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A realidade aumentada por Ana Borralho e João Galante solta um grito libertador com champanhe

Mesmo sem conhecer a Ana Borralho e o João Galante e ainda sem ter visto…

Texto de Carolina Franco

Peça Performativa dos autores Ana Borralho e João Galante: Romance Familiar. Primeiro Ensaio Geral. Grande Auditório da Culturgest. Lisboa 09 Abril 2019. FOTO: VASCO CÉLIO

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Mesmo sem conhecer a Ana Borralho e o João Galante e ainda sem ter visto a peça já sabíamos alguma coisa sobre os dois através do texto de apresentação de Romance Familiar ou a realidade aumentada, o espetáculo que apresentam na Culturgest nos dias 11, 12 e 13 de abril. “Estão fascinados pelas novas tecnologias de comunicação, não tanto pelas suas capacidades cada vez mais impressionantes, ou pela atração pelos gadgets, mas pela forma como estão a transformar modelos e relações sociais milenares a um ritmo alucinante” — a primeira frase já levanta o véu à problemática que levam para cena desta vez.

Num palco bem delimitado por luzes néon o som de uma voz off ocupa o espaço que posteriormente será pisado por performers, mas que numa espécie de preâmbulo discorre uma série de assuntos. De notícias com uma veracidade duvidosa mas que podiam perfeitamente aparecer num feed de Facebook, a um confronto subtil com quem já está sentado à espera que o palco seja ocupado por pessoas, o início dá-se de mansinho, quase sem que o público consiga perceber que de facto já está no espetáculo (e a fazer parte dele). Um desejo de “boa viagem” indica com certeza: o espetáculo vai começar.

Entram finalmente em palco os performers, uns atrás dos outros, e numa sintonia que parece ser acidental — que, aliás, se vai repetindo ao longo da peça — e que não seria estranha se demonstrassem consciência da presença uns dos outros. Olham para si mesmos enquanto tiram selfies, num ato que imediatamente se revela indissociável do seu tempo (a contemporaneidade) e que vai ganhando profundidade ao longo das quase duas horas de performance.  Numa tela atrás do grupo de 17 pessoas em palco surge uma tentativa de conversa íntima com a Siri e, ao mesmo tempo, as selfies que estão a ser tiradas em tempo real. O interior da boca e o pormenor de um olho vão ganhando outra dimensão e sendo substituídas pelo interior da roupa e o pormenor de um mamilo.

Envolvidos por um ambiente sonoro que soa tanto a distante como a familiar, vão despindo as camadas de roupa e marcando o seu território em palco, ao mesmo tempo que despem a alma e marcam o território na tela.

StreetFighter, Pepsi, Vanda, K7, Miroqui, Pumpkin Judicial, Mizé, Bevelvet e Maria Liberdade são alguns dos nicknames que vão surgindo na projeção que continua a transmitir em tempo real as selfies em registo fotográfico ou de vídeo, que vão sendo captadas em tempo real pelos performers. As confissões contam estórias de dependência, de abandono, de ilegalidade, de relações passadas ou presentes; contam estórias de medo com o à vontade de quem confia no ouvinte ou, noutra hipótese, de quem está a confessar-se a si mesmo.

A simplicidade dos registos fotográficos, que nem sempre têm enquadramentos muito pensados, cria rimas acidentais com uma memória que consegue ir buscar referências a outros tempos. Uma selfie de um umbigo na tela pode literalizar a ideia popular de que alguém que só pensa em si “só quer saber do seu umbigo”, como pode querer falar por uma maré de possibilidades que surjam na mente de cada espectador, de acordo com as suas próprias referências. Romance Familiar ou a realidade aumentada não dá — em momento algum — respostas, lança dados para quem os quiser apanhar do lado de cá.

“Gritar em silêncio é a pior coisa que existe” surge, entretanto, na tela. O grito dá-se em cena com champanhe.

A Realidade Aumentada do corpo e da alma aparece na tela do início ao fim da peça 

Em conversa com o Gerador, Ana Borralho e João Galante explicam que “tudo começou com a descoberta da Siri”. Ainda que a ideia inicial fosse ter em palco atores que passassem o tempo todo a falar com a Siri, o salto foi dado quando perceberam que a relação deste aplicativo com os humanos é redutora e tem limites que não transmitem a imensidão da internet nas nossas vidas. “Na verdade, não existe essa separação assim tão grande entre nós e as máquinas ou até as realidades virtuais e inteligências artificiais. Nós somos muito mais unos com isso no nosso dia-a-dia. Ou seja, eu estando no Spotify, no Youtube, ou seja o que for, o que eu vou ver não é decidido por mim. As coisas estão muito mais interligadas e misturadas do que numa conversa com a Siri”, explica João.

Uma “obsessão pelas selfies” ajudou a dar o salto no processo criativo e de uma Open Call surgiram 187 candidaturas, das quais selecionaram 78 para uma audição onde escolheram, finalmente, os 11 performers que esta semana pisam o palco da Culturgest, junto a outros 6 que já faziam parte da equipa. Ana partilha que “estas 11 pessoas são de distintas profissões” e que no grupo têm “alguns atores mas também temos pessoas que nunca fizeram teatro”; todos “escolhidos pelas diferenças de idades, de corpos, das formas de escrever e pelas histórias distintas umas das outras que tinham para contar.”

Romance Familiar ou a realidade aumentada é, nas palavras de Ana, “mais um espelho da sociedade atual em que estamos, no ponto em que estamos.” Confessa que sente que o que é preciso fazer com urgência passa por “gerir esta nossa relação com estes dispositivos tecnológicos todos sem chegarmos a um ponto em que deixamos de ser seres sociais” e que naturalmente essa preocupação se refletiu na criação. João assume que as peças “são sempre manifestos”.

A relação que vão criando com quem está na plateia ao longo do espetáculo é intencional e aparece como “uma forma de trazer o público para o tempo e para o espaço e não tanto de o tentar alertar”, diz Ana. “É mais pensar que o público é parte da performance. Tentar pensar sempre em dar uma experiência global e uma forma mais ampla de poder estar, fazer e pensar uma peça, e não apenas assistir. E aí pensamos muito no público. Mas na verdade nunca pensamos que público é esse”, remata João.

João desvenda a importância do processo criativo, a parte em que se costumam “questiona muito no que diz respeito à necessidade de incluir determinadas coisas dentro da peça” e conta que juntos vão “limpando sempre até ao limite, ao ponto de ficar quase só com o esqueleto”. Esse questionamento foi acontecendo naturalmente enquanto montava o som que, confessa, “nunca pensou que fosse ficar com um peso tão grande na peça”. Entre o que ia construindo nos ensaios e as sessões de estúdio em casa, reuniu as gravações que foi colecionando no seu dia-a-dia e criou um equilíbrio sonoro. “Tentei fazer uma coisa quase megalómana de meter o mundo todo lá dentro. Gosto de pensar que pelo menos durante o processo consegui meter lá dentro tudo o que temos dentro dos nossos telefones. Esta ideia de que o telefone tem tudo e tem a nossa vida toda, pensei um bocadinho assim”, explica.

O som agregador e múltiplo vai acompanhando os momentos mais ou menos decisivos na peça, ajudando a marcar ritmos e passagens numa peça que quer esticar a corda entre o visível e o invisível, o superficial e o mais secreto.  A acompanhar o registo sonoro, a nudez em palco marca posição ao mesmo tempo que transborda fragilidade.

“O que nós pedimos aos performers na escrita é que ultrapassem um bocadinho a barreira da nudez ao partilharem coisas muito íntimas; segredos, assuntos proibidos, coisas que não se falam na sociedade” — conta Ana — “aqueles corpos estão-se a despir e depois ainda há a camada mais profunda que está além da roupa, que são as coisas que eles partilham.”

Ana e João despem ideias pré-concebidas ao pensar Romance Familiar ou a realidade aumentada e convidam-nos a entrar “num futuro que já é agora” e que parece estar a um passo do abismo. Mas Ana deixa o repto: “Acho que não devemos continuar a batalhar contra as máquinas ou a tecnologia, mas a lutar por uma liberdade de escolha e de opção individual no meio disto tudo."

O vídeo de apresentação a peça desvenda alguns pormenores da criação de Ana Borralho e João Galante

Ana Borralho e João Galante conheceram-se enquanto estudavam Artes Plásticas no AR.CO. Trabalham em parceria desde 2001 e assinaram a dois peças como Mistermissmissmister (2002), sexyMF (2007), World of Interiors (2010) ou Atlas (2011). São membros fundadores da banda de não-músicos Jimmie Durham e da Associação casaBranca, e responsáveis pela direção artística do Festival de Artes Performativas – Verão Azul, em Lagos.

Romance Familiar ou a realidade aumentada está em cena na Culturgest nos dias 11 e 12 de abril às 21h00 e 13 de abril às 19h00, no Grande Auditório.

Texto de Carolina Franco
Fotografias de ©Vasco Célio

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