A Maria viu um anúncio de emprego e, apesar de não ter as qualificações académicas pretendidas, conta com uma larga experiência no ramo e decidiu candidatar-se. Já a Soraia está há menos tempo no mercado, mas tem no currículo o diploma indicado pela empresa que está a contratar. Qual destas conseguirá o lugar que está disponível? E se a Maria e Soraia até já trabalharem as duas na empresa, mas a primeira há mais tempo e sem um “canudo”, estando a segunda na situação inversa, qual destas seria escolhida para o cargo de chefia, entretanto, aberto?
Num país em que somente três em cada dez trabalhadores contam com habilitações superiores, quem tem um diploma ainda consegue um lugar mais favorável na corrida ao emprego frente àqueles que, não tendo a certificação formal pretendida, até têm uma experiência mais robusta, explicam os especialistas ouvidos pelo Gerador. O credencialismo – isto é, a sobrevalorização das credenciais em detrimento, por exemplo, experiência – persiste em Portugal, sendo preciso, por isso, ter um sistema público que assegure o direito à aprendizagem ao longo da vida, defende a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), bem como mecanismos que permitam perceber a equivalência entre as competências formais e as práticas, apela o professor e investigador Jorge Malheiros.
E já há também sinais de mudança nesta dinâmica, aos quais é preciso prestar atenção: nos últimos anos, surgiram já processos de recrutamento em que a experiência assumiu o maior peso na escolha, revela o Grupo Adecco, que é especialista em recursos humanos. Em contraste, Elísio Estanque, sociólogo e investigador do Centro de Estudos Sociais, frisa que, apesar de mais qualificados, os jovens confrontam-se hoje com empregos mais precários e com piores salários.
Mas vamos por partes. De acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) relativos ao primeiro trimestre de 2023, das cerca de 4,9 milhões de pessoas empregadas em Portugal, apenas 1,6 milhões contam com o ensino superior. Na visão do professor Jorge Malheiros, esta é uma das causas da sobrevalorização das credenciais académicas no mercado português, ou seja, uma vez que “ainda temos menos pessoas com um grau académico do que o resto da Europa” e de só “tardiamente ter acelerado em Portugal o crescimento do número de licenciados”, só “uma elite” tinha acesso ao diploma. Os títulos académicos têm sido usados, assim, “como mais um elemento” dessa distinção.
Mas esse não é o único motivo. Andrea Araújo, da Comissão Executiva da CGTP, identifica um outro: a incapacidade ou até “falta de vontade” das empresas avaliarem os candidatos às vagas de emprego que disponibilizam, estudando as competências e a experiência. “Os diplomas atestam uma parte das competências e acaba por ser mais fácil, mais imediato e barato para as empresas (pelo menos, no curto prazo), muitas das quais veem o trabalhador como um produto acabado e não passível de vir a alcançar as competências que não detém com formação adequada ao seu caso específico”, sublinha a sindicalista.
Segundo a dirigente, durante “muito tempo” os conhecimentos adquiridos pela via informal (como a experiência profissional) foram mesmo desvalorizados, não só em termos de recrutamento, mas também de carreira e dos salários. “Isso agravava-se pelo facto de não existir um sistema de certificação que atestasse esses conhecimentos, bem como um sistema educação e formação que permitisse fazer face aos défices de competências dos trabalhadores”, queixa-se Andrea Araújo.
Nos últimos anos, houve avanços na certificação dos conhecimentos informais, reconhece a mesma, mas o sistema público de certificação profissional e o sistema de educação e formação ainda não conseguem dar a resposta necessária aos trabalhadores, atira. “Há necessidade de ter um sistema público que assegure o exercício do direito dos trabalhadores à aprendizagem ao longo da vida, que lhes permita completar aprendizagens e competências, tendo em conta as suas necessidades, e que certifique as competências reais dos mesmos, sejam parciais ou globais”, apela a sindicalista.
Na mesma linha, Jorge Malheiros entende que Portugal precisa de disponibilizar mecanismos que permitam reconhecer a importância das competências não académicas e até a sua equivalência à formação formal. “É possível fazer essa conversão, mas aqui é que está uma das falhas”, salienta o investigador. Por exemplo, nos concursos públicos, a experiência comprovada poderia dar direito a acesso igual a um diploma, mediante certas condições, o que ajudaria a contrariar o fenómeno do credencialismo.
Usar o diploma para “legitimar desigualdades”
Valorizar o “canudo” em detrimento da experiência não tem implicações apenas no emprego que é atribuído a cada pessoa, mas em todo o seu futuro, no lugar que ocupa na sociedade e, no limite, nas perspetivas da sua família. Pedro Estêvão, do CoLabor – um laboratório dedicado, nomeadamente, às questões em torno do trabalho, que mobiliza os recursos da academia, empresas, Administração Pública e organizações da economia social e solidária com vista ao aprofundamento das questões ligadas a essa temática –, lembra que a definição inicial de credencialismo passava pelo uso “do diploma escolar para legitimar desigualdades estruturais no trabalho e na sociedade”, e isso, diz, também tem reflexos em Portugal.
“Continua a ser notória a subrepresentação nas universidades portuguesas de filhos e filhas de classes (empregados executantes, operários industriais e trabalhadores não qualificados) e de grupos sociais (por exemplo, afrodescendentes e ciganos) estruturalmente subordinados na nossa sociedade”, destaca o investigador. Enquanto isso, acrescenta: “Portugal mantém-se como um dos países da Europa em que é maior a diferença entre o que pode esperar ganhar ao longo da vida um diplomado do ensino superior, por um lado, e um diplomado do ensino secundário ou do ensino básico, por outro.”
O investigador observa, além disso, que há em Portugal uma “expressão muito reveladora” do credencialismo: “Quando alguém se queixa do seu trabalho ou da sua vida, é frequente responder-se ‘olha, estudasses’. Isto é anedótico, mas vai ao coração do problema do credencialismo. O diploma deixa de ser um simples documento que certifica que o seu detentor tem um certo número de competências para se tornar numa marca de privilégio na sociedade”, explica.
Pedro Estêvão refere ainda o livro A tirania do mérito, de Michael Sandel (2020), no qual é sublinhado que conseguir um diploma de ensino superior “depende em grande medida de circunstâncias que escapam ao nosso controlo, à cabeça das quais estão a classe social da nossa família, a cor da nossa pele e o local onde nascemos”. “Ou seja, não é muito diferente de uma lotaria. Ora, haver um sorteio [para o acesso ao ensino superior] teria a vantagem de tornar clara esta arbitrariedade. E, logo, de se tornar a desigualdade baseada no diploma muito mais intolerável, mesmo aos olhos de quem beneficia dela”, analisa.
Empresas confirmam valorização do diploma, mas há quem já destaque experiência
Esta leitura de que o diploma tem ainda muito peso na corrida ao emprego não é um exclusivo dos sindicatos, nem dos investigadores. Nas empresas especialistas em recursos humanos, ecoa a mesma interpretação do mercado laboral luso. Marco Arroz, national senior manager de executive search (gestor sénior do recrutamento de executivos, numa tradução direta) da Multipessoal, revela que é frequente haver processos de recrutamento em que “a certificação formal do profissional é mais relevante do que a sua experiência”, o que, muitas vezes, parte da administração ou do departamento de recursos humanos, afirma.
Ainda que reconheça que há cargos em que a exigência do diploma não é um excesso, mas uma necessidade até legal, o responsável frisa que há setores em que existe mesmo credencialismo, procurando-se candidatos com diplomas de ensino superior, mesmo que a natureza do trabalho não o exija. “O credencialismo pode, muitas vezes, criar barreiras e fazer com que se descarte profissionais talentosos e experientes, que não possuem um diploma, mas que detêm as competências necessárias para desempenhar o trabalho com sucesso”, analisa Marco Arroz.
Já Pedro Amorim, corporate clients director (diretor de clientes corporativos, numa tradução direta) do ManpowerGroup e managing director da Experis, apela a que haja um equilíbrio no mercado de trabalho, a bem do próprio país. “Há espaço para todos no mercado de trabalho. É preciso que as organizações aliem nas suas equipas pessoas com mais experiência e conhecimento do setor a outras recentemente qualificadas, com conhecimentos mais atualizados e ideias novas. As empresas devem ser feitas deste equilíbrio, que leva a uma diversidade intelectual e maior consistência na organização. É este balanceamento que promove o sucesso das organizações”, defende.
Nesse âmbito, fonte oficial do Grupo Adecco, que também é especialista em recursos humanos, adianta que nos últimos anos tem sido “uma maior importância na experiência e competências em detrimento do diploma”, nos processos de recrutamento que acompanhou.
“Cada vez mais, os candidatos são avaliados pela experiência que obtiveram na sua vida profissional e nas competências que desenvolveram durante as mesmas”, afirma a empresa, que assegura que um candidato que apenas tenha um diploma e não revele competências críticas para a função “estará em desvantagem”.
A geração “mais qualificada de sempre”
Em contraste com a dinâmica descrita que é relativa ao conjunto do mercado de trabalho, entre os jovens – considerados repetidamente pelas vozes políticas como a “geração mais qualificada de sempre” –, as credenciais têm um peso diferente, que é preciso não esquecer, alerta o sociólogo Elísio Estanque.
“Tem vindo a ocorrer uma tendência de sentido contrário, onde crescem os empregos precários e mal pagos ocupados por jovens licenciados”, salienta o especialista, que realça que um diploma hoje, entre os jovens, tem “muito menos prestígio do que tinha na década de oitenta do século passado, quando um licenciado tinha garantias de um emprego qualificado à saída da universidade”.
A propósito, um estudo recente da Fundação José Neves dava conta de que a diferença salarial entre jovens com o ensino superior e com o ensino secundário atingiu “mínimos históricos”, passando de 50 % em 2011 para 27 % em 2022. Ainda assim, ter o “canudo” continua a dar um prémio salarial, mesmo entre as gerações mais novas, abrindo-se a porta ao prolongamento do fenómeno em questão.