Ninguém tem menos capacidade de sentir empatia ou solidariedade por vários temas só porque existem assuntos que pesam mais do que outros. É válido que nos associemos mais ou menos a determinados temas. É válido que quando vemos pessoas semelhantes a nós em sofrimento – não comparando com um todo, e preservando a noção do privilégio de cor e classe – exista uma maior tendência a sentirmos uma ansiedade, raiva e um luto mais próximo e mais violento.
Desde muito nova que comecei a interessar-me por literatura feminista, já sem falar de que fiz o meu coming out aos 12 anos. A minha adolescência era muito mais sobre a minha experiência (somos sempre protagonistas da nossa vida) e sobre teoria (académica, maioritariamente).
Fazer parte de uma comunidade (referindo-me aqui à comunidade LGBTQ+) não me retira a possibilidade de ser racista, capacitista ou transfóbica. Também não acho – e isto é uma questão de opinião, que ser lésbica signifique, automaticamente, fazer parte da comunidade. Inevitavelmente, todas as lutas, direitos ou (des)privilégios afetam um todo (de formas diferentes) – mas ainda assim acredito que há algo mais sagrado do que a minha existência ir contra o que os bons costumes e aquilo que a religião dita como “natural”.
Uma comunidade tende a proteger-se – ou então sou só eu e a minha mania de ver poesia em tudo. Uma comunidade é sagrada, por partilhar vitórias e medos no colectivo. Uma comunidade não precisa de ser formada por pessoas apenas iguais entre si – até porque não existem pessoas iguais – mas precisa, sempre, de disponibilidade para ouvir, aprender e abraçar a experiência que, até ali, não conhecia.
Talvez por isso, quando vemos pessoas das nossas comunidades em sofrimento – não comparando com um todo, e preservando a noção de privilégio de cor e classe, repito – existe uma maior tendência a sentirmos uma ansiedade, raiva e um luto mais próximo e mais violento.
Já não consigo contar a quantidade de vezes em que dei por mim a chorar por preocupação por alguém da comunidade LGBTQ+ ter desaparecido, ter-se suicidado ou ter morrido nas mãos do ódio. Estas lutas e estes lutos afetam a minha saúde mental de tal forma que tenho pesadelos e dou por mim a suster a respiração até me lembrar de que preciso de respirar. O corpo fica tenso, o sangue engrossa e o medo bate à porta: truz truz – meio a temer pergunto: quem é? e fico sempre sem resposta.
Existe um sentimento de inutilidade, impossibilidade e incapacidade associado a tantas pessoas que gostaria de proteger. Nesta roda da sorte, em meio pim-pu-ne-ta, ora é uma Gisberta ou uma Marta. Sinas diferentes, marcadas na mão de ninguém, cravadas ainda assim no ódio e na discriminação. Pela Gisberta (e todas as Gisbertas) sinto uma dor imensa e um luto que se luta com gritos sempre mais alto. Já eu – que antes de ser violada ouvi “vou-te mostrar como não és lésbica” – luto com sede vingança. A vingança que sinto nunca está associada à violência física, está sempre associada a exigir justiça por todos os corpos violentados. A vingança que sinto nunca está associada à violência física, está sempre associada a exigir igualdade. A vingança que sinto nunca está associada à violência física, está sempre associada a ocupar todos os espaços para que não exista espaço para que se toque em nenhum corpo mais.
A minha adolescência era muito mais sobre a minha experiência (somos sempre protagonistas da nossa vida) e sobre teoria (académica, maioritariamente) e a minha vida adulta é muito mais sobre as pessoas e menos sobre a teoria (não lhe retirando a sua devida importância). Hoje em dia defendo que a empatia é a chave para a revolução, consciente de que a empatia, por si só, é insuficiente. As revoluções também se fizeram, fazem e irão fazer com corpos contra armas e punhos – arrepio-me enquanto escrevo isto, não é o que desejo. Um, dó, li, tá – quem não está livre, livre não está.
A minha existência é uma extensão de quem lutou antes de mim e de quem luta ao meu lado, expandindo para quem vem lutar depois. Carregamos balas nas costas que nem sequer acertaram em nós. Um destino que foi sempre traçado pela falta de compaixão, solidariedade, igualdade, oportunidade e amor.
Quando existe um crime de ódio (ou a possibilidade de…), quer seja nos Estados Unidos ou em Portugal, parece que a história é sobre nós – sobre cada pessoa da comunidade, sobre cada pessoa amiga, sobre cada pessoa com quem nos cruzamos em marchas ou em fóruns. Nada disto retira o peso de todos os outros crimes. Aquilo que tento aqui reforçar é que a nossa saúde mental está constantemente neste suster a respiração por nos identificarmos e por conhecermos a história de dentro para dentro.
Quem conhece e acompanha a minha escrita sabe que não sou (por norma) a pessoa que vai buscar dados e estatísticas. Adoro quem o faz e valorizo imenso o trabalho colocado numa boa investigação. Acredito, ainda assim, que escrever na primeira pessoa, sobre coisas pouco palpáveis e muito mais sobre coisas muito sentidas, também é crucial e desempenha um papel igualmente activista. Mais do que pertencer a uma comunidade, há algo que todas as pessoas partilham: a vida que acontece dentro delas.
É inimaginável sentir que possam estar pessoas a sentir que são as únicas a experienciar determinadas dores e ansiedades. A minha escrita vai para essas pessoas. A minha escrita vai para a comunidade. A minha escrita é uma homenagem ao que sentimos: ora para o bom, ora para o mau. Sabendo que quando nos batem à porta, existe validade em darmos duas respostas diferentes: ora quero seguir para a luta, ora me quero sentar no luto.
-Sobre Marta Guerreiro-
Marta Guerreiro é formada em Jornalismo com mestrado em Realização. Conta com três livros publicados e vários trabalhos escritos na área do activismo (com foco em saúde mental, feminismo, não-monogamias e questões lgbtq+), assim como com a criação de uma lista de psicólogues lgbtq friendly disponível online.
Acredita que a revolução também se faz através da escrita e que a poesia e a empatia são protagonistas na mudança e na igualdade.
Atualmente está emigrada em Londres onde, além de continuar a escrever, trabalha também com propriedade intelectual e proteção de marcas.