No ar, o fumo dos cigarros fumados num cubículo da redação; à volta, salas com paredes simbólicas a dividirem-nas; em cada uma delas, jornalistas e diretores de um jornal. “Última hora”, um jornal com décadas de existência que podia ser uma série de jornais pelo mundo fora, está a atravessar uma crise e as tensões acumulam-se até ao, e no, plenário. Tudo acontece no palco da Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II, numa peça escrita por Rui Cardoso Martins e encenada por Gonçalo Amorim.
O aspeto da redação, com pilhas de jornais com páginas amareladas pelo tempo e capas internacionais numa parede, pode trazer uma certa nostalgia a jornalistas da velha guarda e representar o sonho de jovens jornalistas que imaginaram a azáfama de dias de fecho sonorizada pelos teclados a ultimar notícias de última hora e grandes reportagens. Assim que começa a peça, percebemos que todos entram: os mais velhos e os mais novos, os que já são da casa e os estagiários. O que os une é muito mais do que os separa - por muito que, em alguns momentos, possa não parecer.
O processo de escrita da peça, que já havia sido anunciado em 2017 aquando do convite de Tiago Rodrigues, fez-se pela vida, naturalmente. Rui Cardoso Martins, que passou pela redação do Público num tempo “de grande alegria e loucura” e que no humor se destacou pela co-autoria do icónico Contra Informação (RTP), reuniu a experiência, as conversas e memórias registadas por um olhar atento. Cardoso Martins não andou a “recolher anedotas” para esta peça; convocou-as como quem lembra uma história que lhe é próxima e que sente que não se pode perder.


“Eu nasci numa geração em que ainda houve algum espaço para tempos heróicos, houve grande vontade para fazer e meios para o fazer, e nesse aspeto a peça é um bocadinho triste, no sentido em que é mais difícil para jovens jornalistas encontrarem alegria nos meios de comunicação - porque é preciso dinheiro, é preciso tempo”, conta o jornalista e argumentista.
Nesta redação-quase-em-ruína, o diretor Santos Ferreira (Miguel Guilherme), cambaleia bêbado pelo espaço que lhe é tão ou mais familiar que a sua casa. Ali, com os seus e as suas camaradas, lutou durante anos pela liberdade e a democracia através da imprensa. Procurou sempre dizer a verdade e garantiu que toda a equipa o fazia também. Quando Ramires Sá Saraiva (José Neves), o novo acionista e administrador, chega para o dito plenário, toda a sua luta parece ser apenas uma miragem num futuro que se quer dominado por cliques e visualizações. “Não podemos mentir aos nossos leitores”, diz Santos Ferreira a Sá Saraiva. O acionista parece não estar totalmente de acordo.
A parede com as capas internacionais é substituída por um ecrã que dá a ver os artigos mais vistos, os camaradas parecem ter de passar a ser colegas, os artigos “têm de ser mais curtos”, ⅔ das pessoas da equipa serão despedidas. Na movida de Sá Saraiva há algo de trágico-cómico que causa desconforto e que leva a questionar para onde caminha o jornalismo.


Rui Cardoso Martins e Gonçalo Amorim juntam, em palco, os elementos essenciais para “uma comédia sobre a condição humana”. “É uma comédia cheia de momentos caricatos, mas também de figuras históricas do jornalismo, cheia de esperança”, partilha o primeiro. E por muito que alguns momentos convoquem alguns dos grandes desafios do jornalismo atualmente - que são um espelho dos grandes desafios da humanidade -, há espaço para rir tão alto quanto se quiser e prosperar um futuro.
O olhar de Gonçalo Amorim, que “antes de ir para o Conservatório” estudou “Antropologia na NOVA [FCSH]”, não é necessariamente o de um leitor, distanciado de todo este universo. “A esplanada da FCSH estava recheada de aspirantes a jornalistas, com muitos sonhos e muitas utopias, e também na minha família sempre houve uma relação forte com jornalistas a toda a geração que fez o Primeiro de Janeiro, e que passou para o Expresso e depois para o Público. No fundo, essas eram as tertúlias em minha casa, sempre com jornalistas”, recorda.
Não é por acaso que pode parecer complicado descolar Maria Rueff, que interpreta a diretora-adjunta Sousa Neves, e Miguel Guilherme das personagens. Rueff, que foi “a menina dos telexes” na altura em que estudava teatro, com cerca de 19 anos, viveu os tempos áureos do Público de que Rui Cardoso Martins falava - na verdade, foi lá que ambos se conheceram e acabaram por se tornar amigos - e recorda, ainda hoje, os sons e a forma como se usavam os apelidos para mencionar jornalistas com um certo estatuto. Miguel Guilherme passou, em tempo de pandemia, um mês no Público a construir a sua personagem.
“[O Miguel Guilherme] andou pelas ruas a acompanhar repórteres, acompanhou as reuniões secretas da redação (as mais importantes) como convidado mas também como participante, e acho que nesse aspeto conseguiu beber um pouco do mundo, apesar da dificuldade de haver pouca gente nas redações. E isso reflete-se muito, muito, muito. Eu hoje estou a ver o Miguel Guilherme no palco e a ver também vários jornalistas que conheci, nem todos bêbados felizmente”, conta o argumentista entre risos.


“Última hora” estreou ontem, 8 de outubro, no Teatro Nacional D. Maria II, e fica em cena até ao dia 24 de outubro. No dia 10 há a apresentação do livro “Última Hora - peça em três actos”, editado pela Tinta da China, com a presença de Adelino Gomes, Catarina Homem-Marques e Joaquim Furtado - sendo Adelino Gomes e Joaquim Furtado peças fundamentais no caminho jornalístico de Rui Cardoso Martins. Nas palavras do autor, “a generosidade” que recebeu destes dois jornalistas, “gostava que voltasse a sentir-se” nas redações, entre gerações.
“Eu gostava muito disso porque sem novos jornalistas que tenham oportunidade de trabalhar, não há futuro para o jornalismo; e se não há futuro para o jornalismo, não há futuro para a democracia. Eu gostava muito que houvesse esse diálogo entre os que estão a aprender e os que estão há mais tempo, porque ambos (se) ensinam muito”, conclui.