Há duas semanas, voei para Valência sozinha. Viajar a solo era algo que procurava há muito, mas faltava-me a coragem. Apesar de já ter vivido em Londres e Paris, esta ideia continuava a causar-me certa inquietação. No Verão passado, de férias na ilha italiana da Sardenha, na companhia de uma amiga, observei uma turista que jantava. As minhas antenas abandonaram a nossa conversa por uns instantes, e focaram-se nas palavras que ela partilhava com um empregado. Vinha dos Estados Unidos e passava as suas férias de Verão na ilha — sozinha. De longe, admirei-a. Em Fevereiro, decidi fazer o mesmo e esganar a voz que me anunciava uma possível sensação de solidão e tristeza.
A narrativa actual, impulsionada pela indústria do positive thinking (em português, pensamento positivo), que rende cerca de 11 mil milhões de dólares por ano, leva-nos a acreditar que devemos caminhar num sentido em que a felicidade se transforma na grande constante da vida. Embarcarmos nessa narrativa conduz-nos a um processo de auto-sabotagem, já que tentamos cobrar da nossa existência o que ela nunca nos poderá dar. A felicidade, a par de outros estados, é parte integrante da experiência humana; no entanto, como todas as coisas, é temporária. Resta-nos a verdadeira constante da vida: a sobrevivência.
Em Valência, fui feliz. Não houve lugar a tristeza ou solidão. Primeiro, um leitor nunca está verdadeiramente só. Depois, o complexo arquitectónico da Cidade das Artes e das Ciências tomou-me de assalto e a luz que adentrava as ruas estreitas do centro histórico é memorável. O vinho e o marisco de qualidade também lá contribuíram para a minha felicidade, em terras valencianas. O mundo real, no qual cabe a frustração e a tristeza, tinha ficado do outro lado da fronteira. Eu haveria de regressar, mas não tinha pressa. A verdade é que a bolha, na qual caminhava, se furou antes de chegar a Portugal. Quando entrei no metro que me levaria ao aeroporto, às 5 da manhã, os rostos tristes quebraram a minha fantasia, relembrando-me a efemeridade da felicidade e que a tristeza está sempre duas portas ao lado. Durante o percurso de metro, comecei a reflectir sobre o porquê de estarmos tão tristes — ou sermos tão tristes.
É claro que a indústria do positive thinking lucra com a nossa tristeza e propaga-a ainda mais, mas não é a única causa do Zeitgeist. À procura de textos científicos, que justifiquem o porquê de estarmos tão tristes, escrevi Why are we so sad?. Automaticamente, as minhas páginas de pesquisa substituíram a palavra tristes por deprimidos. Ainda que estejam interligados, os conceitos não são intermutáveis. Por isso, seremos tristes ou realmente deprimidos?
A investigadora e professora universitária Jean M. Twenge defende que existem três motivos para este estado de espírito global: as relações humanas e o sentido de comunidade enfraqueceram, fomentando a solidão; o indivíduo está mais focado em determinados objectivos como poder financeiro ou aparência; e as nossas expectativas para a vida e para nós mesmos são demasiado altas e, consequentemente, difíceis de corresponder1. Enquanto lia o artigo, reflectia sobre o facto de que a vivência nos meios urbanos também tem um impacto na nossa saúde mental. Actualmente, um pouco mais da metade da população mundial — 4.2 mil milhões de pessoas — vive em cidades. Vários estudos comprovam que os riscos de depressão, psicose e ansiedade aumentam no contexto cosmopolita2. É, também nas áreas urbanas, que nos sentimos mais sós e, por consequência, mais tristes. Esta solidão está, entre vários factores, relacionada com o elevado custo de vida. Se os encargos são altos e representam uma grande fatia salarial, pouco tempo e dinheiro nos resta para dedicar a esferas da vida que propiciam bem-estar. Apesar destes índices, prevê-se que cerca de 66% da população mundial venha a habitar em áreas urbanas, em 20503.
Esta debilidade financeira afecta especialmente os Millennials e a Generation Z, por isso os indicadores que apontam estas como as gerações mais tristes dos últimos tempos não são surpreendentes. Cerca de 44% dos Millennials afirma ter problemas de saúde mental e os números aumentam para 55% nos mais jovens4. Além da instabilidade económica — que retarda a independência, a aquisição de habitação, a construção de família e que acentua a ansiedade quanto ao futuro — ambas as gerações sofrem as consequências de uma mentalidade de gratificação instantânea, propagada pela educação, pelas redes sociais, e pela tal indústria do positive thinking. Este tipo de mindset conduziu a uma dificuldade em lidar com integrantes básicas da vida como a frustração e a dor e dificultou o desenvolvimento de competências importantes como a própria comunicação e superação. Somos aquilo que, por vezes, apelidamos de inaptos emocionais. Apesar disso, ao contrário das gerações anteriores, tanto os Millennials como a Generation Z reconhecem os benefícios da psicoterapia na saúde mental — mas, como demonstro no meu primeiro romance, Lola, é preciso que se consiga pagá-la.
Um dos fenómenos que tenho observado em ambas as gerações é aquilo a que chamarei de estilização da tristeza. Se as redes sociais são uma das causas para a ansiedade e depressão, transformam-se também em plataformas para o diálogo sobre estas mesmas questões. No Instagram, mas sobretudo no TikTok, é comum encontrarmos conteúdo sobre a tristeza. Não me refiro a profissionais de saúde que têm contas com um elevado número de seguidores, através das quais expõem temas do foro mental; refiro-me a utilizadores comuns e aos chamados influencers. É recorrente deparar-me com selfies ou vídeos de pessoas a chorar e, se esta partilha ocorrer no TikTok, é ainda mais provável que fiquemos a saber a razão que levou às lágrimas. De repente, todos nos tornamos espectadores da tristeza alheia. Parece-me que, em nome da normalização deste sentimento, as novas gerações estão a buscar empatia e a possibilidade de se sentirem menos sós, através da partilha. Parece-me ainda que, no momento da dor, surge uma necessidade de registar. Esse registo é feito, obedecendo às leis da estética das redes sociais. Apesar das lágrimas, a selfie do Instagram é bonita. É tirada de um ângulo que favorece o rosto. E o vídeo do Tiktok? Após a crise de choro, é editado com os melhores filtros e é-lhe adicionado uma música viral, com o intuito de que alcance milhões de visualizações. Será que ao estilizar e embelezar o momento em que estamos tristes é uma forma de o tornarmos menos real e menos nosso? Será que a estilização da tristeza é mais uma forma de nos afastarmos da verdadeira experiência de estar triste? Será que estar triste é bonito? Será que tudo isto é mais uma artimanha humana para nos impedir de mergulhar naquilo que ninguém gosta: a dor? Será que seremos uma população triste, mas nem sabemos estar realmente tristes?
Não sei se aquelas pessoas na carruagem do metro de Valência estavam tristes ou deprimidos. Bem, não me pareciam. A digitalização, a globalização e a urbanização são e serão a nossa realidade. A fragilidade financeira também rege a vida da maioria. Parece-me que está tudo reunido para que continuemos tristes. Nos Estados Unidos, as chamadas mortes de desespero — relacionadas com o abuso de drogas ou suicídio e que são causadas pela escassez de perspectiva social e económica — estão a aumentar. Quer sejamos tristes ou, como indica o Google, deprimidos, é necessário que os serviços de apoio psicológico sejam acessíveis a todos. Com o futuro que se avizinha, só assim poderemos ser um pouco menos tristes.
3 https://matadornetwork.com/life/depressing-science-living-city-brain/
4 https://bangaloremirror.indiatimes.com/opinion/you/the-sad-generation/articleshow/94770195.cms
-Sobre Cátia Vieira-
Cátia Vieira diz que não tem ídolos, mas chorou quando o Leonard Cohen e a Joan Didion morreram - e até sabe o mapa astral deles. Também diz que não é grande fã de pessoas, mas não pára de ler livros que esmiuçam a mente humana. Por isso, é que estudou Estudos Portugueses e frequentou o Doutoramento em Modernidades Comparadas, na Universidade do Minho. Como se já não lesse muito (o T1 está a ficar pequeno para as gatas e livros), também escreve. Lola, o seu primeiro romance, foi publicado em 2021, pela Penguin Random House, e encontra-se, neste momento, a escrever a sua segunda obra. À noite, dá-lhe para escrever poesia. Também trabalha como directora criativa na Selafano e fundou a Alma Interior Design Studio, uma marca de design de interiores. Vive em Braga e publica as suas leituras e ideias sobre a vida e o mundo em @catiavra.