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Entrevista a Carla Chambel e a Beto Coville: Medeia come a placenta

À noite, nas antigas ruínas do Teatro Romano, está uma mulher suspensa num pano branco….

Texto de Raquel Rodrigues

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À noite, nas antigas ruínas do Teatro Romano, está uma mulher suspensa num pano branco. É Medeia dentro do útero, o prólogo. “É quase como um nascimento dela própria, porque a sua história vai ser contada. No fundo, estou ali condensada a viver um movimento, que é dito através das palavras”, reflecte Carla Chambel, que interpreta a personagem que deu nome à tragédia de Eurípedes e que nos diz que os clássicos são contemporâneos, enquanto o ser humano tiver memória de si mesmo.

Esse pano que a envolve e a segura é a sua casa, “a figura do casulo, do recolhimento”, que a actriz encontrou no seu corpo, contorcendo-se no chão. Foi aí que chegou a Medeia. No primeiro ensaio “fizemos uma viagem regressiva a um sítio onde estaria a nossa dor, e que vinha através da fisicalidade. Prendemos uma cinta à cintura e tentámos encontrar o nosso ponto de tensão. Quando estamos muito tempo nesse trabalho, as coisas saltam para fora. Não vêm com o texto. É de outro sítio que vêm. Esse ensaio foi a génese para construir toda a Medeia. Ainda sem me aperceber bem da história das personagens, não sentia a dor pelos meus filhos. Ocorria-me amar muito o Jasão e que estava louca por ele, e que o queria, a todo o custo. Era isso que me movia na minha dor. Quando comecei a investigar o texto, com mais calma, é que percebi que o primeiro motor da Medeia não é matar, descarregar nos filhos a sua dor, mas no Jasão.”

“É engraçado como, uma coisa que estava mais no subconsciente, batia certo com a história que defendo da Medeia. Ela não é uma mulher que mata os filhos. É uma mulher que está profundamente apaixonada e desesperada por um homem, e que procura, a todo o custo, vingar-se dessa dor que lhe provoca”, repara Carla. Medeia entende que o corpo morto não sofre. Por isso, destrói um corpo vivo com a morte de quem ama, que só ele pode sentir, morrendo em vida.

É esta a preocupação de Beto Coville, enquanto encenador, acompanhar a personagem, entrando nela, através das mulheres que estão no palco, uma espécie de vozes-fluxos de consciência, pensamentos intersectados. “Queremos trabalhar mais a psique feminina do que o crime, mostrar a evolução da neurose, ou dessa fixação, ou obsessão, ou desse amor, que tem por Jasão, que faz com que chegue a este ponto.” Porém, Carla também aponta que a decisão de matar os filhos pode ser pensada ainda como uma forma de protecção, na medida em que, tendo morto a filha do rei de Corinto, os primeiros ficariam “sujeitos aos inimigos. É muito pior para os meus filhos serem mortos por eles. Como se fosse comer a placenta...”

“É como se abríssemos a cabeça da Medeia. Estas figuras são a projecção da cabeça dela. É como se o público tivesse a oportunidade de a decifrar, vendo os vários actos que comete. A cabeça da mulher é um vasto continente, uma coisa indecifrável para muita gente, que não consegue perceber como chegamos a determinadas lógicas. Isto, do ponto de vista do poder, também tem as suas repercussões”, acrescenta.

Uma mulher decide. Uma mulher age. Uma mulher mata. E isso despista, foge ao papel que lhe fora atribuído socialmente. Contudo, neste caso, a indomabilidade é esperada. Medeia era temida. O rei Creonte sabia que era feiticeira e que poderia vingar-se na sua filha. Por isso, ordena o seu exílio imediato. Todavia, a astúcia desta mulher, em plena destruição, permite-lhe traçar um plano, a partir da fragilidade exposta. Se a sua vida cai por terra, a dos outros entrará nela. Quando o rei descansava com o destino imposto a Medeia, o poder era para ela transferido. A sabedoria para encaminhar os outros e a ordem das coisas, sem que estes se apercebam, estende-se às três personagens masculinas que se encontram em palco, com as quais estabelece um tipo de relação diferente, a necessária para chegar ao lugar que apenas ela vê, como se eles fossem fios, julgando-se segurados por si mesmos. Com o rei, humilha-se, expondo a sua desgraça, implorando-lhe mais um dia antes de sair de Corinto, no qual cumprirá a tragédia, com Jasão, simula a aceitação do seu casamento com a princesa e decide presenteá-la com vestidos que decomporão o seu corpo, ao qual o pai se abraçará, consumindo-se também, e com Egeu, rei de Atenas, seu amigo, pede para lhe dar abrigo, e, sabendo da infertilidade deste, revelada pelo Oráculo, promete que lhe será concedida descendência.

“É difícil ter um final de libertação quando ela tem consciência que matou os filhos. Esse tipo de dor vai acompanhá-la a vida toda. Aí, perguntamos: porque o fez? Ela o fez porque não achava outra saída. Não é uma libertação, é uma fuga para a frente, com várias correntes e vários pesos que vai levar para o resto da vida. Foi uma opção,” esclarece Beto.

Chegamos ao início, que o encenador, mas também intérprete e responsável pela adaptação do clássico, vê, de forma distinta de Carla. “A Medeia começa a peça completamente comprimida, sem ver caminhos. Foi abandonada pelo marido, tem dois filhos e sabe que vai ser expulsa dali. Portanto não tem saída, está dentro de um casulo oprimida.” Como um continente inexplorado, por natureza, porque sempre em devir, a escorregar, Medeia, o feminino, é a psique. Por isso, talvez, era estrangeira ali.

Porém, para Bento, apesar das transformações, que são revelações, serem transversais aos humanos, na mulher, porque “tem o dom de gerar filhos, dar vida” e, assim, renovar o meio, estas variações fazem dela um universo mais diverso.

Das feridas, podem nascer as feras. No fim, Jasão, grita-lhe: “Leoa selvagem, indigna de ser chamada mulher.” Pela dor e pelo desespero, chegamos a lugares viscerais que, só através deles, se abrem. Contudo, quando esta revelação do enigma, do incompreensível, acontece na mulher, o julgamento é maior, porque carrega a imagem do controlado, logo do dependente e do expectável, da sensibilidade e do afecto, que impedem actos inesperados, violentos, de “sangue frio”. “Nasci mulher. De que importa que sejamos mais dotadas de alma? (…) O homem julga-se dono, nosso dono."

De 2 a 20 de Setembro, de quarta-feira a domingo, pelas 21h30, no palco mais antigo de Portugal, entre as ruas de São Mamede e da Saudade, onde se localiza o sítio arqueológico do Teatro Romano, um dos núcleos do Museu de Lisboa, estará em cena a peça Medeia, da Companhia Teatro Livre. Podes adquirir os bilhetes aqui.

Fotografia disponibilizadas pela assessoria de imprensa do Teatro Livre

Texto de Raquel Botelho Rodrigues

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