios Contestados [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Artes Performativas: Estratégias de venda e comunicação de um projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

02 JUNHO 2025

15 anos de casamento igualitário

Em 2010, em Portugal, o casamento perdeu a conotação heteronormativa. A Assembleia da República votou positivamente a proposta de lei que reconheceu as uniões LGBTQI+ como legítimas. O casamento entre pessoas do mesmo género tornou-se legal. A legitimidade trazida pela união civil contribuiu para desmistificar preconceitos e combater a homofobia. Para muitos casais, ainda é uma afirmação política necessária. A luta não está concluída, dizem, já que a discriminação ainda não desapareceu.

12 MAIO 2025

Ativismo climático sob julgamento: repressão legal desafia protestos na Europa e em Portugal

Nos últimos anos, observa-se na Europa uma tendência crescente de criminalização do ativismo climático, com autoridades a recorrerem a novas leis e processos judiciais para travar protestos ambientais​. Portugal não está imune a este fenómeno: de ações simbólicas nas ruas de Lisboa a bloqueios de infraestruturas, vários ativistas climáticos portugueses enfrentaram detenções e acusações formais – incluindo multas pesadas – por exercerem o direito à manifestação.

Shopping cart0
There are no products in the cart!
Continue shopping
0