Muitas vezes se disse que a atual pandemia (que eu definiria como uma crise estruturalmente social, com implicações médicas e sanitárias) nos obriga a inventar um futuro e a não regressar ao status quo (isto é, ao capitalismo alicerçado na exploração de quem trabalha, , na opressão das mulheres, no racismo institucionalizado e na predação selvática da natureza e dos outros animais).
Vem isto a propósito de um livro acabado de sair e que vivamente recomendo: O futuro começa agora. Da pandemia à utopia de Boaventura Sousa Santos (Edições 70).
Através da sua leitura, somos levados a entender a pandemia do coronavírus como o clímax de um fim, o precipício de uma certa modernidade iniciada no século XVI com a colonização e, desde então, assente em três vértices inextricavelmente ligados: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. A lição seminal da intensidade pandémica pode exprimir-se na máxima: “a partir de agora, entramos numa época em que pertencemos à natureza”. O vírus é, pois, o grande revelador, a potência onde se concentram as contradições de um tempo em ruínas. Sob esse prisma, o vírus é radical. Não tem contemplações, não nos é anterior ou exterior. Na verdade, vírus e humanos coexistem, qual híbrido, exprimindo a relação predadora face à natureza, nesta orgia destrutiva onde sobressaem as alterações climáticas, desmatando as florestas e penetrando em territórios outrora habitat exclusivo de animais selvagens.
Ora, se nenhum retorno é possível, importa conhecer o que de novo se insinua e emerge. As Epistemologias do Sul, que Boaventura tem trabalhado há muito, fornecem os utensílios para esse afã. Não se pense nelas como uma evocação geográfica, encontre-se antes um método para perscrutar os saberes (práticas, discursos, formas organizativas) que permitem “fazer falar o silêncio” e os silenciados, aqueles e aquelas, seja no sul ou no norte geográficos que, ao longo de séculos, sofreram nas malhas da exploração capitalista, da violência colonial de destruição de saberes e memórias, com agudo prolongamento no racismo que estrutura as nossas sociedades ou na subordinação das mulheres aos modos de pensar, fazer, dizer e sentir masculinos. A necropolítica vigente destrói subjetividades e patrimónios de disposições; a micropolítica dos pequenos medos” (Lazzarato, 2009) paralisa na precariedade, na incapacidade de mobilizar recursos reflexivos e de prever ou desenhar um futuro outro.
O itinerário tem várias pontes ou transições: “Da monocultura do saber rigoroso às ecologias de saberes; da monocultura do tempo linear à ecologia das temporalidades; da monocultura da classificação social ex natura à ecologia das diferenças, e reconhecimentos; da monocultura da escala dominante à ecologia das trans-escalas; da monocultura do produtivismo capitalista à ecologia de produtividades”
Por conseguinte, o livro pode ser entendido como um pensamento rebelde à procura de consequências. Não é possível fugir para as ilhas encantadas ou para qualquer alienação que o feiticismo oferece em abundância. Na urgência, amplia-se o conhecimento para vencer o apocalipse derrotista de todas as feições. Temperado pela esperança metódica, sistemática e organizada, criam-se as condições intelectuais para a construção de utopias viáveis, baseadas na “ecologia de saberes”, na “tradução intercultural” e no princípio do não desperdício das experiências. A crise do coronavírus, ao não permitir um retorno, exige que inventemos algo de novo e que emerge já nesse caleidoscópio de saberes, práticas e discursos geradores de emancipação que instituem a diversidade do mundo.
Lazzarato, M. (2009). Neoliberalism in action: inequality, insecurity and the reconstitution of the social. Theory, Culture and Society, 26 ( 6 ), 109 – 133
-Sobre João Teixeira Lopes-
Licenciado em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1992), é Mestre em ciências sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1995) com a Dissertação Tristes Escolas – Um Estudo sobre Práticas Culturais Estudantis no Espaço Escolar Urbano (Porto, Edições Afrontamento,1997). É também doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação (1999) com a Dissertação (A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas (Porto,Edições Afrontamento, 2000). Foi programador de Porto Capital Europeia da Cultura 2001, enquanto responsável pela área do envolvimento da população e membro da equipa inicial que redigiu o projeto de candidatura apresentado ao Conselho da Europa. Tem 23 livros publicados (sozinho ou em co-autoria) nos domínios da sociologia da cultura, cidade, juventude e educação, bem como museologia e estudos territoriais. Foi distinguido, a 29 de maio de 2014, com o galardão “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Governo francês. Coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.