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Opinião de Miriam Sabjaly

Uma mágoa politicamente útil

No Gargantas Soltas de hoje, Miriam Sabjaly reflete sobre o rescaldo das eleições legislativas de 10 de março de 2024.

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É dia 10 de março. Estudo em Gotemburgo. Depois da conclusão desta etapa, em pouco mais de três meses (a contagem decrescente como um ponteiro ensurdecedor na minha garganta), abre-se o alçapão gigante chamado o resto da minha vida. É domingo, e por isso um interregno do quotidiano que fabriquei fora do meu país, em que performativamente tento conter-me em perímetros culturais que não conheço, um exercício prolongado e inconstante. O céu está mais ou menos azul, mas não me apetece caminhar (penso, várias vezes, nos dias solarengos que desaproveitei, sistematicamente, em Lisboa). Vivo um dia de eleições sozinha e desamparada. O futebol distrai-me, por umas horas (tento não refletir muito criticamente sobre o facto de se jogar futebol hoje, de todos os dias). Decido fazer uma receita elaborada para acautelar a dor que se antevê. Massa caseira cortada à tesoura e vegetais verdes esquartejados e queijo fresco e pimenta preta e abstração, que é mais a distância articulada, um compasso de espera. Quero estar com a minha família – alguém me relembra que é véspera de Ramadão, e a notícia assola-me como se fosse uma rajada de vento. Quero estar com os meus amigos – em bom rigor, abandonei-os. Pouco importa, neste momento, ter sido empurrada. Votei cedo demais, mas fora de Portugal as regalias são escassas e os impedimentos agigantam-se. Votei em consciência, mas com um profundo sentimento de abandono. Foi uma viagem longa e cara de comboio, tudo para traçar uma cruz num papel com uma caneta alheia e sem merecer qualquer sentimento de catarse, apenas a resignação ácida de quem anseia e antecipa a concretização eleitoral do que já vivemos: a vida que não é boa e o tempo que não é nosso. Sinto-me atraiçoada pelas minhas próprias circunstâncias porque nunca vivi uma noite de eleições fora de Lisboa. A minha terra – há quem o diga impossível. Mas é, factualmente, a minha terra. Não conheço outra.  

Oiço o líder do Partido Socialista, Pedro Nuno Santos, afirmar taxativamente, perante a sua derrota, que “não há 18,1% de portugueses votantes racistas ou xenófobos, mas há muitos portugueses zangados, que sentem que não têm tido representação.” Sei que duas coisas podem ser verdade ao mesmo tempo. A primeira: não há 18,1% de portugueses votantes racistas ou xenófobos. Há mais. São militantes ou eleitores dos vários partidos no boletim de voto, e não só filiados ou simpatizantes do de extrema-direita. No ano de fundação do partido que agora colhe esses 18,1% (um milhão, cento e oito mil, setecentas e noventa e sete votos (à data), votos que se traduzem em meia centena de mandatos à Assembleia da República), o inquérito social europeu (European Social Survey (ESS) avançou que 52.9% dos portugueses (em comparação com a média europeia de 29.2%) considera que há raças ou grupo étnicos que nasceram menos inteligentes e/ou menos trabalhadores que outros, e 54.1% crê que há culturas inerentemente superiores a outras. Cerca de 62% dos portugueses manifestam alguma forma de racismo e são apenas 11% os que rejeitam toda e qualquer crença racista.

A segunda: parece-me concebível que nem todos os eleitores do partido de extrema-direita o são por se sentirem fielmente espelhados nas propostas de ódio racista e xenófobo que figuram no seu programa eleitoral, mas apesar de. Uma conivência relutante, talvez até envergonhada (o tal racismo estrutural). Ao seu potencial eleitorado, o CHEGA! oferece uma fantasia personalizável e colossal: uma vida acima da linha de sufoco. O CHEGA! regozija-se porque sabe plantar a amargura, e colhê-la. Sabe atiçar a competitividade mortífera (o tal dogma neoliberal) entre o português descontente e o seu semelhante, a quem atribui as vestes do inimigo: o irreconciliável, o primitivo, o sórdido, o abominável, o ganancioso. Sabe ampliar e instrumentalizar rancores diversos, corolários das crises renováveis do capitalismo global, do rastilho da austeridade, da degradação de tudo à nossa volta e de nós mesmos. Pouco importa a imprecisão culposa (a tal corrupção dos outros). Pouco importa identificar as verdadeiras causas. O CHEGA! faz tudo isto habilidosamente e perante uma oposição amedrontada e sem rumo ou autocrítica. Vive do amalgamar de promessas desacordantes e rasas, do apelo a um saudosismo enganador e enganado que se aguenta às cavalitas do nosso mais perverso e premente lusotropicalismo (o tal pilar ocidental). Simula uma distância larga entre si mesmo e os partidos do arco governativo, de onde veio. Sucede na sua missão sem nunca fazer tremer as hegemonias económicas que lhe dão de comer, e sem as quais não sobreviveria.

O CHEGA! canta vitória porque sabe que o desespero é terreno profícuo para a mobilização popular, e neste momento, o terreno é seu. Mas o que se segue é a resistência. Não é bonita ou fácil, mas é necessária e inevitável. Também a nossa mágoa pode ser útil, pode ser organizada, pode alicerçar uma consciência coletiva que faça frente e construa. Também a nossa mágoa importa e comanda.

-Sobre Miriam Sabjaly-

Miriam Sabjaly é jurista. Trabalhou como técnica de apoio a pessoas migrantes vítimas de crime em Portugal e a pessoas vítimas de crimes específicos, como os crimes de ódio, tráfico de seres humanos, discriminação, mutilação genital feminina e casamento forçado. Foi assessora da Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira entre março de 2021 e março de 2022. Atualmente é mestranda em Direitos Humanos, dividindo o tempo entre Gotemburgo (Suécia), Bilbao (Espanha), Londres (Reino Unido) e Tromsø (Noruega). 

Texto de Miriam Sabjaly
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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