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Opinião de Paulo Pires do Vale

Ter falta de imaginação é não imaginar a falta*

Ou Como pensar a situação actual, sem falar dela Porque se temem a incerteza e…

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Ou Como pensar a situação actual, sem falar dela

Porque se temem a incerteza e o vazio, as instituições procuram assegurar as consciências e promover uma estabilidade (ilusória). Privilegiam a segurança, as certezas garantidas pela autoridade e a constituição de identidades aparentemente fortes. Por isso, as instituições constituem, nas palavras de Michel de Certeau, “seguradoras que protegem contra a questão do outro, contra a loucura do nada”. Ou seja, contra a loucura da falta.

Certeza e segurança estão, assim, associadas à repetição do já-conhecido, ao hábito, à tradição recebida, tantas vezes tida como “intocável” - e são uma forma de neutralizar a diferença, o outro, a proposta que põe em causa o estado das coisas presentes.  Uma das frases escritas nas paredes de Paris, em 1968, foi: “Le sacré, voilá l´ennemi!” -  O sagrado, no sentido etimológico, é o intocável, o separado, o inquestionável, e isso é o verdadeiro inimigo da imaginação: nesse domínio, o império do passado é “religiosamente”, escrupulosamente, mantido e repetido, desapossessando o homem de si mesmo e do poder de imaginar a sua vida. Sagradas são, neste sentido, as ideias feitas, as fórmulas repetidas, os “lugares-comuns” do pensamento que não se ousam pôr em causa.

Hoje, contra esse sagrado, quero celebrar a imaginação e a incerteza como o espaço espaçoso dos possíveis. Quero louvar a plasticidade (sinal de vida) e não a rigidez (reflexo da morte). Quero sublinhar a importância daquilo a que Nietzsche chamou Força plástica: a força activa que permite a alguém desenvolver-se de maneira original e independente, de transformar em si e de assimilar o passado e as influências que recebeu, de curar as suas feridas, de reparar as suas perdas, de enfrentar o incerto.

Diante da incerteza, a imaginação pode/deve propor outro estado de coisas, outro “horizonte de possibilidades” (outro Mundo) - e acima de tudo, enfrentar a falta, ser capaz de imaginar a falha antes de propor o que falta, em vez de o tapar (por medo do vazio, do nada) com as respostas já seguras, gastas e retardadas.  A falta, aquilo que nos falta, remete para o necessário desequilíbrio introduzido num sistema: um desacerto que perturba e subverte a ordem. Depois de experimentar esse desequilíbrio não podemos já regressar sossegados à antiga ordem. Começa uma forma de outridade.

Só se pode acolher algo, um outro, um diferente, se houver lugar para isso. Se não se estiver cheio (de si, de certezas e seguranças), se houver lugar vazio. E Lao Tsé ensinava: “Molda-se o barro para fazer um vaso, é precisamente o que nele não existe que dá utilidade ao vaso. Furam-se portas e janelas para fazer uma sala, é precisamente o que nela não existe que dá utilidade à sala”.  Esse espaço aberto, esse vazio tem de ser criado. É preciso, então, em primeiro lugar, contra todo o poder seguro, esvaziar.

Tal como os indivíduos, as comunidades podem, e devem, compreender-se neste modo de outramento e imaginação desassossegada. O que é a utopia senão outro nome para o desejo de um outro modo de ser? Um laboratório onde se testam possibilidades inesperadas. Um atelier. E essa possibilidade ficcional, lugar sem lugar, desassossega já este lugar existente, aqui e agora. Essa parece-me ser a sua principal função. Exercício de imaginação já presente e a criar desequilíbrios. A primeira função da utopia, indicou Bloch, é “manifestar que o real não se esgota no imediato” - o real tende para o que ainda não é. Para que tal aconteça, tem de se ser muito realista, de modo a se conhecer e julgar bem a realidade, as suas injustiças e necessidade de mudança, para propor uma outra realidade.

A ficção utópica está já a impregnar de sentido e desassossego este lugar que é o nosso. Um “enclave”, chamou-lhe Frederic Jameson. A utopia, é o que impede que o horizonte de expectativas se funda com o campo da experiência; ou seja, que não se confundam a esperança e a tradição, o desejável e o efectivo. Basta existir uma utopia para que uma pergunta se torne já presente e nos inquiete: e se? É esse desacerto o que a utopia cria. A consciência de um mundo inacabado, não terminado, um descontentamento com o já existente no presente, apontando uma distância que nos põe a caminho. A imaginação faz surgir, nas paredes do real, portas inesperadas: com a possibilidade da sua abertura, com a incerteza do que está ou virá depois de ser aberta. Abre-se, assim, na situação presente, mesmo na mais desesperada, uma possibilidade de saída, de fuga, de um outro modo de ser. Mesmo para um condenado à morte, como num célebre filme de Bresson - que é o mesmo que dizer: para todos nós.

Deste modo, contra a atrofia da imaginação, queremos lembrar que “a imaginação é um modo indispensável de investigação do possível” (Ricoeur). Relembrar que ela é a nossa liberdade - mas sem esperar milagres. Mais do que a realização futura, a função da utopia é a crítica já do presente para aí compreender o intolerável. Procurar alternativas com uma “consciência antecipante” (Bloch). Nas mais diferentes perspectivas: educativa, política, económica, urbanístico-arquitectónica, tecnológica, religiosa, médica, cultural… A função das utopias é explorar possibilidades. E viver, como sabia Emily Dickinson, é “habitar na possibilidade”.

*Frase escrita numa parede de Paris, em 1968. Este texto é uma adaptação do ensaio escrito para o Festival de l´incertitude, Fondation Calouste Gulbenkian, Paris, 2016

**Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico

-Sobre Paulo Pires do Vale-

Filósofo, professor universitário, ensaísta e curador. É Comissário do Plano Nacional das Artes, uma iniciativa conjunta do Ministério da Cultura e do Ministério da Educação, desde Fevereiro de 2019.

Texto de Paulo Pires do Vale
Fotografia de Tomás Cunha Ferreira

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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