O texto chegou-me por WhatsApp, sem sugestionamentos ou condicionamentos de leitura, uma preciosidade nestes tempos em que pensar parece circunscrever-se ao exercício de concordar ou discordar de, de alinhar ou não alinhar com.
Ter tempo para ler, interpretar e reflectir sem inferências externas é raro, porque a informação circula a uma velocidade tão estonteante que se tornou habitual ‘aterrar’ primeiro nos comentários e reacções, e só depois chegar aos factos e acções que as desencadearam.
Feito o parêntesis, volto ao texto que me enviaram por WhatsApp, e que tem como título “Não me lixes, Bernardo Silva”. Publicado na rubrica “Postal do dia”, de Luís Osório, o artigo suscitou tantas dissonâncias de opinião e distorções de mensagem, que o autor sentiu necessidade de regressar ao assunto.
“(…) todas as críticas que recebi foram sobre o que eu não escrevi, o que eu não disse, o que eu não penso”, adendou o jornalista, explicando que não afirmou que o futebolista ganha demasiado dinheiro, da mesma forma que não o acusou de não ter consciência dos seus privilégios, nem se pronunciou sobre o fundamento das suas palavras.
Para quem está a ler sobre este caso pela primeira vez, partilho o contexto: no início de Setembro, numa conferência de imprensa integrada nos trabalhos da selecção nacional de futebol, Bernardo Silva defendeu que “a carga [de jogos]” a que ele e os colegas estão sujeitos “é completamente absurda”.
“A verdade é que o calendário está completamente louco. Ainda hoje recebemos, no Manchester City, a notícia de que entre os jogos com Arsenal e Watford só vamos ter um dia de descanso. Se não formos eliminados de nenhuma competição, jogamos de três em três dias por nove meses”.
Mesmo reconhecendo que os futebolistas estão “a cumprir um sonho”, e que “os plantéis estão maiores”, o jogador do Manchester City sublinha que a gestão pessoal não é fácil.
“Se for uma ou duas épocas, tudo bem. Mas sete ou oito não tem sido fácil. Passo muito pouco tempo com a minha família e de férias”.
Aqui chegados, voltemos ao texto, entretanto explicado pelo seu autor. “O que escrevi foi que Bernardo Silva não pode dizer publicamente que é uma chatice ter tantos jogos pois isso impede-o de ter uma vida como as outras pessoas. Não pode estar tanto tempo com os amigos e a família. É sobre isto, exclusivamente isto que escrevi. Alguém que ganha o que ele ganha não pode ou deve falar sobre a chatice de tantos jogos que o impedem de estar com amigos. Não o pode fazer por respeito para com as pessoas que têm vidas difíceis e que trabalham tantas ou mais horas do que ele”.
Discordo. Os 410 mil euros que Bernardo Silva ganha semanalmente, pegando nos números apresentados por Luís Osório, são rendimento do seu trabalho, concorde-se ou não com o negócio de milhões em que se transformou o mundo do futebol. Reconhecendo as gritantes diferenças entre quem recebe 410 mil euros semanais e quem tem de gerir menos de 1000 euros mensais, defendo o direito de todas as pessoas trabalhadoras poderem contestar as condições e termos em que produzem, e de o fazerem publicamente, se assim o entenderem.
Desacelerar o jogo
É com este entendimento que reflicto no seguinte: se até um superprivilegiado que está a cumprir um sonho se queixa das condições de trabalho (e não do trabalho em si), do que mais precisamos para reconhecer que o problema está num sistema capitalista profundamente extractivista?
O ritmo alucinante a que hoje somos obrigados a trabalhar é desumano. Não é por acaso que andamos a discutir a semana dos quatro dias. Importa desacelerar, reivindicar tempo para desfrutar dos amigos e família, em vez de nos arrastarmos num contínuo de tarefas e obrigações que apenas servem os interesses do capital.
A ideia de que ganhar mais – ou até estratosfericamente mais – do que a esmagadora maioria da população deve inibir a verbalização de descontentamento inquieta-me, porque nela vejo subjacente a ideia de que o dinheiro compra tudo. Até o direito à indignação.
Também não vejo como falar do que nos dói desrespeita a dor de outras pessoas.
Parece-me mais útil aproveitar o desabafo de Bernardo Silva para o questionar sobre o papel dos jogadores no processo de crescente mercantilização do futebol. Ou sobre o manto de silêncio relativo às graves violações de Direitos Humanos, sobretudo de trabalhadores migrantes, que marcaram a construção dos estádios para o Mundial do Catar de 2022. E o que dizer sobre a elitização do acesso aos estádios, bem visível no preço dos bilhetes?
Estas são perguntas para mais de 410 mil euros por semana. Façamo-las!