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Da fusão entre jazz e música tradicional algarvia veste-se o EP Bioco

As várias regiões de Portugal distinguem-se entre si não só pelo clima e geografia, mas pelo património cultural que transportam consigo ao longo de gerações, seja nos cantares, nas palavras que mudam o seu significado e aquelas que só existem em determinada localidade. “Bioco”, por exemplo, é, segundo o dicionário, “um traje tradicional, composto por capote comprimido, em tecido preto e pesado, que cobria o corpo da cabeça, típico da região do Algarve”. O músico natural de Leiria, baixista, produtor e responsável pelos arranjos das música, José Vieira, escreveu o seu “Bioco”, não “numa forma negativa”, como conta ao Gerador, mas por trazer uma nova roupagem à música regional que apresenta no EP “Bioco – Música Moderna Tradicional Algarvia Vol.1”.

Fotografia da cortesia de Bioco

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Esta proposta musical, que conta com os músicos José Bonifácio (voz e acordeão), Diogo Costa (guitarras), João Romão (bateria) e José Vieira (baixo, arranjos e produção), pretendeu, através da obra de recolha musical feita por Michael Giacometti, vestir de novo as antigas melodias da região utilizando linguagem e particularidades da música moderna. Na apresentação do projeto, lê-se: “um despertar para um novo cancioneiro tradicional algarvio e uma compreensão mais profunda desta herança cultural”. Nasceu assim um EP que começa com um “Corridinho” que traz alguma tipicidade, seguido de um “Deus te Salve, Ó Rosa”, um enamoramento a “Dona Mariana”, uma prece com “Oração das Almas”, terminando no embalo “Faça ai ai Meu Menino”, para deixar um gosto a querer mais. A capa ilustrativa da fusão que o EP celebra é da autoria de Teresa Conceição, que também faz parte da produção do projeto.

Depois do EP, que pode ser adquirido entrando em contacto com a Ria Inquieta Associação Cultural e Recreativa, através do Instagram ou Facebook, o grupo cozinha agora uma segunda fase que traz o vídeo e a animação para a melodia criada. No Algarve já quase interior, perto de Tavira, José Vieira abriu as portas de sua casa para contar ao Gerador um pouco mais sobre estas duas fases do projeto, o que encontrou na musicalidade do sítio que agora é sua casa, e a importância de manter a tradição viva através de iniciativas como esta.

O que é que um leiriense encontrou na musicalidade do Algarve?

Leiria é muito diferente. É uma cidade de passagem, que vive da indústria. A cultura leiriense, principalmente musical, é pouca. Apesar de termos o castelo, e [apesar] do rei D. Dinis séculos antes ter sido uma figura ligada à poesia, não existe uma cultura leiriense vincada a nível musical. A região do Algarve não é um sítio de passagem, mas sim uma zona em que as pessoas vêm para ficar, excluindo os turistas, claro. Mas, quem chega, por norma, fica. Como o Algarve está dividido pela serra, para o resto do país, essa serra acabou por fechar o Algarve durante muito tempo. E mesmo a serra fechou-se em si, e por isso há uma obrigação artística em fazer alguma coisa. Nas outras áreas artísticas não tenho conhecimento, mas a música é muito rica, há muita coisa de zonas específicas. Há também alguma influência do sul de Espanha, do norte de África, o que faz com que, ao longo do tempo, seja uma miscelânea cultural muito grande, e o que ficou está à vista de todos.

Como surgiu então este casamento entre vários estilos de música com a música tradicional?

Quando cheguei ao Algarve, a Tavira, logo no verão de 2021, fiz parte de um projeto musical que se chama “Eis o Algarve”, liderado pelo Nelson Conceição, acordeonista de Loulé, que se baseava em música tradicional algarvia, com arranjos mais modernos. O grupo era composto por um quarteto de acordeão, guitarra, baixo e percussão, uma completa fusão. Depois tínhamos três cantores e ainda um trio de cordas, composto por uma viola de arco, violino e violoncelo. Foi o meu primeiro contacto com a música algarvia e, desde aí, percebi que o Algarve tinha raízes culturais e tradicionais muito ricas. Apercebi-me que a música por si só tinha um potencial enorme a todos os níveis. Melodicamente são muito ricas, ritmicamente têm a base do corridinho, em termos de tempo tem uma velocidade rápida e há alguma virtuosidade implícita. Há também a tradição do acordeão. E tudo isso mostrou-me o potencial e deu-me a vontade de experimentar e fazer alguns arranjos com esse tipo de reportório, fundindo a música tradicional com a minha linguagem, uma linguagem que adquiri ao longo dos tempos, dos estudos, de um lado mais académico, e ao meu lado do jazz. Esse foi o ponto inicial do projeto.

Antes de explicares de onde vêm estas músicas e como as escolheste, como se juntou este primeiro grupo que gravou o Bioco?

Então, existem várias formas de abordar um projeto musical. Temos o exemplo da forma mais “clássica” e de uma mais ‘profissional’. Na primeira, a que podemos entender por “mais clássica”, formas uma banda, fazes ensaios e resulta algo. Mas, num lado mais ‘profissional’, alguém concebe o projeto, escreve os arranjos e chama músicos capazes que te ajudam a compor tudo, a formar o final. No caso do Bioco, foi a segunda opção. Eu já conhecia dois dos músicos, o Diogo Costa e o João Romão, mas não conhecia o acordeonista. Conheci-os enquanto banda num concerto que fizeram em Tavira e que eu posteriormente fiz a produção em Faro, e quando os ouvi gostei muito, principalmente do timbre vocal do José Bonifácio, é um timbre muito forte, fácil de ouvir. Achei que seria o grupo ideal, com um instrumento característico do Algarve que não poderia, de todo, faltar, e falei logo com eles. Eu fiz a recolha do reportório, escolhi 5 temas, fiz os arranjos e começou tudo aí.

E como foi o processo das escolhas desses cinco temas?

No início, quando tentámos organizar um conceito base, quisemos logo agarrar no espólio do Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça, que têm dois álbuns resultantes da recolha que fizeram ao longo do país. Dois álbuns com dez [ou] onze temas cada um. Eu selecionei cinco temas, e esse foi o ponto de partida. A letra é exatamente igual, à exceção da “Oração das Almas” que encurtámos porque era mesmo muito extensa. Não quer dizer que daqui para a frente, no futuro, não se explore outro reportório algarvio que não tenha a ver com a recolha de Giacometti, mas, neste primeiro pontapé de saída, esta foi a nossa premissa. O ponto forte, a nossa base, é a música tradicional algarvia.

Porquê o nome “Bioco”?

Queríamos um nome algarvio, uma expressão como “marafado”, por exemplo, e não conseguíamos chegar a nenhuma conclusão. O guitarrista do grupo encontrou a palavra ‘bioco’, e para nós fez logo sentido. É um traje que tapava o corpo da mulher até ao século XIX, que depois foi proibido, e achámos que podia ter esta dualidade, não só da música algarvia estar quase ‘escondida’, mas ao mesmo tempo à vista, nos nossos arranjos, mas também porque lhe estamos a dar uma nova roupagem com estes arranjos. Não numa forma de escondê-la negativamente, mas dar-lhe uma nova roupagem.

Foi propositado começar com um corridinho e acabar com uma música que quase nos embala e mete a sonhar com um próximo EP, ou disco?

Sim. Achámos que o corridinho era a música perfeita para primeiro tema, pelo seu ritmo e porque é o único instrumental. Para fechar, seria bom uma música mais calma, e por ser (em termos instrumentais) diferente de todas as outras, escolhemos a “Faça ai ai Meu Menino”, que tem apenas guitarra e voz.

A gravação dos singles, na Associação de Músicos de Faro. Segunda fase do projeto “Bioco - Música Moderna Tradicional Algarvia Vol.1”

Este ano voltaram a ganhar um apoio da Direção Regional da Cultura do Algarve que vos permitiu levar este projeto para uma segunda fase. Podes desvendar um pouco?

A fase dois ainda está no processo, acabámos de gravar os dois temas escolhidos. Uma das músicas gravadas está no EP, é o Corridinho, a outra é também um corridinho, e faz também parte da recolha do Giacometti. A ideia deste novo processo, desta fase dois de criação, foi criar dois singles e incorporar vídeo. Fizemos duas gravações em live take, no entanto, o primeiro vídeo resultará numa animação feita pela Fly Moustache, e o outro será mesmo a gravação ao vivo, feita pelo Henrique Mestre, que faz parte da Associação Ria Inquieta, a produtora deste projeto. Este segundo vídeo foi feito em parceria com a Associação de Músicos de Faro que nos cedeu o espaço. Os vídeos sairão em meados de novembro e teremos um bónus, que é um terceiro vídeo que sairá até ao final do ano. Em relação ao grupo, é diferente daquele que gravou o EP. Nesta segunda fase temos connosco o acordeonista Emanuel Marçal, muito ligado à música tradicional, principalmente do Algarve. Chamámos dois sopros, um trompetista, Leon Baldesberger, e o saxofonista, Luis Miguel, mais conhecido por China, e novos arranjos foram feitos para estes temas, para gravarmos em sexteto. A ideia será manter este grupo e gravar mais temas, até termos um reportório maior para podermos começar a tocar ao vivo.

Qual a importância destes fundos e apoios, como é o caso deste dado pela Direção Regional da Cultura do Algarve, para manter viva esta cultura algarvia?

Sem dúvida.Nos últimos anos temos visto muito aparecimento e reaparecimento de música específica regional e alguma malta a tentar fazer fusão com esse tipo de reportório. Na minha opinião e visão, sinto que é algo que não está banalizado, nem sei se vai a estar, mas está a acontecer agora, principalmente porque é muito difícil fazer coisas novas, e acho que essa fusão das coisas é uma peça escapatória para a falta de criatividade que pode existir atualmente. Estes projetos são fundamentais para fazer com que a tradição e a cultura regional se mantenham vivas e passem de geração em geração. Pessoalmente, não sou fã de ver um rancho a tocar, mas se ouvir a música de outra forma, talvez fique a escutar e, de repente, tenho um ponto de interesse. Acho que passa por aí para captar novos públicos. Claro que faz falta manter as coisas vivas da forma como elas são, mas para passar a mensagem a outros públicos, e tentar captar novas pessoas, ou pessoas que não estão tão recetivas a este tipo de música, à genuinidade da música mais antiga, acho que este pode ser um caminho, uma boa forma de o fazer.

Texto de Patrícia Nogueira

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