Um pouco por todo o mundo, a direita outrora dita “tradicional”, cavalga o furor das políticas transfóbicas da administração Trump. Várias agências federais foram notificadas que deveriam apenas reconhecer nomes e pronomes que encaixassem no binarismo masculino/feminino, colocando um fim brusco e sonante aos programas de reconhecimento e promoção da diversidade, equidade e inclusão. Uns dias antes, em Portugal, o Parlamento aprovou, com os votos do Chega, PSD, CDS e IL, a retirada das orientações plasmadas num documento de 2023 da Direção-Geral da Educação sob o título “O Direito a SER nas Escolas: Orientações para a prevenção e combate à discriminação e violência em razão da orientação sexual, identidade de género, expressão de género e características sexuais, em contexto escolar”. O perigoso documento que instituiria a “ideologia de género” nos estabelecimentos de ensino, “violando a Constituição”, consiste, afinal, numa série de recomendações razoáveis e fundamentadas para a prevenção da violência baseada na orientação sexual, na identidade e na expressão de género e nas caraterísticas sexuais. Ao folheá-lo, registo informação clara, coerente e em linha com diretrizes emanadas do Conselho da Europa, da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, da OCDE, do Parlamento Europeu ou da ONU. Nada de radical, presumo, na identificação de boas práticas que combatam o bullying, a violência, nas suas diversas matizes, ou as microagressões do quotidiano escolar. Intervenção “positiva”, discussão aberta, minimização de fatores de risco, esclarecimento, promoção de espaços seguros para pessoas potencialmente vulneráveis – tudo isso, que cabe numa versão atualizada da matriz Iluminista, parece assustar o jacobinismo de sinal invertido.
Ganha sentido, então, a pergunta do recente livro de Judith Butler: “Quem tem medo do Género”? Ou, para ir ao ponto, quem tem medo da pluralidade e do não binário? É que as direitas parecem viver no sonho de querer acabar com o presente para regressar a um passado idealizado de homogeneidade, coerência e harmonia. Um passado que nunca foi assim, pois desde sempre essa uniformidade imaginária se baseava quer na violência física, brutal, de erradicação da diferença, quer na violência simbólica, colonizando as mentes e o senso comum.
Regressar a um passado que nunca existiu não pode ser a opção. Cada vez mais me convenço de que a desumanização em curso só terá fim quando formos capazes de socializar o sofrimento. Quando uns perceberem que as suas misérias não se superam com a humilhação dos outros. Quando os nexos de interligação das experiências forem reconstruídos e não se eclipsarem sob a fantasmagoria do medo. Quando percebermos, como diz Butler, que “a atenção redobrada que a direita dá ao» género» desvia as atenções das forças sociais e políticas que andam realmente a arrasar o mundo como o conhecemos: a destruição climática, a guerra, a exploração capitalista e a desigualdade social e económica…”. A imutabilidade do género e sua pureza seriam, então, a fé dos que não sabem compreender o que lhes está a acontecer. É preciso revelá-lo.
Para ler mais: Judith Butler (2024), Quem Tem Medo do Género? Lisboa: Orfeu Negro