Algum tempo decorreu sobre o dia em que tive o privilégio de visitar a nova “Casa Fernando Pessoa” a convite da sua diretora, Clara Riso.
Este emblemático espaço cultural da cidade persiste na minha memória, como de resto, a maior parte dos equipamentos geridos pela EGEAC, a empresa municipal de cultura de Lisboa. Memória de sete anos de um projeto inolvidável, realizado num contexto político memorável, no qual tive o orgulho de intervir entre 2007 e 2014.
O privilégio de que vos falo está, naturalmente, relacionado com a restruturação desta casa / museu/galeria/biblioteca e naturalmente com o seu novo discurso expositivo.
Desde logo, o início da visita propõe-nos uma viagem à heteronímia, a um tempo, profunda, lúdica e pedagógica. Para além do princípio forçosamente presente da unidade e da fragmentação, saímos deste primeiro trecho com a clara compreensão da vastidão dessa “galáxia”. Todo o ambiente que nos envolve, todavia, não se furta ao jogo, e ao ancestral divertimento de ser múltiplo.
O percurso iniciado e iniciático prossegue num segundo trecho, todo ele dedicado à biblioteca do poeta. Aí, numa impressionante recriação cenográfica mergulhamos em todo o ecletismo intelectual do poeta. Após sermos colocados, no primeiro momento da visita, no passo periclitante entre literatura e vida, neste, que se lhe segue, a escrita eleva-se a instrumento magno para a compreensão e apropriação do mundo. Tudo é nota, inscrição, pensamento, registo e reflexão, nesta marginália em que o livro se converte em laço indelével entre escritor e leitor.
Num terceiro momento, entramos no espaço da intimidade através de uma memorabilia de momentos domésticos e documentos familiares. Nele, somos investidos na vida vivida de Pessoa, desde a infância em Durban ao regresso a Lisboa, e à existência nómada e “sem qualidades” do poeta cruzando a cidade. A féerie que domina os dois primeiros momentos de visita é ancorada aqui num espaço supostamente “real” que é, outrossim, o de uma “geografia sentimental” feita de uma trama de vultos e objetos.
O final desta notável viagem detém-se no momento mítico da criação, precisamente diante da cómoda alta onde a 8 de março de 1914 a epifania aconteceu. A marca mais fascinante deste epílogo — que é naturalmente também um prólogo que nos transporta diretamente ao início do percurso — é a da reflexão sobre a obra de arte como um processo aberto em permanência. A cómoda mítica que nos evoca o inigualável momento da criação artística “antes de qualquer tempo”, revela, em simultâneo, um legado que foi dado a compilar, estruturar, compreender, revelar às gerações vindouras, designadamente a todos aqueles que dela se apropriando, se converteram inexoravelmente em seus coautores.
Deste “descentramento” surge súbita e poderosa a aporia do posicionamento do artista perante a obra, a um tempo, centro e margem, potência e ato.
A Casa Fernando Pessoa, após algum tempo “fora de portas” é devolvida à cidade apresentando um novo percurso expositivo, razão maior para a sua visita; tal não esgota, porém, a experiência proposta. São também dignos de legítima nota, o espaço de exposições temporárias e, coroando o todo, o belíssimo espaço de biblioteca — indubitavelmente uma, entre muitas outras razões, para querer estar, deambular, permanecer…
-Sobre Miguel Honrado-
Licenciado em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e pós-graduado em Curadoria e Organização de Exposições pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa/ Fundação Calouste Gulbenkian, exerce, desde 1989, a sua atividade nos domínios da produção e gestão cultural. O seu percurso profissional passou, nomeadamente, pela direção artística do Teatro Viriato (2003-2006), por ser membro do Conselho Consultivo do Programa Gulbenkian Educação para a Cultura e Ciência – Descobrir (2012), pela presidência do Conselho de Administração da EGEAC (2007-2014), ou a presidência do Conselho de Administração do Teatro Nacional D. Maria II (2014-2016). De 2016 a 2018 foi Secretário de Estado da Cultura. Posteriormente, foi nomeado vogal do Conselho de Administração do Centro Cultural de Belém. Hoje, é o diretor executivo da Associação Música, Educação e Cultura (AMEC), que tutela a Orquestra Metropolitana de Lisboa e três escolas de música.