Francisco Alves Mendes Filho, mais conhecido como Chico Mendes, terá proferido uma das mais célebres frases sobre ecologia, ambiente e a preservação da natureza: “Ecologia sem perspetiva de classe é jardinagem”. Nas semanas que antecederam a pausa estival da atividade parlamentar europeia, o debate político sobre a Lei da Restauração da Natureza transformou-se no epítome do clima de polarização política que a direita europeia tem tentado aportar a todas as discussões no Parlamento Europeu. Aliás, para tentar rejeitar a aprovação desta Lei, as táticas empenhadas ultrapassaram os limites do razoável, com a substituição forçada de alguns deputados na Comissão Parlamentar de Ambiente e com o recurso a mentiras e às fake news numa tentativa de conquistar a opinião pública. De vários argumentos que se foram utilizando, contra e a favor desta lei, houve um que não me deixou indiferente, por profunda discordância: a Natureza não é uma questão política.
Vamos, então, por partes. Os objetivos da Lei da Restauração da Natureza deverão abranger, “pelo menos, 20 % das zonas terrestres e marítimas da UE até 2030 e, até 2050, todos os ecossistemas que necessitam de restauração”. Para além disso, “a proposta estabelece metas e obrigações específicas juridicamente vinculativas para a restauração da natureza em cada um dos ecossistemas enumerados – desde terrenos agrícolas e florestais até aos ecossistemas urbanos, marinhos e de água doce.” Estes objetivos derivam dos compromissos assumidos pela União Europeia na última COP 15 - a Conferência das Nações Unidas para a Biodiversidade - e resultam da preocupação evidente com o estado de conservação dos habitats e de declínio da biodiversidade na Europa. Aliás, de acordo com a avaliação de impacto realizada pela Comissão, 81% dos habitats na Europa encontram-se em mau estado e a extinção de espécies no mundo é tão acelerada que vários cientistas começam a referir-se a este fenómeno como a 6ª extinção em massa.
A Lei da Restauração da Natureza insere-se, pois, no conjunto de respostas mais alargadas por parte da União Europeia para combater as alterações climáticas, denominado Pacto Verde Europeu. É consensual na comunidade científica que a restauração da biodiversidade, através da regeneração de habitats, é um dos passos fundamentais para cumprirmos os objetivos globais a que a UE se comprometeu, nomeadamente acelerando a descarbonização e visando alcançar a neutralidade carbónica até 2050.
Porém, para além dos benefícios científicos evidentes que advêm da restauração de ecossistemas mais sustentáveis do ponto de vista ambiental, os dados apresentados pela Comissão demonstram que por cada 1€ gasto em restauração de terra, se prevê um retorno económico de 8 a 38€. Estes dados da Comissão são, igualmente, sustentados por diferentes organizações ambientais, estudos científicos e económicos e, até, por algumas das maiores empresas mundiais, que reiteradamente têm apelado a que a União adote esta Lei.
Não há qualquer incompatibilidade entre a necessidade de uma Lei de Restauração da Natureza e o desenvolvimento da atividade económica. Pelo contrário. Ecossistemas mais sustentáveis, com uma maior garantia de preservação das espécies, sejam animais ou plantas, significam, naturalmente, um maior aproveitamento económico e mais recursos disponíveis para todos. É preciso garantir que há capacidade de regeneração dos solos e das espécies e sustentabilidade no consumo destes recursos - em particular da água - como forma de assegurar a segurança alimentar da população europeia e é isto que a Lei da Restauração da Natureza se propõe assegurar.
Aparentemente, os diferentes argumentos acima enunciados são de ordem técnica e não mereceriam, por isso, grande discussão política ou ideológica. No entanto, quer no plano prático, quer no teórico, nada podia estar mais distante da realidade.
No plano prático, as lutas internas de uma família política europeia, bem como as suas ambições para o que se joga nas eleições de 2024, acabaram por determinar que a discussão sobre a Restauração da Natureza se tornasse num debate partidário mais do que científico. Mas, mais importante que isso, no plano teórico, os princípios que orientam ideologias à esquerda e à direita tiveram - têm e terão - um papel relevante na discussão sobre as questões ambientais e o combate às alterações climáticas.
A forma como percecionamos a mudança - que de uma forma simplificada e muito sintetizada, se poderá traduzir, neste caso, na dupla transição digital e ‘verde’ - tem sido fundamental para o posicionamento do eleitorado face aos partidos dos diferentes espectros políticos. De um lado, o eleitorado que se tem posicionado mais à direita - causa e/ou consequências das próprias posições políticas desses partidos - tende a resguardar-se numa posição mais conservadora em relação à mudança, na defesa intransigente do status quo como forma de respaldo perante os fenómenos que compõem este acelerado período de transição em que nos encontramos. Por seu lado, à esquerda, a promoção da transição como mecanismo de contínuo progresso tem sido a resposta - em muitos casos também ela insuficiente - de lidar com o imparável processo de mudança.
É este posicionamento face à mudança que determina(rá), também, o posicionamento de esquerda e direita nas decisões políticas relativas à transição verde. O debate em torno da Lei da Restauração da Natureza foi um exemplo paradigmático disso mesmo. Independentemente das táticas utilizadas - que, reitero, neste caso ultrapassaram em muito as regras do jogo político - o que esteve em causa no debate sobre esta Lei foi o confronto com o inevitável acelerar dos processos de mudança e o seu impacto no nosso modo de vida. E é por isso que, em paralelo com a enorme necessidade de validação científica e técnica das políticas a implementar, a discussão tem sempre de ser política. É deste confronto ideológico que sairão as propostas políticas que determinarão a nossa vida em sociedade e a forma como orientamos os objetivos para combater as alterações climáticas e a alcançar para o futuro. Se é que queremos ter um.
- Sobre o João Duarte Albuquerque -
Barreirense de crescimento, 35 anos, teve um daqueles episódios que mudam uma vida há pouco mais de um ano, de seu nome Manuel. Formado na área da Ciência Política, História e das Relações Internacionais, ao longo dos últimos quinze anos, teve o privilégio de viver, estudar e trabalhar por Florença, Helsínquia e Bruxelas. Foi presidente dos Jovens Socialistas Europeus e é, atualmente, deputado ao Parlamento Europeu.